O retrato falso de Emília Freitas, a autora do romance A Rainha do Ignoto

Sérgio Barcellos Ximenes
6 min readJan 16, 2020

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Outros artigos sobre Emília Freitas: Délia (autora de Lésbia) e Emília Freitas (autora de A Rainha do Ignoto): a saudade dos 15 anos de idade | Duas crônicas inéditas de Emília Freitas | Florina, um conto inédito de Emília Freitas (1883)

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Tema: o retrato erroneamente atribuído em várias páginas da Web à poeta e romancista Emília Freitas (1855–1908), autora de A Rainha do Ignoto (1900).

Origem do engano: um retrato publicado na revista A Estrela, fundada e dirigida pela escritora Francisca Clotilde.

Legenda do retrato: “À gentil cultora das letras, Melle Emília de Freitas, distintíssima colaboradora e propagandista da [revista] ‘Estrela’ em Mossoró”; Emília Freitas tinha por nome de batismo “Emília de Freitas”.

Evidências de que se trata de uma homônima da escritora:

. O retrato saiu em edição da revista publicada em 1915, sete anos após a morte da autora.

. Emília de Freitas nascera em 1855; jamais seria chamada de “mademoiselle” (jovem mulher) com mais de 50 anos de vida.

. A foto revela uma mulher realmente jovem.

. Emília não residiu em Mossoró (CE).

. Quando a primeira edição da revista foi lançada, em 1906, Emília morava em Manaus, onde viria a falecer dois anos depois.

Trabalho acadêmico que divulgou a foto original: Francisca Clotilde e a palavra em ação (1884–1921), dissertação de mestrado de Luciana Andrade de Almeida, apresentada em outubro de 2008; a autora informou se tratar de uma homônima da escritora.

Primeira menção à foto e à falsa atribuição: Uma escritora na periferia do Império: vida e obra de Emília Freitas (1855–1908), tese de doutorado de Alcilene Cavalcante de Oliveira, apresentada em abril de 2007; a foto não é mostrada na tese.

Principal divulgadora do equívoco: A Academia de Letras de Jaguaruana (ALJ), na página inicial do site http://academialetras1.ucoz.com.br/; Jaguaruana é a cidade natal de Emília Freitas, e a escritora é a patrona maior da instituição.

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Apresentação

No post O retrato falso de Maria Firmina dos Reis, integrante da série sobre a escritora maranhense que pode ser lida em meu blog, mostrei como mais de 100 páginas da Web divulgam atualmente um retrato a bico de pena que representa a escritora Maria Benedita Câmara Bormann, a Délia (autora do romance Lésbia), como se fosse o da primeira romancista brasileira, autora de Úrsula.

No caso deste texto, o engano não é (ainda) tão grave, mas tem o potencial de se tornar equivalente ao do caso Délia-Maria Firmina, primeiro porque está sendo difundido por uma instituição oficial, e segundo porque em 2019 houve a comemoração dos 120 anos da primeira edição de A Rainha do Ignoto (publicado, de fato, em 1900), situação que ensejou o lançamento de várias reedições do romance.

A foto no site da Academia Jaguaruana de Letras

Emília de Freitas (nome de batismo) nasceu em 1855 na Vila da Passagem das Pedras e União (então distrito de Aracati), atual cidade de Jaguaruana, situada no Vale do Jaguaribe, a cerca de 150 quilômetros de distância de Fortaleza.

Nada mais justo, portanto, que fosse escolhida como a “patrona maior da Academia de Letras de Jaguaruana”. Nesta condição, seu retrato é exibido na página inicial do site da Academia.

http://academialetras1.ucoz.com.br/

Só há um problema: esse retrato não é da escritora cearense, autora do romance A Rainha do Ignoto.

