Minha identidade de gênero não foi criada no Twitter

Vale.jo
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7 min readJul 15, 2021

Pessoas não bináries existem, quer você queira ou não

Arte: Magui

Era um domingo à tarde e bateu aquele sentimento de solidão típico de pandemia. Infelizmente, meus amigos só estariam disponíveis mais tarde. Então decidi abrir o meu discord e dar uma olhada nos servidores que seguia.

Pra quem não sabe, discord é uma plataforma de conversa, onde várias comunidades se reúnem para falar sobre algum tema. O que você precisa saber, por enquanto, é que uma das principais funções do programa são as chamadas de voz, ou seja, qualquer pessoa que estiver no servidor pode entrar na chamada.

Vejo duas pessoas conversando em um desses servidores, decido arriscar a sorte contrariando a minha timidez, clico no ícone e logo começo a conversar.

Em apenas cinco minutos de conversa já percebo o estranhamento por parte daqueles desconhecidos. Meu nome é tipicamente associado ao masculino, por isso as pessoas presumem que sou um menino logo de cara, mas quando escutam minha voz percebem que não é bem por aí…

Surgiu logo aquela pergunta que muitas pessoas não bináries estão cansadas de ouvir: “Você é menina ou menino?”, a resposta saiu rapidamente da minha boca, nem precisei pensar duas vezes: “Sou gênero fluido”.

Nenhum dos dois conhecia o termo, então expliquei de forma sucinta. “Uma pessoa que tem dois ou mais gêneros e que flui entre eles”.

Em seguida, vieram os comentários transfóbicos, alguns foram bem pesados e, por isso, não irei repeti-los aqui.

No entanto, o que ficou na minha cabeça foi uma frase bem específica:

“É um daqueles gêneros de Twitter”

Sobre Gênero Fluido

Vamos falar um pouco sobre o que é gênero fluido, genderfluid em inglês. Em resumo: uma pessoa que se identifica como tal, se vê em mais de um gênero, mas não o tempo todo.

Nós fluímos entre nossos gêneros de diversas formas.

Pode ser por dia, pequenos momentos, ou até por anos. Os gêneros também variam, saindo dos clássicos homem e mulher. No meu caso, eu entro nesse estereótipo. Às vezes sou menina, outras vezes sou menino.

Assim como Lara, em seu relato sincero sobre fluidez de gênero postado aqui no Medium, eu também encontro dificuldade de explicar sobre o que é fluir entre gêneros. As suas palavras me ajudam a decifrar o sentimento:

“É algo até meio difícil de explicar, mas a gente sente que mudou… A forma como eu falo (desde tom de voz até os pronomes que eu penso!), a forma como eu sento, como eu ajo, como eu reajo à situações, tudo muda. Mas só a pouco tempo que eu realmente assumi pra mim mesme e aceitei de verdade que sou gênero fluido.”

Tudo isso gera questionamentos (que muitas vezes viram acusações), de que reforçamos os estereótipos de gêneros, mas não é bem por aí.

“A coisa vai bem mais além. É algo que a gente sente. É algo que simplesmente a gente é. Concordo que a gente usa os estereótipos para exteriorizar o gênero. Se a sociedade vê determinado símbolo como mais masculino ou mais feminino, e nosso cérebro está carregado com essas informações, a gente vai usar estas informações para botar pra fora como a gente se sente.”, relata Lara.

Ou seja, nós usamos de mecanismos que já existem em nossa sociedade para externalizar o gênero que estamos. Contudo, sabemos que a sociedade é bem complexa.

Quando saio com minhas roupas “masculinas”, não espero que me chamem de ele (embora eu anseie por isso), pois eu sei que seria lido como uma mulher masculina. Mas caso alguém me chame de “moço”, ficarei bem feliz.

Assim como várias outras subclasses na categoria não binárie, fluir entre gêneros é visto como não normal. Como algo inventado por millennials.

Arte: Magui

Mas agora, eu dou a mesma resposta que dei àqueles caras: “Todo gênero é inventado

Como o criador de conteúdo Nick Nagaria explica em seu Guia Básico da Não-Binariedade, utilizando Thomas Laqueur como referência, desde os primórdios entendia-se que só havia um único sexo. As vaginas, por exemplo, eram vistas como testículos não desenvolvidos.

Foi entre os séculos XVIII e XIX que ocorreu uma separação. Isso aconteceu durante o final do Iluminismo e por quase toda Revolução Industrial. Essas duas épocas foram marcadas por uma ciência que se dedicava quase exclusivamente à catalogação e divisão em todas as áreas.

Sendo assim, meu gênero pode até ter sido inventado no Twitter, mas isso não o diminui, já que todos foram inventados.

