O passo a passo da criatividade ensinado por Mary Shelley, autora de Frankenstein

Sérgio Barcellos Ximenes
21 min readMay 26, 2020

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Tema: a demonstração do pioneirismo da escritora inglesa Mary Shelley (1797–1851) na área da criatividade, ao descrever de maneira subjetiva as fases básicas do processo criativo (ou seja, de geração de ideias ou solução de problemas), em sua Introdução para a terceira edição do romance Frankenstein ou o Prometeu Moderno, originalmente lançado em 1818.

As fases do processo criativo: preparação, incubação, iluminação e verificação, segundo o modelo criado pelo inglês Graham Wallas em seu livro The Art of Thought (1926), o qual constitui uma descrição objetiva, complementar à realizada por Mary Shelley quase 100 anos antes.

Conteúdo adicional: uma nova tradução integral da Introdução da terceira edição de Frankenstein, ao final do artigo.

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A primeira descrição subjetiva do processo criativo (1831)

A introdução à terceira edição de Frankenstein ou o Prometeu Moderno (1831), escrita pela própria autora da história, Mary Shelley (1797–1851), corresponde a um breve curso sobre o processo criativo, além de fornecer dicas valiosas sobre a técnica do romance e sobre a relação das histórias com as experiências dos leitores.

Imagem do site Frankenstein in the Musical — http://www.frankensteinthemusical.com/education/education.html

Muitos já conhecem a curiosa história da criação desse clássico da literatura universal. Era o ano de 1816. Mary, uma jovem inglesa, filha de dois escritores, vivendo então com o poeta Percy Shelley, tinha como passatempo favorito, em suas próprias palavras, “a formação de castelos no ar”. Explicando: o passatempo consistia no desenvolvimento, em fantasia, de histórias das quais Mary não participava como personagem, caracterizadas por uma “sucessão de incidentes imaginários” (p. V).

Naquele ano de 1816, o casal Shelley passou o verão na Suíça, em companhia do poeta Lord Byron, de Claire Clairmont, meia-irmã de Mary e amante de Byron, e de John William Polidori, médico particular de Byron e aspirante a escritor. As chuvas incessantes obrigaram os amigos a ficar muito tempo retidos em casa, onde se dedicaram à leitura coletiva de histórias de fantasmas traduzidas do alemão para o francês, de um livro de contos de horror intitulado Fantasmagoriana (1812), versão francesa do primeiro volume do original alemão Gespensterbuch (1811–1815). Essa leitura impressionou a jovem Mary, por causa de um elemento presente em duas de suas histórias, citadas na Introdução de Frankenstein: ambos os protagonistas eram fantasmas eternamente condenados ao sofrimento.

Lord Byron, igualmente estimulado por essas leituras, fez uma proposta ao grupo de amigos:

“Cada um de nós escreverá uma história de fantasma” (p. VII).

Byron escreveu um fragmento de romance, logo abandonado (e depois usado por Polidori para criar uma das primeiras histórias de vampiros, The Vampire [O Vampiro], cujo protagonista, Lord Ruthven, era uma caracterização impiedosa do próprio Byron). A iniciante Mary Shelley, desafiada pela primeira vez a criar um texto literário a ser avaliado por escritores profissionais, viveu também pela primeira vez a experiência do “bloqueio criativo”: pensava, pensava, pensava… e nada ― não lhe vinha nenhuma ideia interessante.

Mary nos oferece na introdução um registro detalhado do esforço pessoal para criar a história. Nessa descrição encontram-se presentes todas as fases do processo de geração de ideias criativas, de acordo como o modelo clássico que somente seria adotado pela Psicologia cerca de 100 anos depois.

1. A aceitação consciente do desafio à própria capacidade criativa.

Não importa a origem da tarefa: o desafio criativo deve ser assumido pela pessoa e considerado como algo importante. Só assim terá início o processo de raciocínio e experimentação que levará, se bem-sucedido, à descoberta da ideia.

No caso de Mary, a essência da proposta feita por Lord Byron harmonizou-se com sua atividade mental preferida: a criação de histórias centradas em outras pessoas, e não em si mesma. Até mesmo o tema sugerido por Byron representou uma coincidência de interesses: Mary sentia-se então muito impressionada pela leitura das histórias de fantasmas.

