MEMÓRIA | Matrioska literária

Krushchev Remembers, um livro que carrega história em suas páginas — ou no espaço entre elas

Portal Tu Dix?!
tudix
5 min readMay 10, 2019

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O segredo de Khrushchev Remembers fica bem guardado no sebo que o abriga | Foto: Mahara Aguiar

Por Mahara Aguiar

A matrioska é um dos símbolos materiais mais conhecidos da Rússia. Aquelas bonequinhas de madeira, com pequenos e intrincados detalhes, são cerradas ao meio e colocadas umas dentro das outras, cada uma com um tamanho menor do que a anterior… A surpresa é saber quantas cabem naquele pequenino espaço — geralmente são cinco, mas podem ser mais.

Paralelo a isto, nos anos 2010, Khrushchev Remembers, o livro autobiográfico do ex-líder da URSS ia sendo levado de Kombi para um sebo no Centro de Florianópolis, empilhado com vários outros livros. Aquele exemplar específico era uma variação bizarra da boneca, embora a dona do sebo em questão não soubesse disto naquele momento.

Tanto as bonecas quanto o livro carregavam a história recente da Rússia — elas, da virada cultural no final do século XIX; ele, da política da metade do século XX. E ambos também traziam dentro de si algo que surpreendia os que se aventuraram a abri-los, mas invisíveis para os que não fossem tão curiosos. Se essa pequena singularidade das memórias grossas, puídas, que se perdem da vista entre as outras dezenas de livros que carregava era de conhecimento ou de criação do motorista da Kombi, até hoje ninguém soube dizer…

Atenção: ouça cada áudio antes de seguir adiante. Eles explicam boa parte da história!

Ivete Berri é a dona do sebo homônimo de 18 anos (na época), ao qual a Kombi se dirigia. Não estava ciente de nenhuma dessas comparações que fizemos agora. Ainda não havia mudado seu sebo para a sala mais ampla que hoje ocupa; por isso, viu a Kombi estacionar em frente à porta estreita de seu sebo pequenino. Como diversas outras pessoas no dia, o motorista da Kombi entrou com sua mercadoria e esperava fazer um bom negócio.

Ivete ainda não sabia que esses momentos fariam parte da história que contaria centenas de vezes nos próximos anos.

Atenção: ouça cada áudio antes de seguir adiante. Eles explicam boa parte da história!

Muitos livros foram comprados, outros Ivete deixou pra lá. Remembers possuía o carimbo do sebo, prova de que já havia estado naquelas prateleiras antes. Quando bateu o olho no tal carimbo, Ivete deu rapidamente seu preço ao vendedor e comprou as memórias de Khrushchev junto com outras tantas. Sabia que, se o livro já havia estado no seu sebo e já havia vendido, poderia muito bem vendê-lo de novo, oras! Então, por algum tempo a matrioska ficou escondida, intocada. Esperava sua antiga e atual dona examiná-la e ditar a quantos reais seria vendida. Na verdade, o preço nunca foi dito: folheando o livro, Ivete chegou na página 63 e percebeu, finalmente, a surpresa que ele carregava.

Encrustada no miolo das memórias está a lembrança de uma arma | Foto: Mahara Aguiar

O corte, realizado em algum momento entre a primeira saída do livro do sebo de Ivete e a sua segunda chegada, foi feito de maneira precisa em mais de 330 das suas 639 páginas.

Fotos: Mahara Aguiar

Apesar do tamanho do esconderijo, este se torna absolutamente invisível quando o livro se fecha: daí o susto que se toma ao folheá-lo. O antigo dono não deu a mínima aos caminhos percorridos por Nikita Khrushchev, de metalúrgico a líder do partido comunista da URSS na década de 1960, auge da Guerra Fria*. O esconderijo da arma atravessa comunistas e capitalistas sem dó nem distinção.

Ivete e seu livro mais emblemático. Foto: Mahara Aguiar

“Já mostrei para policial, já mostrei pra bastante gente que entende. Já bateram muita foto disso aqui”, é o que diz uma Ivete orgulhosa de ter uma história tão esdrúxula em mãos.

*Na verdade, pouca gente parece dar: lançado em 1971, o livro pode ser comprado por menos de R$ 30 no site Estante Virtual, na sua edição em português. Já versões em inglês, como a que Ivete abriga (embora ela insista que a língua é a alemã) são um pouco mais raras, e por isso, beiram os R$ 60.

O sentimento de ter o livro em seu acervo é dúbio. Se por um lado, Ivete se vangloria por seu item único, por outro receia que mostrá-lo na vitrine possa “dar a ideia” para alguém que a coloque em prática novamente.

Ela quer que o esconderijo para arma, coisa “de que quem não tem boa intenção”, fique apenas como enfeite no papel. “Provavelmente a pessoa comprou o livro capa dura, grosso, já pra essa intenção”. Inventiva, Ivete possui uma teoria do por quê um esconderijo tão bem feito foi jogado fora:

Atenção: ouça cada áudio antes de seguir adiante. Eles explicam boa parte da história!

Embora cheia de suposições, Ivete não sabe de verdade por quem ou por quê o esconderijo foi feito no livro, ou por que foi descartado; muito menos como e onde foi usado no período que saiu de seu sebo. Sabe que o homem que lhe vendeu o livro estava em uma Kombi, mas não lembra de nenhuma característica física dele, nem seu nome. E o livro já passou por tantas mãos desde então que seria impossível detectar seu antigo dono por impressões digitais, como sugeriram.

A última surpresa, a mais pequenina — e talvez mais importante — boneca dessa matrioska de memórias, ficará para sempre na lembrança de quem a criou.

Leia o perfil de outros livros que representam os sebos do Centro de Florianópolis: negócios, arte e nostalgia. As reportagens fazem parte do projeto “Será que o pessoal não lê?”, que você confere agora.

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