A vitória do óbvio — lançado primeiro produto à base de CBD

Fabricio Pamplona
Tudo Sobre Cannabis
9 min readApr 23, 2020

Ontem tivemos a notícia de que a empresa farmoquímica do oeste paranaense Prati-Donaduzzi recebeu a primeira autorização sanitária do Brasil para Produto à base de Canabidiol (CBD).

Há muito se aguardava esse anúncio, e apesar da presença de grandes players da Cannabis medicinal no Brasil e algumas empresas soltarem press releases querendo se antecipar na corrida, a Prati foi lá e fez. É bem verdade que a própria Prati já usou desse subterfúgio de falar antes de fazer, mas esse é o momento de tirar o chapéu, porque afinal, eles conseguiram.

Se tiver curiosidade, esse é o número da publicação no Diário Oficial

Foi a vitória do trabalho, de uma empresa que tinha uma certa convicção e modus operandi: copiar o que funciona. O produto é uma cópia do Epidiolex, da empresa britânica GW, que investiu rios de dinheiro no seu desenvolvimento e foi realmente a pioneira nessa área.

A Prati, sem vergonha de ser uma follower e sem qualquer ambição de ser verdadeiramente pioneira científicamente, resolver abaixar a cabeça e trabalhar, e ser pioneira ao apresentar o primeiro produto com grau farmacêutico dentro da nova regulamentação brasileira de produtos à base de Cannabis. É uma grande conquista, particularmente quando se sabe de tudo que acontece nos bastidores e o tamanho da vantagem que as outras empresas tinham em relação à Prati. Fez o óbvio que precisava ser feito, e saiu na frente.

No fundo, já tive minhas diferenças de conceito e posicionamento, inclusive trabalhei em empresa concorrente direta. Mas o aspecto "Davi x Golias" dessa história dá um certo orgulho quando uma empresa do interior (os "colono trabalhador", como gosto de brincar, já que também sou do interior) vence pelo trabalho. Porque é essa a atitude que precisa, e pouquíssimos estão tendo neste mercado, que é alimentado pela especulação.

Pelas informações que eu tenho, até hoje havia apenas um pedido de autorização sanitária protocolado. Só uma etapa técnica (mas que é crítica), a de estabilidade de longo prazo do produto para determinação do prazo de validade, leva 2 anos para ser realizada. Isso dá uma ideia do quanto estão à frente dos demais concorrentes. É um tantocomum se reclamar da ANVISA e dizer que ela é o gargalo para inovação no país, pois bem, dessa vez ela demorou menos de 40 dias para analisar o pedido e autorizar. No contexto todo que estamos vivendo de pandemia do novo coronavirus, em que a agência está tendo um papel crucial, eu diria que é um esforço heróico para atender os anseios da população. Ou bem, pelo menos atender a empresa…

Talvez você queira dar uma olhada no histórico desse processo, e vários comentários que impactam a entrada desse produto no mercado brasileiro, que eu já havia fazendo ao longo do tempo:

Sem falsa modéstia, participei ativamente do processo de sensibilização das autoridades e da agência regulatória lá nos idos de 2015, quando levamos os técnicos da agência para conhecer o que estava acontecendo no Canadá, e de lá eles seguiram viagem, e a discussão culminou na regulamentação, obviamente com contribuição de uma série de outras empresas e pessoas.

Tendo tido esse timing pioneiro no país, já estive há mais de 3 anos atrás realizando discussões sobre desenvolvimento de produtos de Cannabis com absolutamente todas as empresas farmacêuticas brasileiras. A resposta era unânime: estamos interessadas, queremos fazer. Mas nenhuma teve culhão pra "pagar pra ver" ou confiou o suficiente no potencial do mercado. Ou, tinham outras prioridades, claro, afinal, o CBD parece ser o centro do planeta Terra para quem está envolvido, mas há uma série de outros projetos interessantes por aí. Eu mesmo tenho outros 2 atualmente, que nem envolvem CBD ou coisa parecida.

Curioso que no meio ativista a Prati-Donaduzzi parecia ser o "inimigo" e, no fim, tornou-se a esperança. Aparentemente, será a única solução por bastante tempo para centenas de milhares de brasileiros que precisam do canabidiol para o tratamento da epilepsia refratária. O canabidiol será só "mais um remédio na prateleira" ou haverá a euforia que foi nos outros países? Eu aposto na primeira opção. O Brasil está chegando atrasado nessa festa, a euforia já passou, a bolha da Cannabis já inflou e estourou, e estamos aqui comemorando como aquela criança que chega atrasada na festa e já entregaram as lembrancinhas. Na verdade, até já tiraram a decoração e estão fazendo a faxina. Apesar disso, que ótimo para os pacientes brasileiros, porque a partir de agora o risco de interrupção do tratamento e dependência do exterior está bastante reduzido.

A resposta era unânime: estamos interessadas, queremos fazer. Mas nenhuma teve culhão pra “pagar pra ver” ou confiou o suficiente no potencial do mercado.

Uma coisa estranha nesse processo todo, é que junto com a autorização sanitária foi que saiu juntamente a famigerada patente do CBD". É uma vergonha que "misturar canabinoide em óleo" tenha sido considerado atividade inventiva pelo INPI, particularmente quando o órgão já havia se manifestada preliminarmente contra, e com subsídios inequívocos tendo sido apresentados como descrevi aqui. Afinal, a formulação e o uso já estão "mais velhos que a lei da gravidade", mas o INPI fez um grande favor à Prati-Donaduzzi e concedeu um documento reconhecendo que a empresa "inventou" algo que já era de domínio público.