“Não reli essas histórias desde então [afirmação feita em 1831], mas os incidentes delas se encontram tão vívidos em minha mente como se as tivesse lido ontem” (p. VII).

A essa pressão interna somou-se a pressão externa, em dose dupla. Percy Shelley, o marido, vinha insistindo com Mary no sentido de fazê-la dedicar-se à literatura:

“[…] desde o início [ele] estava muito ansioso, por considerar que eu deveria provar-me digna de meus pais e me inscrever nas páginas da fama. Sempre me estimulava a garantir uma reputação literária, com qual eu naquele tempo me importava […]” (p. VI).

O segundo fator de pressão externa foi mais imediato: a intenção de fazer bonito para não desapontar a companhia ilustre, não somente do amado, mas também dos outros dois escritores.

Ou seja, a proposta de Byron representou para Mary o famoso ponto de não retorno, o momento em que a pessoa não pode mais adiar, por motivos internos e externos, a realização de uma tarefa trabalhosa. Tinha chegado a hora de Mary Shelley provar a si mesma: era capaz de escrever um texto literário de qualidade.

O importante, nesse caso, foi a atitude da jovem inglesa. Ela não recusou imediatamente a proposta, não se rebelou contra a pressão do companheiro e de seus eventuais competidores, nem se considerou incapaz de completar a tarefa, ou mesmo procurou adiar a realização dela. Pelo contrário, assumiu a tarefa como sua responsabilidade. Todos os estudos sobre criatividade consideram a automotivação (ou, no jargão da Psicologia, motivação intrínseca) como um fator essencial para o sucesso do esforço criativo.

Resumindo essa atitude numa frase: “eu preciso e quero fazer isso agora”.

2. A definição de critérios claros para avaliar o esforço criativo.

Se a pessoa não sabe o que está procurando, como saberá que o encontrou? A proposta de Byron continha um aspecto em aberto: o modo de desenvolvimento da história. A forma já estava definida de antemão: um conto em prosa, mas quanto ao conteúdo, Mary precisava definir sozinha seu propósito artístico e os critérios com os quais julgaria as ideias preliminares, no processo de escolha daquela que fosse a mais adequada para as suas intenções literárias.

O parâmetro de comparação adotado por Mary foi claro e preciso:

“[…] uma história para rivalizar com aquelas que nos haviam inspirado essa tarefa. Uma que falasse diretamente aos medos misteriosos de nossa natureza [humana] e suscitasse um horror eletrizante ― uma que causasse no leitor o pânico de olhar ao redor e fizesse gelar o seu sangue e acelerar os batimentos do seu coração. Se eu não conseguisse esses efeitos, minha história de fantasma seria indigna de seu nome” (p. VII).

Mais claro, impossível. Mary sabia exatamente aonde desejava chegar — em outras palavras, seu consciente sabia o que sua mente deveria lhe fornecer. Até o momento da feliz descoberta de uma ideia cujo desenvolvimento suscitasse aqueles mesmos efeitos emocionais em quem a lesse, a tarefa criativa inicial não seria considerada bem-sucedida.

3. A dedicação incessante ao propósito.

“Eu vou fazer isso, não importa quanto tempo demore” é a atitude típica de quem se dedica a uma tarefa criativa por motivação própria, mesmo se a tarefa teve origem externa. O ponto chave é continuar querendo e continuar se esforçando no sentido da descoberta, da solução ou da compreensão, conforme seja a natureza da tarefa.

O modelo clássico do estudo da criatividade baseia-se na conceituação de dois níveis diferentes de atividade mental.

O nível consciente, aquele relativo ao ego ou “eu”, cumpre as funções de assumir uma tarefa, buscar a solução de um problema, definir os critérios de avaliação da ideia criativa ou da solução do problema, ficar receptivo às sugestões internas, avaliar as ideias geradas, colocá-las em prática e experimentar alternativas.

Já o nível inconsciente ou subconsciente, a partir da determinação de uma tarefa intelectual ou da identificação de um problema pelo nível consciente, cumpre as funções de elaborar mentalmente os dados disponíveis da tarefa ou do problema, organizando-os e reorganizando-os de várias maneiras, para então gerar ideias criativas ou soluções viáveis.

