Life is Strange: causa e consequência em um mundo sem heróis

Felipe Massahiro
Nerd / Articles
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7 min readOct 20, 2015

“Às vezes é melhor perder e fazer o que é certo, do que ganhar e fazer o que é errado” — Tony Blair

Quando comecei minha jornada por “Life is Strange,” o adventure da Dontnod publicado pela SquareEnix, sabia que seria uma história maravilhosa. Contudo, com a chegada do 5° e último episódio, o jogo se mostrou um verdadeiro mar de reviravoltas em uma das melhores tramas que já joguei.

A primeira diferença em relação ao jogo da TellTale “The Walking Dead” é a proximidade com a realidade. “Life is Strange” utiliza os clichês da rotina de uma universitária que acaba de ingressar em um prestigiado campus. Os problemas da adolescência são facilmente identificáveis com o jogador, com a diferença que os poderes especiais de Max adicionam um novo fator.

“Life is Strange” assemelha-se em sua essência ao anime “Steins;Gate” com seus levantamentos éticos e morais em relação ao poder de voltar no tempo e realizar mudanças. Ainda não pude jogar o jogo que originou o anime, mas se tratando de roteiro, “Life is Strange” da um passo adiante na tragédia.

Talvez o que mais chame a atenção nessa mistura de estilos, clichês e sobrenaturalidade seja muito mais do que um mistério — o tornado que irá destruir Arcadia Bay — dentro de um outro mistério — o desaparecimento da estudante Rachel. Não. Em “Life is Strange” não é apenas a proximidade da realidade da adolescência dentro de uma universidade, ou o estilo de escolhas e consequências que presenciamos em “The Walking Dead” ou “The Wolf Among Us,” que faz com que o jogo seja especial.

São as decisões que temos que tomar em que não podemos voltar atrás, mesmo com os poderes de Max, que torna a narrativa uma tensão constante. Mesmo com a habilidade de voltar no tempo, o jogador se depara com sua impotência em saber o que virá adiante e o 5° episódio serve como o juiz de tudo que fizemos.

Não que as escolhas de “The Walking Dead” sejam levianas, mas a ambientação em um universo zumbi parece uma realidade distante da nossa, enquanto as opções que são oferecidas em “Life is Strange” em sua maioria parecem mais ligados à realidade em que vivemos, e é isso que nos assusta.

A morte é uma constante dentro do cenário apocalíptico, mas quando ela é algo inimaginável, ou distante como o é no cotidiano de qualquer pessoa, escolher entre salvar ou não uma vida parece uma decisão muito clara, mas “Life is Strange” faz com que o sentimento de uma grande consequência por salvar alguém seja uma constante. E o pior, assim o é.

Cada pequena escolha feita ao longo dos episódios dá frutos no quinto episódio.

Cada pequena ação desencadeia uma série de consequências

Seja abrir uma janela para salvar um pássaro. Seja entalhar uma pequena marca na lareira da casa de uma amiga. Algumas das pequenas decisões acarretam em diálogos e eventos extras que enriquecem o mundo de “Life is Strange,” fazendo com que muitas dessas ações tenham sentido, influência e, acima de tudo, mantenha o jogador atento no que ele faz.

Lembro-me de um amigo que disse que quando morava em Londres acabou perdendo o ônibus. Optando por não correr com a namorada, esperaram o próximo. Só mais tarde souberam que aquele ônibus que perderam seria o ônibus que explodiu em uma série de atentados terroristas que aconteceriam por lá.

De certa forma, “Life is Strange” traz esse sentimento de que até mesmo os pequenos gestos. Os pequenos eventos que fazemos ou deixamos de fazer, tenham suas consequências que, muitas vezes, torna-se um fator que redireciona a vida.

Não é uma questão de fazer o bem, mas de fazer o que é certo

Com poderes de regressar no tempo, sempre somos colocados em uma posição de decisão como qualquer outro filme ou jogo de ficção com essa temática: “e se?”

No jogo não é diferente. A protagonista pensa “e se?” o jogador pode fazer com que isso se torne realidade. “E se eu escolher a outra opção de diálogo” ou “E se eu fizesse isso?” Em eventos grandiosos como foi o cliffhanger do episódio 3 para o episódio 4, a narrativa foge um pouco do controle do jogador para criar um impacto ainda maior.

Como a própria Max descobre, para toda a ação há uma consequência e, ainda que ela não tenha o conhecimento dos eventos que muda (como Okabe em Steins;Gate), mas pouco a pouco, ela e o próprio jogador percebe o caos em que a realidade da protagonista se torna com essas pequenas (ou não tão pequenas) viagens no tempo.

