Racismo

Black Soul
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10 min readJun 1, 2016
Foto: Pietra Polo

Até os dias de hoje, existem discussões e incertezas sobre qual, na verdade, foi o primeiro país a abolir a escravidão. A Dinamarca, em 1792, foi uma das pioneiras neste assunto. Entretanto, alguns apontam que Portugal, através do primeiro-ministro à época, Marquês de Pombal, assinou o decreto em 12 de fevereiro de 1761. Contudo, no século 18, Portugal tinha muitas colônias ao redor do mundo, sendo impossível o controle sobre todos os Estados. Na prática, a abolição feita pelos portugueses surtiu efeito em seu próprio território, e nas colônias das Índias, sendo também imposta a proibição do transporte de novos escravos para a colônia brasileira. Falando nisso, você sabia que o Brasil foi o último país do ocidente a tomar tal atitude?

Em meados do século 19, foi instituída a lei Eusébio de Queiroz, entrando em vigor a proibição do tráfico negreiro para o Brasil. Vinte anos mais tarde, em 1871, o segundo passo para a lenta abolição da escravidão no Brasil foi dado. A lei do Ventre Livre foi estabelecida, tornando liberto todos os filhos de escravas nascidos após a afirmação da lei. Para uma parte da sociedade, acabar com a escravidão traria problemas financeiros ao país, por isso, longos anos se passaram até que a liberdade fosse finalmente conquistada pela população escravizada, em 1888, com a Lei Áurea.

Hoje, tendo 54% da população autodeclarada negra ou parda, o racismo imposto pela sociedade brasileira é diferente, mas, os problemas iniciados nos séculos 15 e 16, ainda refletem em como a cor da pele faz diferença no Brasil.

Para Acácio Godoy, membro de instituições de valorização da cultura afrodescendente de Piracicaba (SP) e defensor do movimento, a população negra tem um atraso social evidente em relação à população branca. “Isso se deve ao histórico da origem do nosso povo que enfrentou, em quase quatro dos cinco séculos da história brasileira, uma política de escravidão. Quando digo isso, falo do coletivo e não de individualidades, que de uma maneira ou outra superaram suas dificuldades e alcançaram uma posição social de destaque”, contou Acácio.

Segundo ele, essa condição histórica encontra-se na massa mais carente da população brasileira, majoritariamente a população negra. De acordo com o ativista, é a partir daí que nasce o tratamento distorcido que essa população sofre na sociedade.

Existem infinitos fatos e estatísticas que mostram por que vivemos em um país racista. Não é à toa que a população predominante em favelas seja a de negros. Não é à toa que, segundo a Secretaria Nacional de Juventude da Presidência, um jovem negro na Paraíba tenha 13,4 vezes mais chances de ser assassinado do que um jovem branco. Existe um motivo para que a Polícia Militar de São Paulo mate três vezes mais negros do que brancos, sendo 79% dos policiais envolvidos, brancos, de acordo com dados de um estudo realizado em 2014 pela Universidade Federal de São Carlos.

Foto: Pietra Polo

O racismo, em certos casos, pode se demonstrar de uma maneira mascarada. No convívio social, ninguém é declaradamente racista. Para o brasileiro, passou a ser normal assistir a uma novela na qual personagens de pele escura sejam sempre empregados. Em grandes produções do cinema, essa falta de miscigenação fica ainda mais evidente nos eventos de premiações. Para as instituições que controlam parte da vida social dos seres humanos, não ter um negro ocupando um patamar de superioridade, como protagonista de um filme, ou nas cadeiras de políticos, por exemplo, não é sinônimo de racismo, é apenas mérito de quem está ocupando tal espaço. Mas, quem pode ou não dizer o que é o racismo, não é o opressor, e sim o oprimido.

Para Heitor Chagas, advogado pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal, e membro da Comissão de Igualdade Racial da OAB de Campinas (SP), no Brasil, houve um momento pós-abolição em que nosso Estado passou a se preocupar com a aceitação do negro na sociedade, pois, para onde mais iriam as incontáveis pessoas que, de uma hora para outra, “começaram a ser sujeitos titulares de direitos e obrigações”. “Dentro destes direitos, menciono o direito de trabalhar, dignidade etc. Tudo isso materialmente, pois sabemos que isso é uma grande falácia”, completa Heitor.

Neste contexto, desde então, Heitor conta que se criou uma ideologia de que no Brasil as raças vivem harmonicamente, e que o Brasil é o país de todos. “Este argumento falacioso tem o objetivo de mascarar uma questão que existe, um racismo aparente”.

