Resenha: A Vida Mentirosa dos Adultos

Gabi Müller
7 min readAug 7, 2020

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Dois anos antes de sair de casa, meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia.

Conheci Elena Ferrante em janeiro de 2019, no desafio que eu mesma propus. Um ano e meio depois, com todos os livros de ficção terminados — a única obra que não li ainda foi Frantumaglia — , duas resenhas no site e uma gata batizada em sua homenagem, nos reencontramos em seu mais recente lançamento.
Minha proposta hoje é dividir essa resenha, se é que posso chamá-la assim, em duas partes. A primeira se propõe a analisar a obra como sempre faço; a segunda, por sua vez, organiza meus pensamentos acerca de por que discordo do posicionamento da Intrínseca em lançá-la no clube de assinaturas, por que discordo inclusive de a editora tomar para si a autora, entre outras questões mais pertinentes à distribuição e marketing do “Mundo Ferrante”.

(…) não sou nada, nada de meu, nada que tenha de fato começado ou se concretizado: só um emaranhado que ninguém, nem mesmo quem neste momento escreve, sabe se contém o fio certo de uma história ou se é apenas uma dor embaralhada, sem redenção.

Essa frase, que finaliza a primeira página do romance que aqui trataremos te lembra algo? Não, não me refiro a Fernando Pessoa, embora pudesse ser, mas a uma outra colocação muito semelhante feita por Lenù em A História do Novo Sobrenome. Eu não consigo deixar de pensar em todos esses livros como um ferranteverso, em que todos os personagens estão interligados de alguma forma. Giovanna, a personagem principal de A Vida Mentirosa dos Adultos, é uma adolescente de treze anos, filha de dois professores, que frequenta círculos de intelectuais e tem sua vida abalada ao entreouvir uma conversa em que é comparada à sua tia Vittoria. A tia, diferentemente dos pais, vive na parte mais pobre de Nápoles, não teve estudos e é grande motivo de vergonha para o irmão, pai de Giovanna.
Por ter sempre escutado as piores coisas sobre Vittoria, Giovanna fica completamente transtornada e, como toda boa Saga do Herói, esse é o ponto de partida para que a vida dela vire de cabeça para baixo. Ela deseja conhecer melhor essa mulher misteriosa para entender de onde vem essa comparação e, então, evitá-la — ou se transformar definitivamente.

Pra mim, como todos os livros de Elena Ferrante, o mais importante não é a história, mas o desenvolvimento das personagens enquanto alguns fatos acontecem. Sabemos desde o início que seu pai sairá de casa; sabemos que em algum momento ela encontrará sua tia e que algo acontecerá a partir disso; sabemos que acontecerá um choque entre dois mundos distintos. De fato, quando comecei a ler, fiquei desanimada. Senti uma semelhança muito forte com a tetralogia napolitana: parecia que era uma filha da Lenù escrevendo sobre o relacionamento de seus pais. Giovanna tem traços muito semelhantes com a narradora de A Amiga Genial, mas um pouco do atrevimento de Lila, como se fosse o balanço entre as duas. Vittoria me soou uma Lila depois dos acontecimentos traumáticos de A História da Menina Perdida. Nella, a mãe de Giovanna, poderia ser um paralelo com Olga de Dias de Abandono? Além de, claro, os personagens masculinos que são misturas de Ninos, Pietros, Marcellos e outros.
Nos livros de Ferrante também, a relação com a mãe é sempre muito representada — e em como isso nos afeta diretamente enquanto crescemos. Aqui, porém, há um enfoque grande na relação com o pai. Esse foi o primeiro gancho que me puxou. Na tetralogia principalmente, algo que sempre me incomodou foi, ao dar mais complexidade ao relacionamento de mãe e filha, o pai de Lenù se apagou e, como acontece na vida real, o pai me pareceu julgado isento de qualquer culpa sobre o que veio a acontecer com sua filha: nasce uma mãe, nasce a culpa. Elena Greco reforça continuamente seus problemas com sua mãe e, embora entendamos a relação de poder ali estabelecida e que, ao final, exista um tipo de redenção para essa mulher tão abominável, é difícil não se pegar a odiando. NA Vida Mentirosa, porém, a relação é outra. O rancor se direciona ao pai que foi embora, que fez a mãe sofrer. Há momentos em que Giovanna é dura com sua mãe e se refere a ela como fraca, mas as poucas frases que são permitidas a essa personagem são muito significativas para perceber que a garota consegue, afinal, canalizar os sentimentos para onde está o real problema ali.

Obviamente, um pouco dessa relação entre uma figura de autoridade feminina é transposta na tia. No entanto, se torna muito mais sobre uma profecia a ser realizada ou não, a partir do momento em que Giovanna precisa escolher se ela quer se tornar aquela mulher. Objeto de fascínio e repulsa, essa questão molda todo o mundo ao redor da adolescente, ora se afastando dela, ora se aproximando.

