As fotografias deste ensaio são da exposição O ócio e a cidade, que aconteceu na Casa do Baile de Belo Horizonte entre julho e agosto de 2017. Textos e fotografias propunham que se pensasse sobre o raleamento de espaços urbanos que convidam ao ócio e, na parte externa, uma instalação de redes feitas à mão para re-experimentar esses espaços e outros tempos. Fotografias: Carla Soares e Gustavo Gazzola.

Que escritas e leituras estamos inviabilizando com a nossa pressa?

[Experiências de leitura #9]

Carla Soares
Mulheres que Escrevem
8 min readOct 11, 2017

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Acompanhei recentemente o anúncio da escritora sobre a interrupção da fabricação e venda dos seus cordéis. No comunicado, ela fala sobre como não conseguia mais aceitar a exigência de um tempo imperioso e acelerado de produção que aparecia frequentemente na fala de quem comprava. E preferia matar a publicação do que se ver atormentada por uma entrega em tempo impossível pra uma produção artesanal, mas que parecia ser invisível pra muitos dos que compravam.

A produção é uma esfera cercada de métodos e mitos pra se otimizar, aumentar, melhorar, e por isso urgente é uma palavra que aparece com uma frequência assustadora nas nossas vidas. Tudo passa a ser urgente e todo urgente é possível de ser pedido, como se pessoas fôssemos máquinas. O perverso desses mitos é que damos tanta importância ao tempo que frequentemente eles promovem um apagamento de quem produz, qual a forma de se produzir, ou o contexto onde as coisas são produzidas.

Muitas coisas fantásticas, no entanto, exigem outra temporalidade pra existirem. Se não aceitamos outro tempo que não o expresso, elas deixam de ser possíveis. Não se trata só dos cordéis da Jarid, mas penso em todas as coisas que estamos matando com a nossa urgência. Os trabalhos artesanais, o tempo de experimentação e de ficar à deriva, a pesquisa, as leituras de livros longos. O que estamos inviabilizando com a nossa pressa?

Uma amiga dividiu comigo sobre a angústia de se ver arrastando, desde maio, o último volume da tetralogia napolitana da Elena Ferrante. Embora ela reconheça que seja um livro longo e que mexa com muita gente que o leu, andar devagar fazia com que ela se visse sem assunto pra alimentar suas redes sociais. A angústia dela não é uma bobagem: as redes sociais constituem uma parte importante do capital social de muita gente. Estar disponível para falar de certos assuntos possibilita conexões, trabalho, contatos, trocas. Como fazer caber nessas redes os livros longos, os períodos de elaboração, as leituras que andam a passos lentos?

Estou há meses lendo Mulheres que Correm com os Lobos da escritora, cantadora e analista junguiana Clarissa Pinkola Estés. É um volume grande, com várias fábulas, mitos e histórias de contos de fadas, que são retomados e analisados do ponto de vista dos arquétipos da psicologia junguiana para resgatar imagens do que ela chama de mulher selvagem. Inicialmente fiquei com um pé atrás, com medo de que a autora pudesse reforçar estereótipos femininos, mas fui surpreendida por um leitura densa, que me fez voltar a alguns livros infantis perdidos, a fazer algumas anotações, a conversar sobre algumas relações que enxergava com alguns arquétipos do tarô. Também me preparei para participar de um encontro #LeiaMulheres sobre a obra e, nesse caso, nem usamos o livro inteiro, escolhemos um único conto, tamanho o investimento que queríamos fazer no processo. E, ainda assim, um encontro foi pequeno pra falarmos dele. Tem sido uma experiência rica — eu ainda não finalizei a leitura — mas foi preciso um pouco de coragem de não ter terminado nenhum livro antes de escrever este ensaio sobre leituras com o qual eu já havia me comprometido.

Outra pessoa dividiu comigo e com as leitoras na sua newsletter como o livro Manual da Faxineira da Lúcia Berlim a estimulava a gastar meses lendo e que sua demora não tinha nada a ver com não se ver envolvida com a leitura: Estou há meses com ele na cabeceira, tento ler um ou dois contos toda vez que deito para dormir (obviamente não sigo essa frequência a risca ou já teria terminado), e toda vez que leio um dos contos eu me envolvo o suficiente para admirar e me impressionar com a escrita dela. Mas justamente porque são contos e não um romance inteiro (embora os contos se conectem de uma forma super interessante), eu não sinto o impulso de sentar e ler até o fim. Acaba sendo um exercício constante eu me forçar àquela leitura pela leitura em si, e não pela vontade de dar o livro por terminado. E no fim também faz com que a leitura de cada conto seja mais prazerosa, conta .

Há uma quantidade imensa de coisas tornadas públicas nas redes apenas para cumprir uma periodicidade imaginada por nós mesmas, mas que serve pra dar continuidade ao fluxo de coisas postadas, à lembrança de que uma pessoa ou um projeto continua a existir. Alimenta-se apenas uma frequência de contato sem se prestar tanta atenção na sua qualidade. Os algoritmos nos pressionam também a agir assim: se apenas uma fatia da audiência vai ver minha postagem, preciso postar frequentemente pra ter a chance de ser visto, de ser percebido, de existir. Não é culpa nossa como indivíduos, mas uma questão coletiva, do mundo em que vivemos e da forma como ele é estruturado.