Entretanto, para Daniela Gomes, jornalista doutoranda em Estudos Africanos e da Diáspora Africana, o racismo não é mascarado em nossa sociedade. “Não é hoje e duvido que tenha sido algum dia. Conheço negros de diferentes tons de pele, diferentes traços, diferentes tipos de cabelo, e todos sofrem racismo. Porque no final, o que conta mesmo é o fato de nós sermos negros”.

De acordo com o que disse Heitor Chagas, Daniela chama de racismo “amigável” a falsa harmonia existente entre as raças no Brasil. “Criou-se um tipo de racismo bem característico do Brasil, que eu chamo de racismo ‘amigável’, onde a pessoa pode até desenvolver relações pessoais com negros, ou ter negros que são quase da família, mas isso não a impede de ser racista. É um racismo muito cruel e que de amigável não tem nada, mas que se demonstra de forma muito difícil de ser detectada”.

Foto: Lucas Lima

É ou não é?

A dificuldade em saber realmente o que é racismo no Brasil está presente, inclusive, em nossas leis. Em 1989, foi instituída a lei 7716 que visa cumprir uma ordem constitucional da constituição de 1988, que diz que o racismo no Brasil será crime inafiançável e imprescritível. A lei tipifica conduta por conduta o que será considerado racismo. Na teoria, seria algo a se comemorar.

“Aquelas condutas proscritas pela lei, tipificam a modalidade de racismo expresso, que quase não acontece no Brasil. O racismo, aqui, acontece de uma maneira velada”, diz o advogado Heitor Chagas.

O racismo expresso apontado pela lei, que segundo Heitor raramente acontece em nosso país, indica situações pesadas, que realmente não aparecerem em nosso dia-a-dia. O racismo expresso é constatado em situações em que, pela cor da pele, determinada pessoa é impedida de assumir um cargo profissional, por exemplo. “Você não vai assumir um cargo aqui porque você é preto”, exemplifica Heitor. “Não vou deixar você se matricular no meu estabelecimento de ensino porque você é negro, e negros não estudam aqui. Está configurado um crime de racismo da lei 7716. Proibir alguém de entrar no elevador por conta da cor, proibir de ir e vir. São condutas expressas de racismo, que quase não acontecem no Brasil”. Para ele, essas condutas constrangem nossa sociedade, sendo um dos motivos para esse tipo de racismo raramente aparecer em nossos noticiários.

Nosso próprio entrevistado diz já ter atuado em casos de racismo, e até mesmo ter sido vítima desse mal. “Já atuei em alguns casos de racismo, já fui vítima de racismo nos termos da lei 7716, e quando eu chegava à delegacia, o delegado ficava pasmo, porque essa forma de racismo não é comum, não é a forma que acontece no Brasil”. Por essa forma ser menos usual na vida de quem sofre preconceitos raciais no Brasil, nossa lei é falha, e não assegura corretamente o retorno necessário. “É uma maneira que se quer pode ser tutelada pela nossa norma criminal, as ciências criminais não têm condições de cuidar da forma que o racismo acontece no Brasil”, completa o advogado.

Acácio Godói também cita a forma como os crimes de injúria e racismo são abordados em nossas leis. Para ele, como quase sempre os crimes de racismo no Brasil são enquadrados como injuria racial, uma lei mais branda, a punição para injuria e calunia, quando o conteúdo for não somente racial, mas também étnico e religioso, deveria ser mais rigorosa.

Para exemplificar como é o racismo no Brasil, Heitor cita uma situação na qual atuou como advogado. “Em um caso nosso, um funcionário da prefeitura estava cortando o cabelo e foi abordado pela guarda municipal (de Campinas). Com a arma na mão, batendo na cabeça dele, o mandaram colocar a mão na parede. Sem fundamento algum, sem preenchimento das condições que fundamentam a busca e apreensão pessoal do nosso código de processo penal. Precisamos de ao menos o mínimo de suspeita, e a suspeita não existia, e o agente o abordou simplesmente pela cor de sua pele. Todo mundo sabe, ele não disse, mas sabemos. Tinham outras pessoas transitando, mas o agente policial escolheu ele. O agente não o informou que ele estava sendo abordado por ser negro, e sim por ser suspeito. Há racismo? Sim. Não nos termos da lei, mas todos nós sabemos que é uma modalidade de racismo institucional. Quando afirmo que no Brasil nossas instituições e nossos órgãos são racistas, são racistas neste sentido”, conta Heitor.

