Carta-crítica #07: J Lo Borges para Stephanie Borges

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10 min readOct 4, 2018

Sobre família, arte, visibilidade lésbica. Parte 2.

Fala, maninha! Suave?

Essa semana, uma amiga me mandou um whatsapp dizendo “J., conheci a sua irmã. Ela parece muito com você, principalmente a voz! A J.Lo hétera”. Se há 20, 15 ou até 5 anos, alguém me contasse que haveria um momento em que as pessoas fossem te chamar de “minhirmã” e, não o contrário, eu não acreditaria. Sempre pareceu impossível crescer tendo essa irmãzona badass como referência para as pessoas compararem. Parecia que você estava em todos os lugares e que eu teria que viver na sua sombra. Você bem sabe que até sair do armário, pra mim, não foi muito opcional, se, dos rolês LGBTs (ou GLSs — Papa G, old school) mais suburbanos aos mais zona sul, sempre rolava alguém perguntando “Ei, você é a irmã da Stephanie, né?”.

Deu um medo absurdo contar que sou lésbica para você e para a mamãe, mas, vocês me deram as melhores respostas que eu poderia receber. E, alagada no amor de vocês e no meu amor próprio que surgiu com a aceitação de quem eu sou, que a minha vida artística começou a fluir.

A questão do corpo é algo que sempre me rondou e, talvez até tenha sido uma grande stalker na minha vida. Lembra dos meus 45Kg distribuídos neste corpo de 1,71m? Te surpreenderia se eu dissesse que o meu problema em me alimentar era “pegar corpo” e ser olhada pelos caras? Não acha curioso pensar que durante os oito anos da minha vida que me relacionei com homens eu não peguei num lápis para desenhar e que essa tenha sido a primeira coisa que eu fiz quando cheguei em casa depois de ter passado a minha primeira noite com uma mulher?

O corpo é texto também e O Poema é prosa, romance e narrativa científica além de ser obra de arte.

Da primeira vez que li O Poema, quis ilustrar tudo porque ele é político, poético e visual. Encontrei páginas soltas de diários que começaram a ser escritos na década de 1990 misturadas às referências teóricas e literárias, críticas político-sociais, referências artísticas diversas, mitologias e mil outras coisas na linguagem poética. Não há nada mais preto que isso. Porque arte também educa e o tempo é muito curto para a maioria de nós. Foi então, que compreendi que ele foi feito para ser exatamente como é: uma leitura fundamental para todas as gerações de mulheres pretas.

Muitos chamariam um livro não-ilustrado de “sem imagens”, como há quem chame o meu trabalho de “imagem sem texto”. Isso só me faz pensar na ignorância literal dos significados, tanto na produção iconográfica quanto na provocação imaginativa dos textos. Como esfregar a minha buceta peluda de sapatão lambuzada em tinta acrílica em uma série de telas e exibir em uma galeria de arte não é a produção de um texto; de uma narrativa? Como cachear os versos d’O Poema não é a produção de uma, mas de tantas imagens quantas frases e leitores ele tiver? Eu acredito que todas as artes estão em todas as artes quando elas são bem-feitas.

Pense, por exemplo, em “The Dinner Party” de Judy Chicago: mais do que visual e política, a obra constrói narrativas e provoca a criação de outras narrativas hegemônicas, que aproveitam a subversão para fazer uma tentativa de reafirmar seu local de privilégio social. Não foi à toa que o congresso estadunidense gastou uma hora e vinte e sete minutos discutindo a Obra de Chicago, abrindo uma votação com o resultado de 123 a favor x 1 contra a proibição de sua exibição. Histórias de corpos como os nossos incomodam. E são exatamente essas histórias que precisam ser mais e mais contadas.

Na obra de Chicago, eram “39 elaborados lugares postos em uma mesa triangular para mulheres míticas e historicamente conhecidas. (…) Cada conjunto de mesa individual e único inclui um prato de porcelana pintado a mão, talheres e cálice de cerâmica e um guardanapo com bordado dourado nas pontas. Cada prato, excetuando o de Sojourner Truth, retrata uma vulva elaborada, brilhante e colorida” Não que a boceta seja a imagem de ser mulher; não que seja reducionista, muito pelo contrário: mais de oito mil terminações nervosas só no clitóris. Um órgão que existe só para fazer mulheres convulsionarem de prazer. — Um salve à Deusa XXT. Hahahaha.