Essa mesma engrenagem que nos faz alimentar uma produção incessante e frenética é a que nos faz sentir angustiados e soterrados com um excesso de informação que sabemos que não temos como lidar. Não estamos apenas matando processos com a velocidade, mas criando monstros no porão. Nossa ansiedade é uma criação da nossa inviabilização de outros tempos que não o do urgente: não consigo acompanhar o fluxo de coisas produzidas; me sinto pressionado a produzir no mesmo fluxo que percebo que os outros estão produzindo; ninguém consegue acompanhar o fluxo de coisas sendo produzidas. A ansiedade tem formato circular.

Pra romper o ciclo, é claro que é preciso começar olhando pra nós mesmos. Repensar as urgências que sentimos, parar de cobrar do outro que tudo apareça pra ontem. Se paramos de exigir urgência no outro, é provável que em algum ponto também diminuam as exigências conosco. Mas tudo isto é um processo, um aprendizado. Dar conta de dizer não à pressa e à velocidade, e exercitar não sentir culpa, nem se diminuir ou se sentir mal por isso não são coisas que estarão disponíveis amanhã. Se quero um mundo em que o meu tempo e o tempo das outras pessoas seja considerado, preciso começar a criar esse mundo e ser coerente com os meus valores. Dizer não a trabalhos que têm essa demanda de impaciência nem sempre é possível — o sistema garante uma boa dose de perversidade — , mas aceitar tudo é ser conivente com o que nos faz mal. Cada um precisa exercitar pequenas tentativas, até encontrar sua medida e agir onde dá.

Dentre as pessoas envolvidas com a escrita, percebo especialmente nas newsletters como vários dos autores, em algum momento, falam sobre essa questão, se desobrigam de uma periodicidade fixa, reveem posicionamentos. O formato da newsletter particularmente é atraente também por isso: ao não precisar passar pelos feeds das redes sociais, posso rever o fluxo, a continuidade, a quantidade de contato porque tenho mais autonomia pra chegar até quem me lê. Acho válido, especialmente quando este posicionamento é exposto porque propõe uma reflexão coletiva.

A atitude da Jarid, de expor sobre seu processo artesanal, é outra estratégia indispensável. Precisamos falar sobre nossos processos, lembrar e sermos lembrados de que nem tudo se transformou em engrenagens e um coração e mãos humanas ainda são aquilo que temos— ainda bem. Precisamos nos dar conta de que continuam existindo processos de outra natureza que não a maquínica. E que eles, num mundo natural cercado de processos e organismos vivos, são a maioria. Não importa o tanto que a gente use a metáfora da máquina pra falar dos nossos corpos, do nosso fazer, da gente: nós continuamos sendo vida, ainda que a gente precise continuamente relembrar isso.

Três propostas pra se continuar pensando sobre o tempo

Saber fazer as perguntas é um princípio mais importante do que conseguir dar as respostas, pois as respostas podem continuar se desenvolvendo sem nunca ter prazo pra acabar. Perguntar-se O que estou inviabilizando com a minha pressa? é uma tentativa de seguir escapando da roda da ansiedade. E nessas três sugestões de reflexões incríveis, a gente segue perguntando, tentando entender, e tecendo respostas:

Dossiê sobre detox digital (, na contente.vc) — Desacelerar a velocidade das timelines e a quantidade de abas vistas no navegador é uma questão que se coloca cotidianamente para muitos de nós. Porém, como reconhecer o que é informação necessária e aonde está o excesso? Como reduzir a informação ao necessário? A Daniela Arrais produziu um especial na contente.vc explorando a temática. O caminho é começar identificando com o quê ou com quais pessoas partilhamos nosso tempo no mundo virtual? Para quê? O que estamos buscando? Quebrar a roda da ansiedade é possível quando entendemos o que a gente quer com tanta produção a jato. O dossiê é longo, delicioso e a autora avisa: o tempo médio de leitura é de 45 minutos. Para ler com calma e com tempo.

Não há como antecipar o fim das coisas (Milly Lacombe, na TPM) — Relativizar nossa vontade de controlar o mundo também é uma tarefa ligada ao exercício do respeito pelo tempo do outro. Nesta crônica, a jornalista Milly Lacombe fala de ser surpreendida com o fim, e de como a percepção afeta nossa relação com o tempo: Nas trincheiras do dia a dia sobra pouco espaço para que dediquemos total atenção a outro ser humano: temos que checar o celular, ver se alguém mandou WhatsApp, se alguém publicou alguma coisa nova, se alguém curtiu o que publicamos. Fora isso, tem as constantes vozes em nossas cabeças, que insistem em nos levar para o passado, onde o que existe é saudade, ou para o futuro, onde o que existe é preocupação. Dar a mais completa e imperial atenção a outro ser humano e, com ele, permanecer aqui e agora, é uma manifestação divina.

As ansiedades de ser autônoma (, para a Mulheres que Escrevem) — Uma escritora sabe: as palavras moldam nossa realidade e são mais poderosas do que a maioria das pessoas supõe que seja. Por isso, o convite neste ensaio é o de se prestar atenção à forma com que nós tecemos nossas narrativas. O que falamos de nós mesmas? Estamos sempre afirmando que não temos tempo? Que estamos correndo? Exigimos dos outros também que entrem nessa dança? Cuidar daquilo que dizemos é um cuidado coletivo. Quando nos recusamos a continuar esse enredo, estamos também dizendo que não é certo nem digno que nosso valor seja medido somente por aquilo que a gente produz (e nem pela velocidade com que a gente produz), e ajudamos a costurar uma outra realidade.

Para ouvir o podcast que gravamos com Carla Soares, clique aqui!

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Carla Soares
Mulheres que Escrevem

Escrevo sobre comida e PANCs no http://outracozinha.com.br, e outras coisinhas no Mulheres que Escrevem