Para Heitor, muito mais eficaz do que uma lei que não se adapta à nossa sociedade, é a implantação de políticas públicas reconhecendo o dever de reparar erros históricos. “Lançar políticas afirmativas é um reconhecimento muito mais eficaz do que a criação de uma lei que proscreve condutas expressamente racistas que não se vinculam à nossa realidade. O racismo no Brasil é uma ideologia, condiciona relações entre as pessoas. Isso não cabe ao direito penal tomar conta, é uma questão de educação”. Para ele, em caminho oposto ao Acácio, a direção a ser seguida não é tonar as leis mais severas. “Eu não quero uma lei que puna o racismo, eu quero política pública educando. Eu quero acabar com o racismo”. Neste ponto, Acácio também concorda. “Na infância se constroem muitos conceitos que depois acompanham o individuo por toda a sua vida. O preconceito e o racismo são frutos do mesmo mal, a ignorância. A melhor forma de combatê-los é a educação constante, incessante e permanente do nosso povo”, diz Acácio.

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Para Daniela Gomes, é fundamental sabermos diferenciar o que é racismo, preconceito e discriminação. O racismo se mantém de forma estrutural e independente da ação de indivíduos, segundo Daniela. “Como estrutura de poder. Por exemplo, o racismo institucional”. Já o preconceito, para a jornalista, é o “conceito pré-concebido que faz com que você julgue o outro antes mesmo de conhecê-lo”. Relacionada ao preconceito, as discriminações são as ações que você pratica a partir desse preconceito para impedir que outra pessoa tenha acesso a coisas diversas. “Preconceito, qualquer pessoa sofre. Racismo, não”, diz Daniela.

Foto: Lucas Lima

Racismo 2.0

Discriminações raciais sempre existiram no Brasil. Mas, em tempos de Facebook’s e Twitter’s, tudo é exacerbado. O preconceito, inclusive. Existem grupos online que se especializam em atacar pessoas e suas diferenças. Outros fazem isso por pirraça. Já presenciamos incontáveis exemplos na grande mídia em que personalidades foram atacadas ao postarem algo em suas redes sociais. Não apenas vítimas de racismo, mas de todo o tipo de preconceito. Mas, falando assim, até parece que a internet veio para acabar com a nossa paz.

“A internet é uma ferramenta maravilhosa que permitiu que o conceito de comunicação linear fosse mudado. Hoje não existe apenas um emissor e um receptor, existem milhares de pessoas que são emissoras e receptoras ao mesmo tempo”, diz Daniela Gomes. Para ela, que sustenta publicações online para combater o racismo, ter a internet ao seu favor é um ganho muito grande. “Como ativista negra que faz uso do cyberativismo na luta contra o racismo, eu vejo isso como um avanço, já que hoje nós podemos nos articular através da rede, fazer denúncias e termos visibilidade e representatividade através de nossas próprias ações”, conta Daniela Gomes.

Entretanto, a internet tem sim seu lado sombrio, e infelizmente, pessoas que destilam seu ódio acabam impunes, seja na rede, ou em qualquer outro lugar que o fato tenha ocorrido. “A internet também está cheia de gente ‘valente’ que usa as redes para demonstrar seu ódio e seu racismo — e outras formas de preconceito também — se escondendo atrás da tela do computador ou do celular, pois tem a certeza da impunidade. A internet é ruim? Lógico que não, mas saber que muitas vezes a sua denúncia não vai dar em nada, isso sim é terrível”, finaliza Daniela.

A impunidade que vemos na internet, é um reflexo das ruas. Nós temos leis que cobrem tais jurisdições, mas são, novamente, em muitos casos, falhas. Cometer um ato racista através de uma rede social cabe ao praticante a mesma punição que caberia se o ato fosse em qualquer outra situação.

“Por muito se falou que a internet é terra sem lei. Engana-se quem sustentou isso. A nossa legislação criminal estabelece condutas. A internet é simplesmente um modus operandi (modo de operação), uma forma de cometer a conduta. A pena será a mesma”, conta Heitor Chagas.

Diferenças práticas entre Racismo e Injúria Racial, pelo advogado Heitor Chagas.

Em 1989, surge a lei 7716/89 que, pela constituição, tipificaria o crime de racismo no Brasil. A lei veio para proteger dois bens: a liberdade e a igualdade. No caso da Injúria Racial, tipificada no artigo 140, § 3 º do Código Penal, o bem protegido é a honra das pessoas. Segundo Heitor Chagas, ao chamar alguém de “macaco” ou “preto”, nos termos da lei, não é racismo. “É um termo de injuria qualificada pelo uso de elementos que apontam a cor da pele, a etnia, a raça”. O problema, no entanto, é na facilidade de confusão entre os crimes. “A problemática de confundir os dois leva a impunidade, porque a pena para o racismo pode chegar a cinco anos, e para injúria racial não passa de três”, conta Heitor. Para ele, a ação não deve acabar apenas com a lei. “É muito mais do que sancionar uma lei de racismo. Pra mim, Heitor, eu rasgava essa lei, e canalizava meus esforços em outras esferas, como o direito administrativo, conscientização”.

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