Os dois níveis diferem em um ponto fundamental. A elaboração mental do consciente é “ruidosa”; a do inconsciente é “silenciosa”. Durante o período de trabalho do nível inconsciente, o “eu” não tem nenhum meio de saber quão próximo ou quão distante se encontra do momento da descoberta ou da solução, ou mesmo se algum trabalho importante está sendo realizado abaixo da consciência. Somente quando o processamento silencioso chega a um ponto ótimo, dá-se então o fenômeno da geração súbita de uma ideia: o consciente é “informado” de maneira clara (o caso do “insight”, ou da experiência denominada “aha!”), ou talvez sutilmente (o caso da intuição), de que foi produzido um novo conteúdo relevante para seu propósito. Esse conteúdo será, então, avaliado pelo consciente de acordo com os critérios preestabelecidos.

Em termos psicológicos, continuar conscientemente a se dedicar ao cumprimento da tarefa ou à solução do problema equivale a dar tempo e a fornecer novos elementos para que a elaboração subconsciente se processe do modo mais adequado. Mas quem decide qual é esse modo, os elementos necessários para ele, o tempo de elaboração e o produto final, jamais é o “eu”.

Mary Shelley não desistiu de criar a história, apesar do fracasso inicial. À essa pressão interna somou-se a pressão externa representada pelos lembretes constantes dos companheiros de aventura literária:

“Perguntavam-me todas as manhãs, e a cada manhã eu era forçada a responder com uma negativa mortificante” (p. VII).

4. O período de incubação.

Quando o nível mental subconsciente ainda não possui todos os elementos para proporcionar uma comunicação satisfatória ao nível consciente, ou quando ele ainda não completou com sucesso a reorganização dos elementos já disponíveis, ocorre uma aparente estagnação da atividade criativa.

“Senti aquele vazio [causado] pela incapacidade de invenção que é a maior miséria dos autores, quando o tedioso Nada responde às nossas invocações ansiosas” (p. VII).

Poucas vezes alguém expressou de modo mais preciso as experiências desse período de aridez criativa, chamado de incubação pelos estudiosos da criatividade.

A incubação se segue à fase de preparação, e esta se constitui basicamente de esforços conscientes (e inúteis) para se obter a ideia criativa ou a solução do problema.

A essência do processo criativo é um pedido (melhor seria dizer “exigência”) do nível consciente ao nível subconsciente, seguido da resposta que pode ser imediata, caso todos os elementos para ela já estejam de posse do subconsciente, ou demorada, caso precise haver uma reorganização desses elementos ou o acréscimo de novos elementos, a serem buscados pelo nível consciente. Nos dois casos, a fonte da criatividade é o nível subconsciente de nossas mentes, e não o nível consciente. Mary expressou esse fato de modo inequívoco, ao fazer “invocações ansiosas” e receber como resposta um “tedioso Nada”. Essa é a experiência típica do período de “incubação”, do ponto de vista do ego.

A falta de experiência de Mary Shelley na área dos esforços criativos impediu que ela interpretasse a vivência do modo correto: “ainda faltam alguns elementos essenciais; ainda é necessário algum tempo até o surgimento da resposta desejada”.

Quem não conhece as fases do processo criativo e o modo como elas são vivenciadas no nível consciente pode passar do “eu não estou conseguindo”, o fato concreto e objetivo, para o “eu jamais conseguirei”, a indevida projeção da incapacidade pessoal, do presente para o futuro. Ou, pior ainda, pode chegar ao “eu sou incapaz”, o estabelecimento de um conceito definitivo de inferioridade no âmbito da identidade pessoal.

5. A influência do acaso na finalização do processo criativo.

Muitas vezes, o elemento necessário ao nível subconsciente para completar com sucesso a tarefa surge de um fato fortuito. É a conhecida participação do acaso no processo criativo, tema de vários livros nessa área de estudo. O novo dado, somando-se aos elementos já existentes, torna-se o ponto chave da resolução do problema.

O elemento que faltava ao subconsciente de Mary veio de uma conversa. A jovem era uma ouvinte silenciosa das longas discussões amigáveis entre Percy e Byron. Entre os vários temas abordados estavam as doutrinas filosóficas. Numa dessas conversas, os dois amigos especularam sobre “a natureza do princípio da vida”, teorizando sobre a possibilidade de introduzi-lo em um corpo inerte:

“[…] talvez as partes componentes de uma criatura pudessem ser produzidas, agregadas de modo harmônico e depois providas de calor vital” (p. VIII).

