Equidade social como resultados financeiros nas áreas de produto e tecnologia

Patrícia Gonçalves
UXMP
Published in
8 min readJan 28, 2021

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É necessário que as empresas entendam a necessidade da equidade não só como uma função social, mas uma visão de negócio para obter lucro com seus produtos e serviços, além de reconhecer seus funcionários por isso.

Concordando ou não, você não pode negar: “diversidade” e a equidade tem sido pauta quase que intrínsecas no mercado de trabalho. A discussão aparece na linha do tempo do LinkedIn, nos jornais, programas de TV e afins. Ah, e claro, talvez também em algumas bolhas sociais, afinal, algumas pessoas que buscam equidade social, racial ou salarial, não estão nessas discussões, nem ocupando as cadeiras dos escritórios ou liderando grandes empresas.

Para que essa conversa não perca o foco, podemos dizer que há uma crescente na importância com o tema, não necessariamente a comprovação de que isso foi conquistado, pois não foi.

Entretanto, sempre me questionei se as empresas enxergam essas mudanças como o cumprimento de exigências sociais ou visam o impacto de suas contratações, atualmente mais estratégicas, no lucro dos seus negócios.

Duas mulheres negras estão em um ambiente de trabalho como se estivessem conversando sobre algum tópico.
Nappy Studio (banco de imagens com pessoas negras)

Hoje, trago uma reflexão de como a contratação a necessidade da equidade no dia a dia das empresas precisa ser vista como acordo de troca envolvendo também conhecimento intelectual e financeiro.

Vivências $ociais

Trazer essa provocação para o meio no qual estou inserida sempre é uma possibilidade, além de ser algo que pratico todos os dias. Eu também já escrevi sobre isso quando a UXMP começou aqui no Medium, com o artigo “UX para Minas Pretas: uma iniciativa para formar profissionais do futuro” e ressaltei como mulheres negras poderiam transformar o mundo de UX.

Portanto, ter diferentes "minorias"na sua empresa é algo que não está no contrato, mas pode aparecer todos os meses na folha de pagamento, haja vista os diversos estudos que comprovam isso. Por exemplo:

⦿ Segundo a pesquisa Panorama UX 2020 feita pela ZOLY, apenas 15% das pessoas são pardas e 5% são negras na área de UX (experiência do usuário). Isso mostra como apesar de sermos mais 50% da população brasileira, poucas pessoas negras conseguem uma boa capacitação, vagas e frequentam espaços que promovem eventos da área.

⦿ A PretaLab junto com a organização Olabi , levantou que apenas 20% das entrevistados conhecem projetos envolvendo mulheres negras e indígenas com tecnologia.

⦿ A Ernst & Young fez um estudo que registrou: as empresas que tiveram 30% de diversidade de gênero — e mais de 20% no nível sênior — apresentaram melhores resultados financeiros na comparação com as demais.

⦿ Segundo um estudo da XP Inc., empresas com pelo menos 30% dos cargos de liderança ocupados por mulheres são 1.4 vezes mais propensas a ter um crescimento contínuo e lucrativo. O que isso significa? Que além do fator social, combater o machismo no dia a dia das empresas e incentivar a contratação de mulheres são ações estratégicas para o desenvolvimento dos negócios.

Sendo assim, precisamos deixar de enxergar a busca pela diversidade e equidade apenas como uma questão social e cultural. E que fique claro, não que essas definições estejam fora de contexto, mas é necessário que lideranças e executivos enxerguem isso como OKRs (uma metodologia frequente usada para medir objetivos e resultados) das empresas, já que o consumo do meu produto ou serviço pode ser melhor desenvolvido por pessoas semelhantes aos que desejam atingir ou que variavelmente estejam abertas ao estudo e importância daquele público. Sobretudo, com o olhar que muitos funcionários não possuem.

É preciso valorizar vivências de pessoas negras, LGBTQIA+, com deficiência, mulheres, mães, periféricas, entre outras, como capital humano. Como ressaltei em outra reflexão, "Quando a hashtag sumir, como você continuará sendo antirracista?", é necessário tornar essas pessoas patrimônio do comum.

