Cemitério de Consoles | Ouya (2013): afogado em dívidas pela ingenuidade

Resultado de um projeto de financiamento coletivo, o videogame prometia revolucionar a relação do jogador com sua televisão.

Rafael Smeers
Aventurine Brasil
7 min readNov 2, 2018

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Cemitério de Consoles é uma marca Aventurine Brasil. O uso sem permissão é proibido. | Ouya Logo © by Ouya, Inc. | Gaming Room by HardwareHeaven

No mercado de videogames, a mania de grandeza não é uma novidade. Vimos no próprio Cemitério de Consoles situações como a em que o PlayStation 1 dizia ser mais forte do que Deus. Porém, enquanto algumas destas situações acabam posando somente de jogadas exageradas de marketing, outras se tornam tão persistentes que acabam ganhando o ódio público.

Este foi o caso do Ouya, um projeto de micro-console desenvolvido pela Ouya (que anteriormente se chamava Boxer8) com o intuito de simplificar o desenvolvimento de games através de dev. kits públicos e a ausência de taxas de licenciamento. Através de aproximações polêmicas do público, o videogame não conseguiu as vendas que necessitava apesar do sucesso de sua campanha de Kickstarter.

Os desejos do Ouya de ter um botão de “Reset” para reiniciar toda a indústria de videogames provavelmente se intensificaram depois de seu fracasso.

Uma “oportunidade única” de diversas maneiras

O ano de 2012 foi um período de anúncios memoráveis para a indústria dos videogames, não necessariamente por um bom motivo. No mesmo ano em que dois consoles que já receberam suas devidas edições em nossa série (Wii U e PlayStation Vita) eram apresentados pela primeira vez, o Ouya também dava as caras, no formato de um projeto em processo de financiamento coletivo clamando por atenção.

A proposta era produzir um console aberto ao desenvolvimento público e acessível ao usuário final, prometendo uma vasta gama de jogos independentes em mídia digital e a disponibilidade de versões de testes de todos eles. Pelo modesto valor total de 99 dólares, contribuidores receberiam sua própria cópia do sistema (um cubo de três polegadas) e um controle oficial sem fio com touchpad.

Assim como os comerciais do Wii U eram obsessivos pelo GamePad, Julie Uhrman era um tanto quanto obsessiva pela palavra televisão.

Baseado em Android (uma versão modificada do Jelly Bean), o console não havia qualquer tipo de leitor de mídias físicas e desta forma era dependente de conexão com a internet para a aquisição de jogos. A carcaça era simples de ser aberta para que modificações de hardware fossem feitas (e em sua maioria eram até oficialmente apoiadas) e era possível conectar múltiplos controles (apesar do pacote inicial acompanhar somente um).

A campanha foi um grande sucesso, alcançando seu objetivo em oito horas e conquistando o posto de melhor desempenho de arrecadação em primeiro dia de campanha de Kickstarter. Um novo contribuinte era atraído a cada 6 segundos e as expectativas eram altas. O console chegou a superar até mesmo o Xbox One em número de pré-compras.

Ao longo do texto de apresentação do console no Kickstarter, os desenvolvedores do Ouya apresentavam um descontento com a situação do mercado, criticando o crescimento da popularidade de jogos de smartphone e tablets, que segundo eles assassinavam a criatividade do desenvolvedor. Em suas concepções, o Ouya levaria este mercado para a televisão e retornaria a criatividade aos desenvolvedores.

Em março do ano seguinte, começavam a ser enviadas as primeiras unidades aos contribuintes do Kickstarter e no final de junho, o Ouya atingia as prateleiras pelo preço planejado de 99 dólares. Ou pelo menos deveria, mas o ritmo de produção e processo de envio estavam conturbados e mais lentos do que o esperado.

A disponibilidade inicial de jogos no sistema também não era lá essas coisas. Para garantir alguns exclusivos à biblioteca do console, a Ouya Inc. decidiu iniciar uma ação denominada de “Free the Games Fund”, onde arrecadar ao menos 50,000 dólares garantir exclusividade de lançamento ao Ouya por pelo menos seis meses resultaria em suporte oficial de desenvolvimento.

O desenvolvedor seguia um conjunto de regras e tinha seu jogo fundado pela Ouya Inc., um processo simples o bastante para ser abusado.

Em vez de enriquecer a coleção de jogos do console, a ação só trouxe dores de cabeça para a empresa. Em várias campanhas de Kickstarter eram evidenciadas contribuições altas e realizadas por contas suspeitas, com nomes e fotos duplicadas de celebridades. Dessa forma, surgiram suspeitas de que vários projetos estavam realizando “contribuições à si mesmos” para alcançar a meta da ação. Um dos projetos tinha até um contribuinte cuja identidade batia com a identidade de uma pessoa desaparecida.

A Ouya Inc. discordava das suspeitas e tocava a ação para frente, até que a situação começou a se agravar e alguns projetos chegaram a ser expulsos do “Free the Games Fund”. Diversas manifestações contra as regras da ação ocorreram, até que a cláusula de exclusividade foi alterada: durante os seis meses de exclusividade ao Ouya, os desenvolvedores poderiam também lançar seu jogo para computadores.