É uma manobra no mínimo "estranha" de protecionismo artificial, que talvez tenha alguma relação com isso aqui. Pelo tamanho do jogo, e as influências envolvidas, inclusive envolvendo o poder público brasileiro, o CBD é certamente uma oportunidade para os arrojados, mas não para os aventureiros. Pelo menos no Brasil. Sei que algumas empresas de Cannabis com bolso fundo estão tentando gerar a documentação técnica para atender os requisitos da RDC 327/2019, vamos ver o quanto essa patente vai ser uma barreira de entrada. Acredito que a maioria ainda não se ligou nesse aspecto.

Eu esperava bem mais das empresas farmacêuticas brasileiras, porque absolutamente todas tiveram a chance de concorrer de igual pra igual com a Prati. Muitas delas estavam mais preparadas, certamente tinham mais histórico de inovação, e houve até quem com o bolso cheio de dinheiro (no jargão da área, "bem capitalizado") anunciando na mesa de negociação que era "agressivo e arrojado" e que "iria fazer o projeto de qualquer jeito", teve até a chance de contar com uma especialista da área no time, e nem assim a coisa foi pra frente.

Rancor? Sim. Decepção? Certamente. Desiludido, talvez. E certamente frustrado, porque sentamos na mesa com diretores de todas elas, que como num jogo de cartas, “esperam sua vez” achando que alguém vai chegar com a solução pronta. Como se o tempo “resolvesse” a questão. Não há solução pronta, e também não há atalhos, tem que focar e trabalhar. Pior que não é "rocket science" mas a aversão ao risco aqui no país é enorme. Também, com a instabilidade que vivemos, dá pra entender. Só não dá pra se conformar.

Mas e quando 95% das pessoas que estão trabalhando com canabinoides sequer tem noção do caminho para chegar lá? Esse é o cenário.

Pode ser um posicionamento ingênuo da minha parte, como tantos outros, achar que as farmacêuticas realmente tem vontade de desenvolver produtos novos. É muito menos arriscado "comprar pronto". Mas e quando 95% das pessoas que estão trabalhando com canabinoides sequer tem noção do caminho para chegar lá? Ganhariam muito mais arregaçando as mangas e trabalhando.

Ainda me vem todas as semanas pessoas e empresas querendo investir e fazer "pirotecnicas" para achar atalhos. Sem sacanagem, é dos EUA, vários países da Europa central, países estranhos do leste Europeu, Israel, América Latina, chove gente do Brasil que "conhece alguém" e que quer trazer produto pro Brasil. Não lêem a primeira linha de um documento regulatório, não sabem nem por onde começar o desenvolvimento de um produto, em geral tem fornecedores de baixa qualidade (quando tem e não é só especulação), mas prometem mundos e fundos.

A lógica financeira que alavancou o mercado de CBD dos EUA, cheio de brechas e zonas cinzentas, e de quebra influenciou o mundo inteiro a falar sobre essa molécula simplesmente não se aplica em países como o nosso (e tanto outros), que fizeram uma regulamentação sanitária voltada à area farmacêutica. Ainda assim, praticamente todos os empreendedores brasileiros que querem embarcar nessa área agem como se estivessem no Colorado há pelo menos 3 anos atrás.

É a lida, meus amigos, ela que faz a gente andar. O resto é oportunismo.

Não há atalho, é sentar e trabalhar, dentro do contexto regulatório propício. Por isso é que o cenário é de um jogo conhecido para os empresas farmacêuticas, e muito nebuloso, desafiador e incerto para as empresas da Cannabis, acostumadas com zonas cinzentas e regulações sanitárias frouxas.

Já que o dia hoje é da Prati (ou a semana, o mês, ou o ano vai saber), vale mencionar a completa consciência que eles tem do que estão fazendo. Abaixo um slide de apresentação do CEO da empresa, referendando os diversos documentos regulatórios que envolvem a produção de um medicamento. A maioria das empresas de Cannabis não tem a minima noção desse cenário, e algumas, mesmo as grandes, quando enxergam essa barreira em frente, preferem pivotar e ganhar dinheiro em outro lugar.

O produto que vai ser anunciado em breve não é o Myalo, até porque dentro da regulamentação atual, os produtos à base de canabidiol não podem ter nome comercial, mas é praticamente um efeito colateral dessa linha de desenvolvimento de produto. É a mesma coisa, mas com outra roupagem. Por outro lado, do ponto de vista regulatório, muda tudo, pois a classificação é completamente outra, o que significa que atende a outros requisitos. Mas se posicionando dessa maneira, mirando alto, a Prati mostra que tem um apetite legítimo pelo mercado e vem mais novidade por ai. Pelo andar da carruagem, não me surpreenderia se visse a empresa exportando o medicamento registrado para outros países da América Latina antes de alguma empresa de outros países latino-americanos que foram pioneiros na Cannabis medicinal conseguirem entrar com seus produtos no Brasil. Ponto para o Davi.

Ainda não é esse. O Myalo é o produto inovador da Prati-Donaduzzi a partir do CBD que está sendo testado clinicamente com a USP. O produto lançado agora é praticamente um efeito colateral desse desenvolvimento. E praticamente a mesma coisa, mas com outro nome. Do ponto de vista regulatorio, estamos falando de outro produto, afinal, pretende ser um medicamento registrado e no um um produto a base de canabidiol (ref aqui)

O principal objetivo deste Medium é trazer informação de alto nível a respeito de ciência e tecnologia no âmbito da Cannabis medicinal, um campo da medicina que está florescendo nos últimos anos. Às vezes, a gente se arrisca a falar de uma outra curiosidade menos explorada sobre este planta ou o mercado. Interessou? Siga acompanhando ou receba conteúdo no seu email.

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Fabricio Pamplona
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Neurocientista. Empreendedor. Muita história pra contar.