[Fotografias da autora]

A leitora e sua síndrome de impostora

[Experiências de Leitura #4]

Carla Soares
Mulheres que Escrevem
8 min readMay 10, 2017

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Entrei tarde no hype da #FebreFerrante. Tinha ouvido falar incontáveis vezes dos livros conhecidos como a tetralogia napolitana e de suas inúmeras qualidades; tinha esbarrado num monte de resenhas, comentários, análises, e até tweets despretensiosos sobre eles. Me recomendaram pessoalmente a leitura. O livro digital até caiu na minha caixa de e-mail sem que eu pedisse. Ainda assim, eu resisti por muito tempo.

Eu dizia que não queria fazer parte do hype. Sei que é um orgulho besta, daqueles que ficam insistindo dentro da gente de que é preciso dar um jeito de dizer que eu sou diferente. Ao mesmo tempo que quero ser diferente, me parece tão óbvio que toda a minha insegurança vem do sentimento oposto, de querer fazer parte (e morrer de medo de não ser aceita em qualquer clube). Reconhecia esse medo numa razão boba, que me aparecia ali na sombra do pensamento.

Meu medo ganhava forma quando eu lembrava que estava escrevendo publicamente sobre minhas experiências de leitura (em 2016 na Cabine Literária, e em 2017 na Mulheres que Escrevem). Caso resolvesse encarar essa leitura, sabia que precisaria também encarar a necessidade de falar sobre um livro que já era amplamente falado, especialmente se eu quisesse ser honesta sobre essas experiências. No entanto, escrever sobre um livro do qual muita gente estava falando me parecia assustador. Eu poderia entrar no hype e ainda assim ficar de fora. Eu temia ser comparada, temia escrever um texto que julgassem pobre ou bem desinteressante perto de tanta coisa legal que estavam analisando; pensava será que de fato vou dar conta de enxergar as coisas que as outras pessoas, tão mais treinadas, estão enxergando nessa leitura?; ficava desamparada com a possibilidade de que descobrissem que como leitora sou uma tremenda farsa.

O sentimento é curioso, especialmente se me atento a minha proposta de escrita. Desde o princípio, não me propus a escrever resenhas, gênero que acho útil, mas que sempre me pareceu meio frio. Eu queria falar de livros de um modo mais pessoal — embora evitasse sempre cair no juízo do gosto/não gosto — , atenta para o meu lugar de fala e em revelá-lo. Por isso criei o título Experiências de Leitura para minha coluna. Dessa forma, eu sabia que pouco importaria minha habilidade técnica como crítica literária porque, afinal, eu jamais me propus a ser uma. Ainda assim, eu podia perceber todo o tempo aquela sensação: vão descobrir que nem as minhas experiências são suficientes.

Durante a leitura da tetralogia napolitana da Elena Ferrante, me reconheci intensamente nessa Síndrome de Impostor paralisante pois ela é experimentada fortemente por uma das protagonistas, a Lenu, ao longo dos quatro volumes. A história se passa na Itália pós-Segunda Guerra, majoritariamente num bairro periférico da cidade de Nápoles (daí o nome napolitana que aparece acompanhando tetralogia). Lenu, contrariando o contexto social marginal no qual nasceu, faz uma série de esforços para se livrar das suas origens e sair de vez do bairro em busca de uma vida melhor. Diferentemente dos seus amigos da vizinhança, ela consegue estudar e alcança uma vida material mais cômoda por meios lícitos. Se torna uma escritora de relativo sucesso.

O livro não se deixa levar por argumentos simplistas, e a gente entende que se uma parte do sucesso da Lenu acontece por conta dos seus esforços contínuos, uma outra, no entanto, é fruto do acaso, de topar com as pessoas certas, da ajuda material de sua professora do primário pelo meio do caminho, de pais que concordaram com a continuidade dos estudos pelo menos em algum momento. Não há preto e branco, as coisas são confusas e a gente tem menos controle daquilo que nos tornamos do que gostaríamos. E o livro reflete essa complexidade da vida.

Apesar dos esforços contínuos para encontrar um lugar no mundo, Lenu nunca parece se sentir de fato confortável. Ela se torna reconhecida pelo seu trabalho literário, mas sempre enxerga poréns. Duvida de seus méritos. Acredita que é apenas o acaso. Acha que o que fez ainda não é suficiente. Está sempre questionando aquilo que foi capaz de botar no mundo. Essa leitura que ela faz de si própria acaba forçando a personagem a continuar sempre e sempre se debatendo com a vida; ela nunca descansa. E isso torna seus esforços tão frenéticos e intensos que a levam a vários dissabores.

Não por um acaso o livro faz bastante sucesso nos circuitos feministas. Além da Síndrome de Impostor na qual me reconheci tão facilmente, estão lá no livro outros aspectos bem singulares da sociabilidade feminina, como as relações mãe e filha, as violências silenciosas (e outras nem tanto) sofridas pelas personagens ao longo de toda tetralogia, a competição com sua amiga, e a tentativa de construir uma independência. A Síndrome de Impostor, no entanto, me pareceu tão significativa e determinante no rumo da vida da personagem que senti que precisava falar sobre ela, talvez para exorcizar também alguns dos meus demônios.