Isso nos ensina (e quando digo “nos” refiro-me ao jogador, a própria Max e sua amiga Chloe) que fazer fazer aquilo que é certo, nem sempre significa fazer algo bom.

A apatia do “fazer de novo”

“Ah, eu posso voltar no tempo para arrumar isso.” Não é incomum esse pensamento se fixar no jogador, mas quando isso acontece com Max, cria-se então uma certa apatia nas consequências de suas decisões.

Se eu posso voltar no tempo e arrumar alguma escolha que fiz de errado, então está tudo bem. Isso é fato, mas ao longo dos 5 episódios, em medidas homeopáticas, eu diria, a própria narrativa consegue fazer com que voltemos à realidade de que não se pode fugir de nossas decisões. Precisamos crescer com ela.

Como em nossa realidade, esse fato normalmente é acompanhado com o mesmo impacto de um soco na boca do estômago.

Esse aspecto do jogo é maravilhoso. Pois ao mesmo tempo em que podemos voltar indefinidamente no tempo para salvar alguém, ou descobrir alguma informações primordial, no grande cenário da trama, perdemos o controle e o poder que sentimos ser uma vantagem em relação ao mundo real, mostra-se completamente inútil perante ela.

A sensação de nossa impotência — ou da impotência de Max — dentro de um cenário ainda maior, apesar dos poderes de voltar no tempo, nos coloca em certa posição de desvantagem. A trama nos guia por um caminho sem volta. Por um caminho de consequências grandiosas a pequenas decisões. Assim como o é a vida.

Ao longo dos 5 capítulos, deixamos aos poucos a apatia em nossas escolhas e passamos a valorizar mais as decisões que tomamos.

Episódio Final (o trailer possui alguns pequenos spoilers)

O episódio final desfaz todos os nós na trama ao longo dos 4 episódios. Pode parecer truncado, já que muitos elementos de exploração foram retirados, mas se tratando da grandiosidade da trama que construíram, foi um trabalho muito bem feito.

No episódio 4 tive dúvidas em como eles colocariam o evento chocante dentro da história. Felizmente houve uma importância para o ocorrido. Essa maneira de encaixar cada pedaço da história, das escolhas realizadas, no episódio final como se este fosse um juiz para nossas ações, foi bem legal.

Esse episódio funciona como uma Ária de começo, ou um Da Capo, musical. É o retorno ao mundo real mudado pela jornada, ou assim é o que aparenta. Além de solucionar um mistério atrás de mistério, o episódio também o é uma leitura introspectiva da psique da personagem central.

Ao longo do jogo há diversos momentos de reflexão em que Max descansa e realiza monólogos sobre sua atual situação. Há a presença desses momentos também no episódio 5, contudo, há ainda uma boa parte em que literalmente o jogador pode imergir dentro dessas reflexões. Como uma retrospecção de suas ações.

Vou me reservar em dar spoilers do fim, mas achei um fim descente. Talvez não seja algo inusitado, longe disso. “Life is Strange” consegue utilizar os clichês com tamanha maestria que da identidade própria à história do jogo. O final não é tão diferente.

A escolha que devemos fazer no fim é impactante o suficiente para refletir um pouco de tudo que nos foi proposto ao longo do jogo. Nossa conduta ética e moral é colocada em um grande cheque mate.

Até então pude notar que existem 2 finais diferentes que afunilam, ao longo do episódio final, todas as decisões tomadas durante o jogo.

É um final digno para a excelente história de “Life is Strange,” onde prova-se que não existem heróis no mundo e que as decisões mais difíceis, são tomadas por pessoas comuns e que, no fim, são justamente essas decisões que nos fazem crescer.

No geral “Life is Strange” possui uma ótima história, com o uso surpreendente de clichês em uma trama única com puzzles e decisões cativantes. Faz um bom tempo que não jogo algo com uma história que oferecesse tamanha identificação com a realidade, utilizando ainda elementos sobrenaturais e mistérios psicológicos.

Definitivamente merece as premiações que recebeu. Dontnod conseguiu produzir uma pérola para o storytelling nos jogos e, com o auxilio da SquareEnix, a empresa conseguiu adicionar um título no hall de grandes histórias, ao lado de títulos de RPGs como Xenogears ou a série Final Fantasy.

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Felipe Massahiro
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Jogador compulsivo, escritor obcecado, amante perturbado da literatura e jornalista de vez em quando.