Era o elemento ausente na equação do problema de Mary Shelley.

6. O aparecimento súbito da solução na consciência, sem a participação do consciente.

Mary conta na Introdução de Frankenstein: naquela noite, ao tentar dormir,…

“Minha imaginação, espontaneamente, me possuiu e me guiou, apresentando-me imagens sucessivas que surgiram em minha mente com uma vivacidade muito além dos limites usuais de um devaneio. Vi ― de olhos fechados, mas com uma visão mental aguda ―, vi o pálido estudante de artes não consagradas, de joelhos ao lado do que ele havia reunido [organicamente]. Vi o fantasma hediondo de um homem estirado e, em seguida, ao funcionamento de algum motor potente, esse homem mostrar sinais de vida e mexer-se com um movimento meio vital e desajeitado” (p. VIII).

… e Mary segue descrevendo a cena em que Victor Frankenstein dá vida à sua criação monstruosa, feita de pedaços de corpos de outros seres humanos. Descreve também a reação de horror sentida por ela, Mary, às imagens espontâneas geradas pela própria imaginação ― o nome dado por Mary àquela manifestação do nível mental subconsciente.

Assustada, a jovem abriu os olhos e tentou se desligar da fantasia, primeiro prestando atenção ao ambiente onde se encontrava. O truque não funcionou. Então, como se o próprio subconsciente estivesse lhe comunicando o verdadeiro significado daquela cena, Mary pensou na história que ainda precisava escrever:

“Ah! Se ao menos eu conseguisse inventar uma história que assustasse meu leitor como eu mesma me sentia assustada naquela noite!” (p. IX).

E deu-se o insight, a emergência da ideia ou solução, elaborada pelo nível subconsciente, no nível consciente.

“Rápida como a luz e tão vibrante quanto ela foi a ideia que me invadiu. ‘Eu a encontrei! O que me aterrorizou aterrorizará as outras pessoas, e eu só preciso descrever o espectro que me assombrou minha insônia noturna’.” (p. IX).

Na manhã seguinte, Mary comunicou a notícia ao grupo de amigos: havia encontrado a ideia central para a história proposta por Byron. Mais tarde, ao iniciar a redação, Mary pensou em escrever um conto curto, mas Percy Shelley fez ver à esposa a importância de um desenvolvimento mais completo para aquela ideia tão original. Dois anos depois, em 1821, nascia uma obra-prima do terror: Frankenstein ou o Prometeu Moderno.

Além da aula de criatividade representada pela descrição de Mary, a introdução de Frankenstein também oferece um interessante relato sobre o relacionamento de uma romancista com o seu leitor virtual, isto é, aquele ao qual se destina a narrativa.

Mary só considerou como terminada a busca da história porque aquela súbita manifestação de criatividade combinou com o seu critério estabelecido para a realização da tarefa (veja o item 2. acima). A introdução revela claramente essa escolha: Mary tomou-se como o próprio leitor virtual do livro, usando suas reações como ponto de referência para julgar a adequação do conteúdo (veja o item 6. acima).

Ao escrever a história, a romancista certamente utilizou essa referência para julgar o efeito das cenas, descrições e interações entre os personagens. Se ela, como leitora, passasse pelas experiências definidas no item 2., seus leitores seriam afetados da mesma maneira. O sucesso do livro, através das gerações, testemunha a favor dessa escolha técnica de Mary Shelley.

O mesmo não se pode dizer de alguns escritores modernos que optam por transferir ao leitor virtual o seu próprio grau elevado de cultura, erudição e inteligência (real ou suposto). Assim fazendo, criam um destinatário talhado para representar somente uma parcela ínfima dos leitores reais, e cujas reações imaginadas não servirão para orientar esses escritores no seu propósito de conceber uma história de grande relevância humana.

Com o nome de Mary Shelley deu-se a mesma curiosa situação ocorrida com o nome de Bram Stoker: as criações desses autores (o monstro produzido pelo Dr. Frankenstein, no caso de Mary, e Drácula, no caso de Stoker) são conhecidas universalmente; seus criadores humanos são praticamente desconhecidos do grande público ― embora Frankenstein e Drácula ocupem os lugares mais elevados entre os clássicos da literatura de terror.