Aparentemente, o retrato já fez parte do verbete da autora na Wikipédia, porque a página mostrada abaixo reproduz a imagem, acompanhada do devido crédito.

http://opiniaoenoticia.com.br/sem-categoria/as-primeiras-escritoras-do-brasil/

Obviamente, a inserção do retrato como a foto oficial da autora cearense, na Academia de Letras de sua cidade natal, serve de incentivo natural para a reprodução da imagem e para a consolidação do equívoco. Assim se deu no caso Délia-Maria Firmina, o mais marcante e duradouro engano dessa natureza na história da nossa literatura.

https://twitter.com/morganarosana/status/1187851905340444673
http://artemisiodacosta.blogspot.com/2019/05/literatura-cearense-emilia-freitas-vida.html

Uma representação artística desse retrato ilustra o verbete Emília Freitas do livro As Mensageiras: Primeiras Escritoras do Brasil, lançado pela Câmara dos Deputados em 2018 (página 37):

https://www2.camara.leg.br/a-camara/visiteacamara/cultura-na-camara/arquivos/.lixeira/as-mensageiras-primeiras-escritoras-do-brasil

A verdadeira “dona” do retrato

A solução do mistério da “dona” da foto está disponível há muitos anos no meio acadêmico; na verdade, há 12 anos.

Em 2008, Luciana Andrade de Almeida, aluna do Centro de Humanidades da Universidade Federal do Ceará, apresentou a dissertação de mestrado Francisca Clotilde e a palavra em ação (1884–1921), no Programa de Pós-Graduação em História.

Na página 204, Luciana mostrava a origem da foto que é parcialmente utilizada no site da Academia Jaguaruana de Letras.

Após a imagem, escaneada de uma edição de outubro de 1915 da revista “A Estrela”, dirigida por Francisca Clotilde, lia-se a seguinte legenda:

“À gentil cultora das letras, Melle Emília de Freitas, distintíssima colaboradora e propagandista da [revista] “Estrela” em Mossoró”.

A escritora Emília Freitas tinha por nome de batismo “Emília de Freitas”.

Repare na semelhança entre esse retrato e o exibido no site da Academia.

As palavras seguintes de Luciana e a nota de rodapé põem fim ao mistério:

http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/2911

Francisca Clotilde e a palavra em ação (1884–1921), Luciana Andrade de Almeida, dissertação de mestrado, Centro de Humanidades da Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-Graduação em História, outubro de 2008, Fortaleza.

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A primeira menção à foto (mas sem a apresentação da imagem) consta da tese de doutorado em Literatura Brasileira Uma escritora na periferia do Império: vida e obra de Emília Freitas (1855–1908), apresentada por Alcilene Cavalcante de Oliveira na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em abril de 2007; portanto, um ano e meio antes da dissertação de Luciana.

https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/ECAP-73BHB7

Uma escritora na periferia do Império: vida e obra de Emília Freitas (1855–1908)”, páginas 137 e 138, Alcilene Cavalcante de Oliveira, tese de doutorado em Literatura Brasileira, Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), abril de 2007.

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A tese de Alcilene, editada em livro, pode ser considerada a biografia “oficial” de Emília Freitas, tendo o mesmo status em relação à autora cearense que a biografia Maria Firmina: Fragmentos de uma Vida, de José Nascimento Moraes Filho, em relação à escritora maranhense.

Emília Freitas era espírita praticante e difusora dessa doutrina religiosa. Somente se imaginássemos um ato dessa natureza seria possível que, sete anos depois de sua morte aos 53 anos de idade, ela enviasse uma foto sua, jovem, à antiga amiga, também romancista e poeta, Francisca Clotilde. Repare que Francisca chama a amiga cearense de “Melle” (mademoiselle), ou seja, uma jovem mulher.

Além desses dois pontos importantes (o ano de envio da foto e a idade da fotografada), temos outro motivo de suspeita: a homônima Emília de Freitas, segundo a editora, divulgava a revista A Estrela em Mossoró, cidade onde Emília jamais residiu.

Em 1906, ano do lançamento do primeiro número de A Estrela, em Fortaleza, Emília já vivia em Manaus, onde viria a falecer dois anos depois.

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Esse retrato original também está sendo associado na Web à autora de A Rainha do Ignoto.

http://www.fortalezanobre.com.br/2017/02/os-homenageados-nas-ruas-da-cidade.html

Espera-se (ingenuamente, assim como no caso de Maria Firmina dos Reis) que a divulgação desse equívoco ajude a evitar a recorrência da associação da foto publicada em 1915 com a escritora Emília Freitas (1855–1908).

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Sérgio Barcellos Ximenes

Escritor. Pesquisador independente. Focos: história da literatura brasileira e do futebol, escravidão e técnica literária.