A redução da mulher ao seu corpo vem dos homens. — Lembra do Aristóteles dizendo que a fêmea é um macho mutilado e imperfeito e do Freud com aquele caô brabo de “inveja do pênis”? Filho, são mais que o dobro de terminações nervosas, pára de gracinha. — Vamos falar sobre tratados de medicina da época moderna que já diziam sobre histeria e os tais “humores da madre” que poderiam enlouquecer uma mulher que não tivesse relações sexuais com homens. Quando o mundo todo diz que os seus problemas são falta de pau e você descobre que não, que o pau que era o problema; quando usam o pau como arma para te ameaçar por você não seguir as “regras”; quando mais de mil homens perdem o pau por ano no Brasil por falta de água e sabão e dizem que boceta que é suja e fede… Ah, irmã, é exatamente aí que amar, desenhar, esculpir e até pintar com a boceta se torna mágico e revolucionário. Ainda mais, quando querem te vender a masculinidade quando você foge do estereótipo clássico da feminilidade. Keep Calm and Quote Truth, “não sou eu, uma mulher?”

Não que você não saiba dessas coisas, até porque você conhece a minha militância sapatão por visibilidade — dentro e fora da Coletiva @coletivavisibilidadelesbica -, mas, só pra deixar registrado, na minha obra, a boceta nada tem a ver com parto, fertilidade ou maternidade. Talvez também hajam páginas de diários da década de 1990 escondidas no subtexto do meu trabalho artístico. Talvez, meu trabalho em arte contemporânea tenha mais relação com “uma mulher acorda” que com “O Poema”.

(…) mas não chora, tudo se ajeita
implantes são possíveis, porcelana
e as lágrimas voltam porque xícaras
pires, se prestam de enfeite,
mas não,
predadores não sobrevivem com baixela
entre as mandíbulas
são para sorrir e enfeitar
ocupar espaço, no máximo

no porta joias forrado de veludo
seus dentes
são inúteis como pingentes delicados
sequer servem de oráculo
jogados sobre a mesa a prever o futuro
existem opções, próteses
pinos de platina atingindo os ossos
com belas peças de resina nas pontas
até parecem de verdade

servirão para trinchar?
podem ser exibidas com escárnio?
chegarão a representar um risco?

Eu consigo ouvir a conversa entre a minha série “Todas as Cores do Mundo” e “uma mulher acorda”. Não que me faltem dentes, muito pelo contrário. A corpa lésbica rosna pro patriarcado, não porque deseja rosnar, mas, porque, para se manter viva, a presa aprende a assustar o predador.

A questão é que tanto a falta de dentes, como a falta de defesa, podem significar morte.

Não é a toa que falem mal da minha “Sapa Tona”. Falam do seu olhar pesado, das olheiras, dela não sorrir…, as críticas não tem fim. A “Tona” ocupa as ruas, mas, antes dela, era o meu corpo ali, muitas vezes, sozinho. Em risco.

Eu não estou só me representando alí. Estou representando milhares de nós, sapatonas — principalmente, nós, sapas pretas -, que enfrentamos os perigos que o mundo nos impôs por sermos quem somos. Encaramos cansadas de não poder baixar a guarda e ligeiramente tristes por ainda termos que passar por certas coisas em pleno século XXI. Dá pra passar essa vibe numa sapinha cor-de-rosa sorridente? Racismo, lesbofobia e misoginia. É com isso que a Tona tá puta. E foi sobre isso que eu e Yasmin Ferreira falamos para a Malala, em sua recente vinda ao Rio, quando, ao visitar a NAMI, conheceu nosso mural sobre Lesbianidades, que fica na rua Tavares Bastos, no Catete.

A visibilidade da Tona é tipo aquele outro poema da “mulher do útero”, o “mulher de respeito”:

diz-me com quem te deitas
angélica freitas.

Um dia receberei um elogio furioso como o que a Freitas já recebeu:
“só uma sapatão seria capaz de escrever — no meu caso, de pintar — isso”.

E, por falar em Freitas, acho lindo como você dialoga com o estilo poético dela no seu trabalho mais recente. E, parafraseando o elogio que era para sair como crítica, a tua poesia só poderia ser escrita por você. Afinal,

esta carta é sobre o que você quer
e do que tem medo, ao mesmo tempo
isso

é ser feliz no amor
acontece, a gente quer, mas
pode não estar pronta
existe o risco, as coisas mudam
acabam, e aí?