E, finalmente, para provar que nem sexo nem idade são critérios determinantes da Grande Arte, Mary Shelley era uma jovem de 18 anos quando começou a escrever a obra tão desejada por ela. Frankenstein foi publicado em 1818, quando Mary estava com 21 anos.

Observações finais

1. Pode-se descrever um processo mental de dois pontos de vista: o subjetivo e o objetivo.

Mary Shelley descreveu o processo criativo do ponto de vista subjetivo, revelando as vivências de quem passa por esse processo.

Do ponto de vista objetivo, o processo criativo só teve sua descrição estabelecida em 1926, portanto quase 100 anos após a introdução escrita por Mary em 1831. No livro The Art of Thought (A Arte do Pensamento), o inglês Graham Wallas identificou as fases de preparação, incubação, iluminação (a fase do insight) e verificação (a fase de avaliação da ideia), terminologia hoje utilizada por quase todos os estudiosos da criatividade.

2. Este artigo foi publicado originalmente no extinto Blog do Romance, em 2004, e depois lançado em livro digital, na Amazon, em 2016 (A Técnica do Romance — Dicas de Análise e Criação).

Durante esse período busquei em artigos e livros sobre a criatividade, entre esses várias enciclopédias lançadas nos Estados Unidos, alguma menção ao pioneirismo de Mary Shelley no estudo dessa habilidade mental humana.

Ainda não a encontrei.

Referências das citações

. Frankenstein, Mary Shelley, Dover, 1994.

. A introdução original, no site Romantic-Circles:

https://romantic-circles.org/editions/frankenstein/1831v1/intro

Tradução da introdução de Mary Shelley à terceira edição do romance Frankenstein (1831)

Os editores das Standard Novels (Romances Clássicos), ao selecionarem Frankenstein para uma de suas séries, expressaram o desejo de que eu lhes fornecesse algum relato da origem da história. Estou disposta a concordar porque assim poderei oferecer uma resposta geral à pergunta que me é feita com tanta frequência: “Como eu, então uma jovem, cheguei a pensar e a me deixar levar por uma idéia tão hedionda?” É verdade que sou muito avessa a me expor na imprensa, mas como meu relato parecerá somente um apêndice de uma produção anterior, e como ele permanecerá confinado a tópicos que guardam conexão apenas com minha autoria, não poderei me acusar de intromissão pessoal.

Não é singular o fato de que, como filha de duas pessoas célebres na literatura [Mary Wollstonecraft, autora femininista, 1759–1707; e William Godwin, romancista, 1756–1836], eu deveria, desde muito cedo, ter pensado em escrever. Quando criança, escrevinhei, e meu passatempo favorito, durante as horas de recreação, era “escrever histórias”. Ainda assim, tinha um prazer mais precioso do que isso, que era a formação de castelos no ar ― a entrega aos sonhos acordados ―, seguindo as linhas de pensamento que tinham como objeto a formação de uma sucessão de incidentes imaginários. Meus sonhos foram ao mesmo tempo mais fantásticos e agradáveis ​​do que meus escritos. Nesses, eu era uma imitadora fiel ― mais fazendo como os outros do que registrando as sugestões de minha própria mente. O que eu escrevia era destinado ao menos para um outro olhar — minha companheira e amiga de infância; já os meus sonhos eram somente meus: não os contava a ninguém, eram o meu refúgio quando aborrecida e o meu maior prazer quando livre.

Vivi a maior parte do tempo no campo, quando menina, e passei um período considerável na Escócia. Fiz visitas ocasionais às sus regiões mais pitorescas, mas minha residência habitual situava-se nas costas vazias e sombrias do norte do Tay, perto de Dundee. Vazias e sombrias em retrospectiva, eu as chamo; eles não eram dessa natureza para mim, então. Eram o ninho de águia da liberdade, e a região agradável onde, desligada do mundo, eu podia comungar com as criaturas da minha fantasia. Escrevi então ― mas no estilo mais comum. Sob as árvores dos terrenos pertencentes à nossa casa, ou nos lados sombrios das montanhas sem bosques, próximas a ela, as minhas composições verdadeiramente minhas, os voos arejados da minha imaginação nasceram e foram acalentados. Não fiz de mim mesma a heroína desses contos. Minha vida me parecia um assunto muito trivial. Eu não conseguia imaginar que angústias românticas ou eventos maravilhosos seriam algum dia o meu destino; mas eu não estava confinada à minha própria identidade e podia povoar as horas com criações muito mais interessantes para mim, naquela idade, do que minhas próprias sensações.