Apanhando dos dois lados

Caso você ainda tenha dúvidas sobre as não binariedades, recomendo muitíssimo o texto de Nick Nagaria, que citei acima.

Tudo bem ainda ter dúvidas sobre o assunto, o ruim é continuar na ignorância, pois esta é a raiz da transfobia, ou nesse caso, como gosto de chamar, da não bináriofobia.

Foi isso que aconteceu comigo naquela tarde e ainda acontece com milhares de pessoas cujo gênero vai além dos conceitos de homem e mulher — em alguns casos é bem mais grave.

Quando alguém acaba se descobrindo não binárie, essa pessoa espera encontrar apoio na comunidade LGBTIA+ ( sim, tirei o Q de propósito, já que o gênero não binárie é representado pelo queer e, uma pessoa não binárie, não reproduz essa não bináriofobia). Já que o lado cisgênero e heteronormativo já tem uma predisposição a nos rejeitar.

Nós entramos no vale em busca de acolhimento, compreensão e um pequeno espaço para sermos nós mesmos. É uma linda teoria que na prática nem sempre acontece.

Já aconteceram vários casos de pessoas LGBTIA+ inferiorizando pessoas como eu, seja indiretamente, não levando a sério nossas identidades ou, diretamente, zombando do pronome neutro e dizendo que “se não é mulher e nem homem, não existe”.

Vivenciei dois casos que me decepcionaram muito. O primeiro foi com meu irmão que disse exatamente a frase acima. Ele é um homem cisgênero e hétero.

O segundo caso foi quando ouvi a Nany People dizer as mesmas coisas, uma mulher que era alvo de minha admiração. Para ela, eu simplesmente não existo.

Acabamos apanhando dos dois lados. No fim, é como canta Emicida: “tudo o que nóiz tem, é nóiz”.

Me descobrindo

Me entendi como uma pessoa gênero fluído no ano passado, aos 19 anos. A Pandemia me obrigou a passar mais tempo comigo mesmo, assim não pude mais ignorar os pensamentos que eu tinha desde sempre.

Arte: Magui

Antes disso, eu achava que eu era apenas uma garota com um estilo mais masculino, só que eu podia sentir que tinha algo além.

Às vezes, enquanto me arrumava para ir à escola, conseguia ver um garoto no espelho. Eu fugia daquilo como “o diabo corre da cruz”. Eu me recusava a ser transgênere.

Eu tinha tanto medo da rejeição que eu podava a minha sexualidade também. Era mais fácil para minha família aceitar uma lésbica masculina do que uma pessoa trans.

Eu repetia para mim mesmo quase em um loop interminável toda vez que eu via aquele garoto: “Eu não posso ser trans. Sou uma garota, gosto de ser mulher, uso saia, vestidos, não tenho disforia de gênero”.

Na época, eu já tinha a noção que roupa não define gênero, mas aquele era um pequeno consolo ao qual eu me apegava. A parte da disforia levou mais tempo, entender que nem toda pessoa trans sofre desse problema foi uma parte crucial para me aceitar.

Quando entrei em contato sobre fluidez de gênero, tudo começou a fazer mais sentido, nem tudo era preto no branco, não havia regra para fluir. O único parâmetro é seu autoconhecimento. O que você sente e como sente é o que indica a mudança.

Usar minha verdadeira identidade de gênero no mundo causa várias reações, incluindo as ações preconceituosas como daqueles caras do discord.

No entanto, eu também achei amor.

Um dos momentos mais lindos da minha vida foi quando uma amiga me disse: Sempre quis ter um melhor amigo e uma melhor amiga, com você posso ter os dois”.

A gente apanha, mas às vezes é abraçado.

A cartada final

Acho que muitas pessoas têm medo de dizer que são trans, nem sempre por receio de sofrerem transfobia.

Estou falando de outro tipo de medo, o de ser invalidade.

Arte: Magui

Há um medo de se reconhecer trans e com o passar do tempo perceber que não é essa a sua identidade. Ou ainda, ter um gênero que foge tanto do padrão que não tenha ninguém para lhe dar apoio. Ou ser só uma fase, uma paranoia…

Eu tinha esses medos, até que aprendi uma coisa: só você pode afirmar sua identidade.

A partir do momento em que você fala: “sou homem”, “sou mulher”, “sou nenhum”, “os dois”, “algo no meio”, “às vezes” ou, “talvez”….ACABOU. As pessoas têm a obrigação de te tratar de tal maneira até que você diga o contrário.

E se nesse meio tempo você encontrar uma identidade de gênero que lhe represente mais, ou querer voltar para antiga, está tudo bem. Se os outros reclamarem, são eles que estão errados.

Só você pode dar a cartada final.

Escrito por: Alex Gaeta

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