Produtos feitos por quem, e para quem?

No texto para a UXMP, já explorei alguns “casos sucesso”(contém ironia) na construção de produtos e serviços não inclusivos, mas acho válido contar que eu tenho novos registros.

Ao final das observações demonstro quem são os usuários que as empresas perdem quando não olham para essas questões.

Inteligência artificial não inclusiva

Para falar sobre o bem próximo “mundo Jetsons”, por exemplo, a pesquisadora de Inteligência Artificial Joy Buolamwini traz algumas reflexões sobre a criação machista e racista de soluções oriundas da ciência da computação.

“Freqüentemente presumimos que as máquinas são neutras, mas não são. Minha pesquisa revelou um grande preconceito de gênero e raça em sistemas de IA vendidos por gigantes da tecnologia como IBM, Microsoft e Amazon . Dada a tarefa de adivinhar o gênero de um rosto, todas as empresas tiveram um desempenho substancialmente melhor em rostos masculinos do que femininos. As empresas que avaliei apresentaram taxas de erro de no máximo 1% para homens de pele mais clara. Para mulheres de pele mais escura, os erros subiram para 35%. É hora de reexaminar como esses sistemas são construídos e a quem eles realmente servem", contou em uma entrevista para a Time.

Uma imagem de Michelle Obama, uma mulher negra, em um software da Microsoft mostra como o rosto dela não foi reconhecido.
Joy Buolamwini, Algorithmic Justice League

No mesmo estudo, para entender porque isso acontecia, Joy constatou que “…menos de 2% dos funcionários em funções técnicas no Facebook e Google são negros. Em oito grandes empresas de tecnologia avaliadas pela Bloomberg , apenas cerca de um quinto da força de trabalho técnica de cada uma são mulheres. Encontrei um conjunto de dados governamentais de rostos coletados para testes que continham 75% de homens e 80% indivíduos de pele mais clara e menos de 5% de mulheres de cor”.

Usuários perdidos: mulheres negras e brancas, já que a maioria dos testes foram feitos em homens; pessoas de pele escura porque 20% das IAs não identificam a melanina.

Gênero em formulários

Quando eu encontrei esse estudo de caso sobre UX, em que os campos de gênero contemplaram até mesmo pessoas não-binárias, compartilhei com os meus colegas designers sobre como nosso trabalho ao pensar a experiência era valioso e, mais um vez, eu não estou só falando do valor social.

Micah Bennet, líder de design da Asana, no “Além do binário: 5 etapas para projetar campos inclusivos de gênero em seu produto”, contou como avaliar esses campos poderia alcançar mais clientes ao modificar formulários para um plano de saúde.

“No seguro saúde, o gênero afeta todos os aspectos da nossa experiência do usuário: desde as experiências de inscrição dos membros até as integrações de dados de terceiros”, conta Bennet.

Na imagem temos duas colunas com o que não colocar em um formulário e outra com o que colocar sobre identidade de gênero.
Uma das etapas de descoberta feitas por Micah

Em uma das respostas, os usuários relatam que escolheriam aquela empresa para pagar um plano, do que outras da mesma categoria, devido à valorização da identidade de gênero.

Me faz sentir seguro que eles vão entender o que fazer com meu corpo. Eu me importo com isso. Isso é parte do desconforto, estou dizendo que sou trans, mas sabe o que isso significa? Não quero ter segredos com meu seguro de saúde ”, participante trans masculino.

Usuários perdidos: qualquer pessoa que dê valor para questões de identidade de gênero, além das que transicionaram de gênero, ou que não se identificam com definições binárias. No Brasil, estima-se que existam 752 mil pessoas transsexuais, de acordo com a revista especializada The Lancet.

Acessibilidade e linguagem neutra

O último caso que eu gostaria de comentar é a prova de como esses assuntos se conectam, então, apresento um dos pontos sobre a questão da linguagem neutra, simples e acessibilidade.