Depois dessa fase, minha vida se tornou mais movimentada, e a realidade tomou o lugar da ficção. Meu marido, no entanto, desde o início estava muito ansioso, por considerar que eu deveria provar-me digna de meus pais e me inscrever nas páginas da fama. Sempre me estimulava a garantir uma reputação literária, com qual eu naquele tempo me importava, embora desde então tenha me tornado infinitamente indiferente a ela. Mas, então, ele desejava me ver escrevendo, não tanto com a idéia de que eu pudesse produzir algo digno de nota, mas para ele próprio julgar o quanto eu representaria a promessa de trabalhos melhores no futuro. Ainda assim, eu nada produzia. As viagens e os cuidados com a família ocupavam meu tempo; e o estudo, no sentido de ler ou aperfeiçoar as minhas idéias em comunicação com a sua mente muito mais instruída, era toda a atividade literária que capturava a minha atenção.

No verão de 1816, visitamos a Suíça e nos tornamos vizinhos de Lord Byron [poeta britânico, 1738–1824]. A princípio, passamos nossas horas agradáveis ​​no lago ou vagando por suas margens [em Villa Diodati]; e Lord Byron, que estava escrevendo o terceiro canto de A Peregrinação de Childe Harold [1812–1818], era o único entre nós que colocava seus pensamentos no papel. Estes, como ele os trouxe repetidamente para nós, vestidos com toda a luz e harmonia da poesia, pareciam assinalar como divinas as glórias do céu e da terra, cujas influências compartilhamos com ele.

Mas aquele verão provou ser úmido e pouco generoso, e chuvas incessantes frequentemente nos confinavam por dias em casa. Alguns volumes de histórias de fantasmas, traduzidos do alemão para o francês, caíram em nossas mãos. Havia a História do Amante Inconstante [no original, History of the Inconstant Lover, história cujo título correto é La Morte Fiancée (A Noiva Cadáver), do livro Fantasmagoriana (1812), tradução francesa do primeiro volume de Gespensterbuch (1811–1815); história original alemão de Friedrich August Schulze], o qual, quando pensou em abraçar a noiva a quem prometera seus votos, se viu nos braços do pálido fantasma dela, a quem abandonara.

Havia ainda a história do pecador, fundador de sua raça [The Tale of the Sinful Founder of his Race (História do Pecador que Fundou a sua Raça); na verdade, trata-se de Le Portraits de Famille (Retratos de Família), original do alemão Johann August Apel], cuja infeliz condenação era outorgar o beijo da morte a todos os filhos mais novos de sua casa amaldiçoada, justo quando eles atingiam a adolescência. Sua forma gigantesca e sombria, vestido como o fantasma em Hamlet [drama de Shakespeare, 1609], com a armadura completa, mas com o visor levantado, foi avistada à meia-noite, através dos inquietos raios da lua, avançando lentamente pela lúgubre avenida. A forma se perdeu sob a sombra das muralhas do castelo, mas logo um portão moveu-se para dentro, um passo foi ouvido, a porta da câmara se abriu, e ele avançou para o leito dos jovens florescentes, embalados em sono saudável. A tristeza eterna estava em seu rosto ao se inclinar e beijar a testa dos meninos, que a partir daquele instante secaram como flores arrancadas do caule. Não reli essas histórias desde então, mas os incidentes delas se encontram tão vívidos em minha mente como se as tivesse lido ontem.