Recentemente uma reportagem do periódico El País questionava o fenômeno. Mulheres notáveis e muito famosas como a atriz Kate Winslet, a cantora Jeniffer Lopez, e a diretora de operações do Facebook Sheryl Sandberg eram entrevistadas na reportagem para ilustrar como não importa aonde se chegue, continuamos importunadas por nossa insegurança, por aquela voz que diz que nunca é suficiente. Por que, afinal, a "síndrome de impostora" continua atormentando as mulheres?, a reportagem se perguntava.

É claro que homens também podem sofrer por esse sentimento de insegurança, mas cientistas sociais avaliam que ela ocorre mais facilmente em mulheres e em outros grupos que precisam provar seu valor social. As diferentes socializações de homens e mulheres vão criando situações que se cristalizam dentro de nós: "Na escola, desde as primeiras etapas do desenvolvimento das meninas vai ser reforçada essa falta de autoestima e confiança em seu êxito, o que dificulta sua trajetória" afirma Isabel Mastrodomenico, professora e educadora em Ciências Sociais e diretora da Agência Comunicação e Gênero entrevistada pela reportagem do El País.

Experimentamos o tempo todo sermos questionadas sobre uma suposta maneira ‘correta’ e sancionada de fazer as coisas. Os questionamentos aparecem em micro-interações, quase sempre invisíveis porém persistentes e cotidianas, que acabam por criar essa percepção tão deturpada. Em cada história pessoal, dificilmente há um fato que se possa apontar e dizer como sendo a origem dessa percepção pois é o conjunto e a repetição que esculpem essas marcas. Por isso é particularmente difícil reconhecer os danos, embora eles sejam tão evidentes.

Lenu, eu, e possivelmente você, temos todas de conviver com nossas inseguranças, fruto da socialização que ainda reforça em nós uma visão de inferioridade de qualquer coisa que a gente faça. Aliás, também temos de lidar com as recriminações por sermos tão inseguras. Não é fácil.

Essa autoexigência combinada com uma autoestima fragilizada é uma espécie de fantasma sobre o qual precisamos falar. Lenu nunca consegue realmente fugir dele, mas percebe que suas filhas já são de um outro contexto. O custo dessa fuga, no entanto, me pareceu alto demais. Lenu foge daquilo que foi capaz de construir o tempo todo em busca de chegar a um suficiente que nunca vem. Se a personagem conseguisse aceitar e assumir um pouco mais o lugar de onde veio, a cultura e o meio social que a moldou ao invés de tentar fugir dele e às vezes até escondê-lo, seria muito mais provável que ela conseguisse reconhecer seus esforços, seu sucesso, e se sentir mais à vontade na própria pele.

Expor nossos temores é uma forma de viver com eles ao invés de continuar a correr. Quando conto que me sinto uma leitora e uma escritora impostora, torno possível que outras pessoas se reconheçam na minha fala, do mesmo jeito que eu fui capaz de me reconhecer nas ações da Lenu. Abrimos caminho para conversas, apoios, e estratégias de como lidar com isso que, gostemos ou não, já mora aqui dentro de nós. Afinal, não é possível ser outra pessoa ou superar todos os nossos medos, e isso não pode ser pré-requisito para entrarmos em paz conosco. Incorporar nosso lado mais dolorido e espinhoso ao que produzimos precisa necessariamente ser parte desse processo de cura.

Três textos geniais sobre a tetralogia napolitana, da Elena Ferrante

Vá em frente: eu te encorajo a encarar a leitura d'A Amiga Genial, o primeiro volume da série. Se engaje em conversas sobre os temas que te chamarem a atenção, converse sobre o assunto, reconheça vários pedaços de si mesma na leitura. E pra que a nossa conversa não termine por aqui — são muitos os temas que estes livros trazem à tona — , escolhi outros três textos sobre a tetralogia napolitana da Elena Ferrante pra você explorar:

Todas as mulheres de Elena Ferrante, Ana Barella — Como aqui meu objetivo não foi fazer uma resenha nem me ater aos pormenores da história, escolhi esta resenha da jornalista Ana Barella para dar uma dimensão mais adequada sobre a história. É um ótimo ponto de partida para quem quer entender melhor do que se trata a obra.

Amigas e Rivais: Elena Ferrante e a pós-sororidade, Taís Bravo — O texto da escritora Taís Bravo explora outro tema muito presente nesses quatro volumes: a amizade e a rivalidade feminina. De modo semelhante ao que argumentei aqui sobre a Síndrome de Impostor, ao invés de rechaçar, a obra de Ferrante nos permite entender que é preciso também fazer as pazes com esse sentimento de disputa. "Porque Ferrante não esconde ou julga essa violência, me reconcilio com grande parte de quem eu sou".

As mulheres de Elena Ferrante, Fabiane Secches — Fabiane não se restringe a falar dos livros que compõe a tetralogia, e sim da obra de Ferrante como um todo. Explora ali as capas, as temáticas, e também defende que o grande mérito da escrita de Ferrante "é nos levar para os lugares mais obscuros e esquecidos dentro de nós mesmos". Publicado no site Valkirias.

Para ouvir o podcast que gravamos com Carla Soares, clique aqui!

Este ensaio faz parte da série Experiências de leitura, publicada mensalmente no projeto Mulheres que Escrevem. Leia também:

#1: O que falamos dos livros que lemos
#2: O embaraço em aceitar livros como ajuda
#3: Falar de si mesmo: a experiência narrada também é literatura?

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Carla Soares
Mulheres que Escrevem

Escrevo sobre comida e PANCs no http://outracozinha.com.br, e outras coisinhas no Mulheres que Escrevem