#4 — O Meta Jogo

Jairo B. Filho
Diário de um Game Designer
6 min readFeb 13, 2018

Bem… dando continuidade ao meu diário de produção, eu agora chego em um ponto que penso ser fundamental no desenvolvimento de um jogo: o Meta Jogo, ou melhor: a distribuição do Meta Jogo para o grupo.

“Mas, Jairo… Metajogo só afeta negativamente os RPGs”, você provavelmente vai pensar, e dizer. No entanto, eu já fiz minhas divagações sobre a visão equivocada que o Meta Jogo possui neste artigo aqui, e agora eu as trago em outra ótica — não a do Mestre/Narrador, mas a do autor.

Então, eu penso que deveria começar pelo básico nesta perspectiva: todo jogo narrativo é, em essência, um exercício de Meta Jogo. É tudo “faz de conta”, uma brincadeira onde todos sabem que atuam papéis distintos de suas realidades. E a aquisição de informações externas ao seu Personagem é inevitável, para talvez não dizer essencial na manutenção do próprio jogo.

Pense no Meta Jogo, portanto, como sua matéria bruta. Você vai dilapidar nele, com o apoio de tudo que você já definiu (sua experiência, seu tom e seus papéis), o seu jogo, estabelecendo assim como ele vai de fato funcionar. É aqui que o desenho das regras efetivamente começa — e, por isso mesmo, vamos começar a nos aprofundar neste aspecto.

À Raiz do Problema…

Sabe, ao mesmo tempo em que considero este momento como um dos mais importantes, também o vejo como a parte difícil do processo (não “a” parte mais difícil, mas bastante desafiadora). Tudo isso porque envolve definir, de fato, o grau de interação permitido pelo jogo.

Não estou falando diretamente dos papéis, mas dos jogadores em si; como seria a participação deles no andamento do jogo? Como eles podem participar, ou contribuir, na construção e condução da história? Em qual plano eles realmente participam das histórias?

Isso pode acontecer em planos variados, como a simples execução dos papéis; traçando suas escolhas pessoais, e/ou usando suas capacidades potenciais.

Em Dungeons and Dragons (assim como em muitos dos jogos mais “tradicionais”), o Meta Jogo é atribuído de forma leve — trabalhado na construção dos Personagens. É por eles, e apenas por eles, que os jogadores intervêm na trama — traçando, assim, o Meta Jogo indiretamente.

Ou, em outra instância, isso pode acontecer mediante a intervenção externa ao personagem, a partir do manejo de recursos que possam modificar (ainda que brevemente) o andamento da trama.

O sistema Fate conta com um recurso muito interessante aos jogadores: os Pontos de Destino. Com o consumo destes pontos, os jogadores podem mudar os rumos de uma rolagem, ou até adicionar elementos novos a uma cena — e o limite é apenas a criatividade do jogador!

Um Chamado à Coletividade

Em um outro aspecto, estabelecer o nível de exploração do Meta Jogo define também o grau de participação e comprometimento do grupo em estabelecer o ponto de partida da história — processo este que chamamos de setting, a “configuração” da história. Em criar um jogo, você precisa ter em mente como esta configuração vai se formar.

Isso pode ser de modo unilateral, onde um dos lados se incumbe de criar todo o pano de fundo no qual o jogo vai se formar. Essa é a forma mais comum de concepção, geralmente a colocando nas costas do Mestre/Narrador (mas isso não é norma geral, claro).

Em Este Corpo Mortal, os jogadores criam o contexto de sua história entre si, sem a participação ativa do Moderador, em uma Ficha-Tema. E, ao longo do jogo, eles podem modificá-la como acharem melhor — sob o crivo do Limite de Credibilidade (a “razão coletiva” mantida pelo grupo).

Ou isso pode ser discutido abertamente pelo grupo, como em uma conversa informal (processo este que caracteriza alguns jogos já apresentados no Diário, como Apocalypse World e Mosterhearts, por exemplo). O grau de participação pode contribuir, inclusive, nas formas como os jogadores podem elaborar melhor o jogo.

Em um dos jogos da casa, Postmortem, os jogadores constróem juntos a vida pregressa do Espírito em seu Epitáfio — e isso abre o precedente para o estabelecimento de cenas durante o jogo.

Um Ponto em Comum

A distribuição do Meta Jogo pode também acontecer por um lugar comum, algo que venha a ser compartilhado entre os jogadores. Isso pode ser atribuído por um papel em comum para o grupo, ou um objetivo… ou, quem sabe, algo para proteger.

No jogo Busca Final, os jogadores formam uma companhia em torno do Dûk — seu suposto líder, alguém de coragem e determinação inspiradores. Papel este que “gira” entre os jogadores durante a história — quem o assume, deixa seu personagem de lado.

Ao mesmo tempo que venha a ser um recurso narrativo, este tipo de estabelecimento também vem a ser uma ferramenta de conexão entre os jogadores, e não apenas entre seus Personagens. Torna-se uma preocupação, uma responsabilidade a ser assumida coletivamente.

Em Blood and Honor, os jogadores assumem o dever de proteger sua província e seu daimyo (Senhor Feudal), definindo seus estabelecimentos e assumindo as decisões de seu líder para o crescimento e/ou segurança de sua cidade e população.

Controle de Conteúdo

Por último, mas não menos importante, a distribuição do Meta Jogo serve também para ajudar a filtrar conteúdos que podem ser impróprios ao grupo. Cenas e/ou situações pesadas, que podem acionar gatilhos psicológicos nos jogadores, podem ser anulados se o poder de veto for dado a eles.

Este é, na verdade, um recurso que antes era inerente ao jogo — algo muito mais ligado ao Contrato Social estabelecido pelo grupo. No entanto, em alguns casos, a prática do X-Card tornou-se imprescindível no acompanhamento de jogos de temática mais pesada e/ou tocante.

Em Violentina, um jogo de perspectiva e linguagem pesadas, os jogadores traçam Linhas em assuntos potencialmente incômodos e podem colocar Véus em cenas que, quando detalhadas demais, podem também causar desconforto.

A César, o Que é de Cesar!

Ok, a frase acima foi um pouco forçada… mas é que, como autor de jogos, eu defendo a distribuição plena de Meta Jogo aos jogadores. Afinal, eles devem (ao meu ver) ser tão participativos na história — seja “on” ou “off” — quanto seria o Narrador. Mas claro, essa já é uma questão de estilo pessoal, e por isso mesmo você tem todo o direito de pensar diferente de mim, caro leitor.

Só entenda que o Meta Jogo é a base de todo jogo narrativo, e ignorá-lo (ou “olhá-lo torto”) pode comprometer o seu desempenho. Da mesma forma, quando rascunhar ou elaborar um projeto, pense nele com carinho. Principalmente, reflita sobre a forma como ele pode ser trabalhado, e como pode isso contribuir nos elementos que você já tem definidos. Isso pode levar um tempo, e provavelmente fará você repensar na experiência, ou no seu tom, ou até mesmo nos papéis que já foram estabelecidos, mas acredite: é uma dos momentos mais interessantes do projeto.

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Jairo B. Filho
Diário de um Game Designer

Game Designer independente, fundador do selo Jogos à Lá Carte e entusiasta de pesquisas e boas conversas.