“Cada um de nós escreverá uma história de fantasma”, disse Lord Byron, e sua proposta foi aceita. Éramos quatro. O nobre autor iniciou um conto, cujo fragmento foi depois impresso ao final de seu poema Mazeppa [1819]. Shelley, mais propenso a incorporar idéias e sentimentos ao esplendor de imagens brilhantes, iniciou um conto baseado nas experiências de sua infância. O pobre [John] Polidori [médico pessoal de Byron, 1795–1821] teve uma péssima idéia sobre uma senhora com cabeça de caveira, punida por espiar por um buraco de fechadura ― o que ela viu, não lembro; algo muito chocante e errado, é claro ―, mas quando ela se reduziu a uma condição pior que a do renomado Tom de Coventry [inglês que teria sido punido com a cegueira por espiar o passeio a cavalo de Lady Godiva nua, no século XIX], ele não sabia o que fazer com ela, sendo obrigado a despachá-la para a tumba dos Capuletos [referência a Romeu e Julieta, de Shakespeare; Julieta era da família dos Capuletos], o único lugar no qual estaria bem adaptada. Os poetas também ilustres, irritados com a banalidade da prosa, rapidamente abandonaram a tarefa desinteressante.

Eu me ocupei em criar uma história ― uma história para rivalizar com aquelas que nos haviam inspirado essa tarefa. Uma que falasse diretamente aos medos misteriosos de nossa natureza [humana] e suscitasse um horror eletrizante ― uma que causasse no leitor o pânico de olhar ao redor e fizesse gelar o seu sangue e acelerar os batimentos do seu coração. Se eu não conseguisse esses efeitos, minha história de fantasma seria indigna de seu nome. Eu pensei e ponderei ― em vão. Senti aquele vazio [causado] pela incapacidade de invenção que é a maior miséria dos autores, quando o tedioso Nada responde às nossas invocações ansiosas. Já conseguiu uma história? Perguntavam-me todas as manhãs, e a cada manhã eu era forçada a responder com uma negativa mortificante.

Tudo deve ter um começo ― falando ao estilo de Sancho [Pança, personagem de Dom Quixote de la Mancha (1605), romance de cavalaria de Miguel de Cervantes]; e esse começo deve estar ligado a algo que existiu antes. Os hindus creem que o mundo é sustentado por um elefante, mas fazem-no apoiar-se em uma tartaruga. A invenção, deve-se admitir humildemente, não consiste em criar algo do vazio, e sim do caos; os materiais devem, em primeiro lugar, estar disponíveis: podem-se moldar substâncias escuras e sem forma, mas não podemos trazer à existência a própria substância. Em todas as questões de descoberta e invenção, mesmo naquelas que pertencem à imaginação, somos continuamente lembrados da história de Colombo e seu ovo. A invenção consiste na capacidade de aproveitar as potencialidades de um assunto e no poder de utilizar e moldar as idéias sugeridas por ele.

Foram muitas e longas as conversas entre Lord Byron e [Percy] Shelley, das quais eu era uma ouvinte devota, mas quase sempre silenciosa. Em uma delas, discutiram-se várias doutrinas filosóficas, incluindo a natureza do princípio da vida, e se haveria alguma probabilidade de este princípio ser descoberto e transferido. Falaram sobre os experimentos do Dr. [Erasmus] Darwin [1731–1802; avô de Charles Darwin] (não me refiro ao que o Doutor realmente fez ou disse que fez, mas, mais propriamente ao que então foi mencionado como tendo sido feito por ele), o qual conservara um pedaço de aletria em uma caixa de vidro, até que, por algum meio extraordinário, ele começou a se agitar com movimento voluntário. Não seria assim, obviamente, que surgiria a vida [isto é, por geração espontânea]. Talvez um cadáver pudesse ser reanimado; o galvanismo [fenômeno baseado de movimentação de membros por força da estimulação elétrica] havia sugerido essa possibilidade: talvez as partes componentes de uma criatura pudessem ser produzidas, agregadas de modo harmônico e depois providas de calor vital.