Vittoria me pareceu de uma beleza tão insuportável que considerá-la feia se tornava uma necessidade.

No final das contas, o livro não deixa de surpreender pelas observações certeiras da autora, que parece conseguir sempre espremer algo mais sobre o mesmo círculo restrito de Nápoles. Dizem as más línguas, inclusive, que esse é o primeiro volume de sua próxima série. Aguardemos os próximos capítulos.

Aqui no Brasil, a tetralogia e o Dias de Abandono foram traduzidos e publicados pela Biblioteca Azul, selo da Editora Globo. Os demais livros avulsos foram todos pela Intrínseca. De acordo com o ranking da PublishNews de hoje, esta é a quinta maior editora do país. Então, podemos entender por que eles conseguiram sair na frente da compra de uma das autoras mais badaladas do momento. O problema disso tudo está na falta de capacidade da editora de trabalhar uma autora como a Elena Ferrante.
Enquanto a Biblioteca Azul é conhecida por suas lindíssimas edições de Valter Hugo Mãe, por publicar autoras como Sylvia Plath e Alice Munro, entre tantos outros autores de renome, o que mais movimenta a Intrínseca é o young adult e os romances românticos. Foram eles que estouraram com a saga Crepúsculo, os livros do John Green,de Jojo Moyes e Jenny Han. Não podemos esquecer também que foi a editora que colocou na nossa terra o sucesso 50 Tons de Cinza. Obviamente, a Intrínseca vive exclusivamente disso. Eles publicam grandes autores como Elio Gaspari, Kurt Vonnegut e Markus Zusak. O ponto em comum em todos eles é que são best sellers. Partindo deste princípio, eles passaram a publicar Elena Ferrante e, claro, ela é uma autora que se vende sozinha. No lugar deles, eu provavelmente faria o mesmo. Só que, como consumidora — e também como profissional do marketing — , isso me deixa bastante irritada.

O burburinho de que o lançamento de A Vida Mentirosa dos Adultos seria antecipado — a previsão era setembro a princípio — ficava cada vez mais forte e, então, se confirmou que sim, seria lançado antes, porém somente para o clube de assinantes Intrínsecos. Supostamente, isso seria um presente para os assinantes. Basta ver os comentários nas redes sociais para perceber que era uma desculpa esfarrapada para vender o clube para novos assinantes que queriam receber o livro antes de setembro, já que os membros antigos não são o público-alvo da Elena Ferrante: a grande maioria das pessoas diz que abandonou a história antes de chegar à página 100 — num total de mais de 400. (Agora, pro meu gosto pessoal também, esse clube sempre foi o mais malandro que dava pra ser: só mudar a cor da capa todo mês? Me respeita. Olha o que a TAG faz!)

Eu não preciso nem falar da preguiça que a Intrínseca tem de fazer as capas comuns dos livros da Elena, né? Aquela padronagem que eles usam para os livros do Anthony Doerr, Celeste Ng e, claro, da Elena — esses são os que eu lembrei de cabeça, se alguém lembrar de mais algum, manda aí! — que alguém pode tentar justificar com alguma lógica, mas eu duvido que realmente haja. Então, para o novo livro, eles decidiram mudar o padrão. Certo. Foi aí que eu precisei ir atrás da edição do Intrínsecos porque honestamente me parece que ninguém tem a menor ideia sobre o que estão fazendo lá depois da capa que decidiram lançar pra edição oficial. Comprei — adivinhem! — de uma das assinantes do clube que largou o livro na página 60.

No meu curso de Marketing Editorial 360, o professor disse logo na primeira aula que branding não é tão importante para o mercado de livros e eu posso estar enganada, afinal, ele é o diretor de marketing da Rocco e eu sou, bem, eu, mas vou defender até o fim dos dias que você não tem como publicar um livro se você não souber trabalhá-lo.
Sabe quem mais a Intrínseca publica? A Lionel Shriver. Curioso que, quando O Mundo Pós-Aniversário foi lançado, tinha uma pilha enorme bem na entrada da Saraiva da minha cidade; hoje em dia, é um livro fora de catálogo. Ele também é o meu livro preferido da vida. Lionel Shriver virou best seller nos Estados Unidos e, depois, no mundo todo por causa de Precisamos Falar Sobre o Kevin. Eu me pergunto se, no Brasil, mais pessoas teriam acesso a essa autora se estivesse nas mãos de uma editora que soubesse trabalhá-la.

Intrínseca, se estiver precisando de alguém no departamento de marketing pra trabalhar com suas autoras feministas, eu sou pós-graduada em gestão de marketing. Sei que vocês também têm a Lolita Pille que deve tá pegando poeira aí. Podemos fazer maravilhas juntas. Me liga.

NOTA: ⭐️ ⭐️ ⭐️ ⭐️

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