Cenas

Steffi de Castro
Ensaios sobre a loucura
4 min readMar 24, 2017

(se quiser, pode ler ouvindo isso aqui)

Meu caminho é uma linha reta. Em trinta minutos consigo sair da minha casa e chegar ao trabalho tranquilamente, andando. Prefiro assim. Poderia chegar mais rápido de outras maneiras, mas prefiro caminhar, num passo de velocidade certa e direcionado.

Antes de sair de caso baixo a playlist que me dá na telha, geralmente com pressa, pois estou quase sempre atrasada. Assim que ponho os pés para fora de casa ponho também os fones de ouvido. O mundo não fica no mute.

Ouço músicas praticamente o tempo inteiro, mas nunca para me desligar das pessoas ou do que esteja acontecendo ao redor. A música faz com que eu me comunique mais ainda. Tudo vira cena. Tudo passa a ter trilha sonora.

Eu não lembro exatamente o que eu estava ouvindo, mas outro dia encontrei no meio do caminho o Edu, passou por mim, na sua moto enorme, e eu reconheci pelo som do motor, mais alto que a minha música. Ele também me reconheceu. Sorri e mandei um beijo, ao que ele respondeu da mesma maneira. Logo o trânsito lhe engoliu. Continuei meu caminho em paz, como se nada tivesse acontecido. Só uma cena.

Outro dia fiz isso com um policial em serviço. Sim, em serviço. Notei que ele me observou, sorri e ele sorriu de volta. Corta! Mais uma cena feita. Estava na companhia de um amigo, que riu da minha brincadeira, mas foi até lá pegar o número dele para mim. Ah, bobo. Não quero conversa, a cena estava boa com a música que estava tocando. Só isso.

Faço isso o tempo todo: crio cenas no cotidiano. Por vezes fico impressionada sobre como eu nem me importo caso eu encontre qualquer uma dessas pessoas novamente. Sinceramente, para mim, são apenas personagens, e coadjuvantes, ainda por cima. A música continua boa nos meus ouvidos, e eu continuo caminhando sem pensar em muita coisa.

Tudo vira cena: o homem que vende o café, o motorista que me dá bom-dia, a pessoa que passa por mim bocejando, a criança sendo empurrada para ir à escola, já bem atrasada. Você que me olhou.

Foi assim que te conheci. No meio do caminho não havia uma pedra, havia você. Não tropecei, sorri. Você sorriu de volta. E logo nos distanciamos.

Olhei para o relógio: 07:47am. Desta vez, foi diferente. Eu não conseguia finalizar, a cena foi tão bonita, que eu queria repeti-la, vê-lo novamente. Teria que esperar todo o final de semana pelas 07:47 da segunda-feira, quem sabe eu não te encontro ali de novo?

Todos os dias, às 07:47 (até contando os minutos eu estava), tentava estar exatamente naquele ponto em que eu te vi. No primeiro dia não tive sucesso, assim como nos três seguintes. No último dia útil da semana decidi chegar um pouco mais cedo e nada. Mais um final de semana passou. Não me importei mais. Todas as músicas lindas que eu pensei para te encontrar, ouvi fazendo cenas com pessoas que não as mereciam.

Recomeço a semana andando sem muita convicção, até que finalmente te vi mais uma vez, sem esperar — Oh my song says it all, do you hear it in the verse?♪ Eram 07:50. Já havia te olhado caminhando em minha direção, mas sem ser para mim, ah, que dor! Encarei você com minhas sobrancelhas levantadas, te dei meu sorriso mais safado, você passou por mim sorrindo também, olhei para trás e você também estava me olhando. Parei. Parei de andar e continuei sorrindo para você. Você ficou confuso, desnorteado. Fui ao seu encontro.

— Eu te conheço de algum lugar?

— Não. Quero dizer, não sei. Conhece?

— Acho que não…

— Então eu posso te dar o meu número e você me conhecer.

Esperto! Gosto assim. Você entendeu. Eu não te conhecia de lugar algum. Você também não. Ambos sabemos disso.

No mesmo dia, à noite, você falou comigo. A conversa era boa e sua foto bonita. Você era todo bonito, principalmente seu sorriso. Pela primeira vez, eu tirei o fone de ouvido. Não queria que isso fosse só mais uma cena. Sem trilha sonora, por favor. Apenas o silêncio e as suas palavras que agora estavam me fazendo sorrir. Eu disse que ia dormir, pois já era meia noite e você respondeu:

“vai dormir agora? Agora que são 23:57 rs”

Você estava contando os minutos também! Três minutos me separaram de você por mais de 3 dias. Não quero que isso seja só mais uma cena. Corta!

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