Desceu a noite enquanto conversávamos, e até a hora das bruxas [a meia-noite] se passou antes de nos retirarmos para descansar. Quando repousei minha cabeça no travesseiro, não dormi, nem posso dizer que estivesse pensando. Minha imaginação, espontaneamente, me possuiu e me guiou, apresentando-me imagens sucessivas que surgiram em minha mente com uma vivacidade muito além dos limites usuais de um devaneio. Vi ― de olhos fechados, mas com uma visão mental aguda ―, vi o pálido estudante de artes não consagradas, de joelhos ao lado do que ele havia reunido [organicamente]. Vi o fantasma hediondo de um homem estirado e, em seguida, ao funcionamento de algum motor potente, esse homem mostrar sinais de vida e mexer-se com um movimento meio vital e desajeitado. Deveria ser terrível, pois extremamente assustador seria o efeito de qualquer iniciativa humana para zombar do mecanismo estupendo do Criador do mundo. Seu sucesso aterrorizaria o artista; ele se afastaria correndo de sua obra odiosa, tomado pelo horror. E esperaria que, deixada por si mesma, a ligeira centelha de vida comunicada àquele corpo desaparecesse; que essa coisa, que recebera uma animação tão imperfeita, retornaria à matéria morta, e ele poderia dormir na crença de que o silêncio da sepultura extinguiria para sempre a existência transitória do cadáver hediondo que ele havia considerado como o berço da vida. Ele dorme; mas logo ele é despertado, abre os olhos e vê a coisa horrível ao lado de sua cama, abrindo as cortinas e depois olhando para ele com olhos amarelos, lacrimejantes, mas especulativos.

Abri meus olhos, aterrorizada. A ideia me dominara tanto que um arrepio de medo passou por mim, e eu queria substituir a horrível imagem da minha fantasia pelas realidades ao meu redor. Eu ainda as vejo; o quarto, o piso escuro, as persianas fechadas, com a luz do luar penetrando através delas, e a minha sensação de que o lago vítreo e os imponentes Alpes brancos situavam-se além. Não conseguia me livrar tão facilmente do meu fantasma hediondo; ainda me assombrava. Devo tentar pensar em algo diferente. Recorri à minha história de fantasmas, minha cansativa e infeliz história de fantasmas! Ah! Se ao menos eu conseguisse inventar uma história que assustasse meu leitor como eu mesma me sentia assustada naquela noite!

Rápida como a luz e tão vibrante quanto ela foi a ideia que me invadiu. “Eu a encontrei! O que me aterrorizou aterrorizará as outras pessoas, e eu só preciso descrever o espectro que me assombrou minha insônia noturna”. Na manhã seguinte, informei que havia pensado em uma história. Iniciei-a naquele dia mesmo, com as palavras: “Era uma noite sombria de novembro”, continuando então com a simples transcrição dos terrores sombrios do meu sonho acordado.

A princípio, pensei em um conto de algumas páginas, mas [Percy] Shelley me instigou a desenvolver a ideia em maior extensão. Certamente não devo a meu marido a sugestão de um incidente, nem de uma cadeia de sentimentos, mas não fosse o seu estímulo, a história jamais teria assumido a forma em que foi apresentada. Desta afirmação devo excluir o prefácio. Tanto quanto me lembro, foi inteiramente escrito por ele.

E agora, mais uma vez, eu convido a minha descendência horrenda a ir adiante e ser bem-sucedida. Tenho uma afeição por ela, pois foi o resultado de dias felizes, quando a morte e a tristeza eram somente palavras que não encontravam eco verdadeiro em meu coração. Suas muitas páginas falam de tantas caminhadas, tantas viagens e tantas conversas, quando eu não estava sozinha, e meu companheiro era aquele que, neste mundo, nunca mais verei. Mas isso vale para mim; meus leitores nada têm a ver com essas associações.

Acrescentarei somente uma palavra sobre as alterações realizadas no texto. Elas são principalmente de estilo. Não alterei nenhuma parte da história, nem introduzi novas ideias ou circunstâncias. Consertei a linguagem em trechos onde ela era tão vazia a ponto de interferir com o interesse da narrativa; e essas mudanças se deram quase exclusivamente no início do primeiro volume. Ao longo do texto, estão inteiramente confinadas a partes acessórias da história, deixando intocadas seu núcleo e sua substância.

Referências

. A Noiva-Cadáver, versão inglesa:

https://archive.org/stream/talesofdead00utte#page/120/mode/2up

. Tradução inglesa de Fantasmagoriana (Tales of Dead; em português, Histórias dos Mortos):

https://archive.org/details/talesofdead00utte

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Sérgio Barcellos Ximenes

Escritor. Pesquisador independente. Focos: história da literatura brasileira e do futebol, escravidão e técnica literária.