No final de 2013, uma nova versão do console foi disponibilizada para pré-compra, contendo o dobro de armazenamento interno (16 GB em vez de 8 GB), coloração preta e um novo design de controle. Mesmo com o lançamento do novo modelo, a lentidão de progresso de cenário do Ouya era visível e preocupante.

Eis que em 2015, um investimento da Alibaba de dez milhões de dólares foi realizado em troca da incorporação de tecnologias da Ouya em set-top boxes (sistemas conectados à televisão) chineses. Soava como um bom empurrão, mas não era o suficiente para compensar as vendas do console (que estavam abaixo do esperado) e as dívidas que assombravam a Ouya Inc.

Desenvolvedores independentes envolvidos na ação “Free the Games Fund” relataram que a empresa não estava contribuindo com os custos de produção como havia sido prometido. Alguns deles tinham de receber cinco mil dólares, outros até mesmo 32 mil dólares. Este descaso aos desenvolvedores, em conjunto a comerciais polêmicos, desconstruía a imagem “amigável” da Ouya Inc. construída durante sua campanha de Kickstarter.

Poucos meses depois do investimento da Alibaba, foi revelado que a Ouya Inc. estava à venda após falhar em renegociar dívidas acumuladas. Não demorou muito tempo para que a Razer Inc. adquirisse a companhia e nem para que más notícias chegassem: o Ouya seria descontinuado e os funcionários e a biblioteca do console seriam voltados a outro projeto, o Razer Forge TV.

Para a Razer, a aquisição da Ouya Inc. representava a eliminação de uma possível concorrente e a chegada de novos títulos em uma época em que todo esforço era bem-vindo para combater o Nvidia Shield.

A Razer encorajou os donos do Ouya a migrarem para o novo micro-console, que receberia toda a biblioteca do Ouya e no qual os desenvolvedores do videogame passariam a atuar como uma publisher de jogos para consoles baseados em Android. Em adição, todas as dívidas com desenvolvedores foram quitadas. Julie Uhrman (CEO da Ouya Inc.) deixou seu posto no mesmo dia da compra da empresa.

Potencial mal aproveitado

Os problemas financeiros da Ouya Inc. prejudicaram significativamente a biblioteca de jogos do console. Se o sistema não fosse “rooteado”, não era possível instalar aplicativos além dos já disponíveis na loja padrão do sistema. Caso fosse, era possível instalar basicamente qualquer software com extensão .APK (Android Package), apesar do funcionamento correto do controle nestes casos não ser garantido.

Houveram poucos títulos exclusivos e entre eles poucos se destacaram ou representaram uma franquia conhecida em outras plataformas. Killing Floor Calamity foi um dos jogos que se mantiveram exclusivos ao Ouya e que atraíram certo interesse.

Os jogos completamente gratuitos, por sua vez, nem sempre tinham uma qualidade ideal. O teor “amigável aos desenvolvedores” do console ia contra controles muito rigorosos e torna difícil citar quantos jogos foram oficialmente disponibilizados para o videogame.

Mas se os jogos independentes não foram o suficiente para manter donos do Ouya entretidos, suas outras funções apaziguaram ao menos um pouco o arrependimento de compra. Aplicativos de streaming (como Twitch.tv) e emuladores (de sistemas como Nintendo Entertainment System, Super Nintendo, Game Boy Advance e PlayStation 1) disponibilizados na loja oficial do console eram alternativas interessantes em épocas em que um Raspberry Pi ainda não era uma opção completamente conveniente.

Caixa de controvérsias

Alguns críticos tinham dúvidas desde o início de que a Ouya Inc. conseguiria entregar um produto adequado, enquanto outros diretamente chamavam o console de uma “fraude”. Durante a análise de uma versão antecipada do console, a mídia criticou constantemente a qualidade de produção do controle, que era frágil e apresentava pequenas demoras de resposta.

Quando o Ouya foi lançado, foram relatadas melhorias visíveis tanto no controle, quanto na interface de usuário do sistema. Mesmo apesar do sucesso em sua campanha de Kickstarter, o console não conseguia vender títulos e caía cada vez mais conforme desenvolvedores se sentiam danificados pela “Free the Games Fund”, onde trapaceiros conseguiram fundos injustamente enquanto outros projetos alcançaram a meta honestamente e não foram pagos corretamente.

Existem discussões que tentam apurar o quão diferente teria sido o futuro do Ouya se não fosse pela criação da ação e os problemas financeiros. Porém, a popularização do Raspberry Pi indica que talvez o Ouya mesmo assim não teria durado muito tempo: vendedores competem para oferecer o melhor conjunto pelo menor valor constantemente em plataformas de livre venda online. Podemos citar como fatores de ampla influência no fracasso do Ouya:

→ Divulgação agressiva e exagerada;
→ Qualidade de produção insatisfatória;
→ Biblioteca de jogos repleta de títulos de baixa qualidade;
→ Má elaboração da ação “Free the Games Fund”, danificando a relação da Ouya Inc. com desenvolvedores independentes;
→ GamePad posava de ideia incompleta, prejudicada por imperfeições e inacessibilidade;
→ Acúmulo de dívidas;
→ Descaso com interessados em contribuir com o projeto;
→ Pouco planejamento de vendas pós-Kickstarter.

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Rafael Smeers
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