é como ganhar
um dinheiro inesperado
seria bom, mas se vem, de repente
a pessoa periga não saber o que fazer…

Como ser vidente sem expor os chifres e as garras? Escorpiana doce, eu tô pra conhecer; vidente boa é aquela que manda a verdade na lata porque não cobra, então, não tem medo de perder freguês ou gorjeta, escreve poema de aeroporto para zoar com poeteiro zona sul que fala nada sobre nada, mas, acho que nem te falei que, da última vez que eu li O Poema, fiquei pensando nos pentelhos da Medusa. Ah, e obrigada por me convidar.

Aproveito o momento para solicitar a minha carteirinha da biblioteca Stephanie Borges. Estou na fila para todos os livros da Octavia Butler. O Kindred foi um divisor de águas para mim e eu estou tão inspirada que comecei a escrever um livro que eu sei que você não vai gostar, mas, que se eu conseguir terminar, te mando. No momento, tenho lido também bastante coisa de lésbicas negras, como a Lorde — ao acompanhar o início da tradução do sister outsider, que me fez voltar a artigos que eu já havia lido e a ler outros — e Cheryl Clarke, tentado sistematizar minhas críticas às teorias lesbofeministas que temos, levando em consideração questões étnicas, sociais, culturais e territoriais. Isso tem sido bastante fundamental na minha construção nos movimentos lésbicos do erre-xota. São tantas narrativas que temos de conhecer e produzir, que lembro da sua inquietação de adolescente, que reclamava que não haveria tempo para ler tudo o que gostaria antes de morrer.

O que mais me marcou em Kindred foram os relacionamentos interraciais. Pensei muito em síndrome de estolcomo, mas a metáfora da abdução alienígena me parece especialmente inteligente para lidar com o raptos de africanos pelo tráfico escravagista. Mesmo detalhando técnicas de tortura usadas pelos brancos, não temos registros de tudo, apenas fontes produzidas por eles, destruídas por eles e, muitas vezes, analisadas por eles. Então, até na ficção contra-hegemônica, muita coisa se apaga. A primeira coisa que passou pela minha cabeça quando a personagem Alice aparece, pela primeira vez, em Kindred, é que, no Brasil colonial, se acreditava que a melhor cura para sífilis era comer uma negrinha virgem. Isso, numa época sem noção de infância, o que significava o estupro de meninas negras de 7, 8 anos de idade. Assim como o Kindred, Corra! também é terror; pelo menos, para o público negro. Me arrepiou a espinha, durante a leitura, a Dana não conseguir perceber o racismo do marido. E dói. Ainda mais forte porque quantas de nós não estão raptadas em relacionamentos opressores e assimétricos sem sequer entender que aquilo não era para ser assim?

Mas, olha, lembra quando eu disse, no início da cartinha, que não tinha nada mais preto do que fazer arte com um monte de referência porque a vida pode ser muito curta pra pessoas como nós? A mulherada do rap está fazendo um trampo muito bacana de divulgação de referências; as manas do slam tão bombardeando as novas gerações com textos que mostram a importância da narrativa preta. E a gente ainda tem clipe da Beyoncé rebolando a bunda no Louvre.

Daí, se eu esfrego a minha xoxota fancha na tela ou se você escreve sobre dentes e cabelos, o que fazemos são diálogos de partes pelos todos infinitos que surgem nesses experimentos loucos, onde a gente joga no caldeirão vivência, leitura, análise crítica, linguagem poética, mistura de cores, coragem e pedacinhos de nós. Aí, a gente mexe e mexe e mexe até deixar o mundo de cabeça pra baixo.

Amo você,

J.Lo

P.S.: Não li todos os 28 livros de bibliografia anexados na cartinha por motivos de ai, irmã, um dia eu leio e jogo a referência na mesa do almoço;

P.S.2: Deveríamos nos escrever mais. imagina se alguém um dia publica as nossas cartinhas? Ia ser chique. Hahahaha.

J. Lo Borges é tatuadora, grafiteira, artista, militante lésbica feminista. Até 10/10 ela expõe sua arte na Coletiva Visibilidade Lésbica no Coart — UERJ.

Leia a carta de Stephanie Borges para J Lo aqui.

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na bicicleta, no carrinho de rolimã, nas ideias, uma revista digital, um selo de poesia, uma editora, um coletivo levando desconhecidos a pegar carona