Há muito o que discutir sobre linguagem neutra, principalmente pelo fato de termos enumeras dificuldades em como a língua portuguesa também exclui diversas pessoas. Um livro recomendado por diversos professores e estudiosos da área para entender mais sobre o assunto é o “Preconceito Linguístico”, de Marcos Bagno (e que eu ainda não finalizei a leitura). O texto "Adotando a linguagem neutra de gênero" também faz uma breve reflexão sobre como podemos fazer pequenas adaptações no dia a dia, e aos poucos.

O que é possível dizer é: já existem mudanças mais sutis para não prejudicar, por exemplo, pessoas cegas ou de baixa visão que utilizam softwares de leitura. Gustavo Tornieiro, jornalista e ativista, relata a importância da troca da sílaba “e” ao fim das palavras que carregam gênero se essa for realmente uma escolha. A ideia é promover a neutralização e explicar porquê underline (_), @ ou x não são inclusivos. Confira o vídeo abaixo:

Usuários perdidos: pessoas cegas ou de baixa visão, além de usuários que possam passar por momentos de necessidades temporárias usando o software.

O engajamento em causas por si só não paga boleto, oralidade e conhecimento custam caro

Assim como pessoas com pensamentos semelhantes custam caro, ou seja, os mesmos talentos que são recrutados há vários anos, com mentalidades semelhantes e macetes que só mudam de interesse, o conhecimento e as vivências de novos profissionais também custarão.

Precisamos entender definitivamente: o diferencial, seja ele adquirido ao com os obstáculos da vida, ou até mesmo através de capacitação, não podem ser deixados de lado. A tal das soft skills (habilidades comportamentais) que estão na boca dos recrutadores, quando aliadas ao dia a dia são mais que traços de personalidade.

Certa vez, uma conhecida passou por uma situação em que a empresa adorou seu currículo, vibrou com todo o processo seletivo, mas ao final de tudo disse a seguinte frase:

“Você é ótima, mas tem muitas bandeiras, muitos valores sociais. A gente evita contratar pessoas muito engajadas porque somos focados em resultados”.

Essa afirmação soa como se os resultados não influenciassem o pagamento dos boletos de toda pessoa que está sujeita ao mundo profissional. É complexo entender porque pessoas com bandeiras, valores sociais e engajadas, não gostariam de ter dinheiro, já que ele se apresentam como única forma de subsistência.

Pessoas que defendem causas também pagam contas e são ambiciosas, caso alguém tenha achado que vivemos apenas de reflexão.

Posicione-se! Afirme que sua empresa precisa desses profissionais e reconheça isso financeiramente

O que proponho após conectar a busca pela equidade e a necessidade do mercado de tecnologia/produto é: valorizem profissionais que fazem parte dessa busca por conhecimentos específicos, que já tenham essas vivências e que de alguma forma enriquecem seu quadro de funcionários ou até mesmo os que você convida para “palestrar” gratuitamente.

Isso não significa que você precisará excluir os outros, ou não complementar seu negócio com outros conhecimentos, é por isso que existe o conceito multiplicidade. Apesar disso, reconheça que financeiramente você está perdendo dinheiro quando não promove a equidade na sua empresa.

Além do que adquirimos no nosso dia a dia, a construção e busca por novas narrativas e conhecimento para fortalecer essas reflexões também são diferenciais que muitas vezes não estão no currículo. Quando essa mesma pessoa “dá uma aula para você” saiba que ela desprendeu emoções, revistou momentos e resgatou até mesmo a oralidade para que aquelas palavras fossem ditas. Entendam que o valor monetário disso também é o reconhecimento financeiro e profissional.

Termino com a reflexão do episódio “Traduções insubimissas: bell hooks & Eu”, do podcast Diálogos Insubmissos, em uma análise de Deyse Sacramento e Maiana Lima, quando refletem sobre oralidade e tradução de obras literárias e que me motivou de fato escrever sobre esse assunto.

“Não existe discurso sem cor. ‘É você existir para o outro’ (usando as palavras de Fanon); você vai imprimir um jeito de corpo, uma identidade, você tem subjetividade. A língua é instrumento, é ferramenta, é produzir o sentido para o outro”.

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Patrícia Gonçalves
UXMP
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comunicadora, content designer e poetisa quando fico canceriana demais 🏳️‍🌈