“Mayara está viva. Eu vi ela pessoalmente”

Capítulo I — Noite passada os cães não ladraram

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AVISO DE GATILHO: CENAS FORTES

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17 de novembro de 2016

Marcus Vinicius Amaral Pereira saiu para uma caminhada matinal perto das 10h da manhã, como era de costume quando visitava seus pais numa beira-mar localizada no bairro Ponta de Baixo, em São José (SC). Nesses dias em que procurava manter sua forma, lutando contra o avanço dos 34 anos, fazia um trajeto que consistia basicamente em percorrer a Prainha, que recebia esse nome por ser um grande jardim coletivo onde o mar deságua numa faixa de areia de menos de um metro, junto a um gramado amplo.

Esperava encontrar ali o de sempre: a companhia dos vira-latas que sobreviviam das sobras, o ânimo dos akitas e dos beagles detrás dos portões, uma ou outra gaivota nas pedras à distância. Pássaros cantando no alto do telhado dos casarões de dois andares, dos muros de dois metros e das árvores de mangue. Na areia da praia, cascalhos arrastados do mar puxando bitucas de cigarro e pontas de baseado restantes das noites anteriores dos jovens, geralmente provindos dos bairros vizinhos. E no gramado, o decadente barquinho amarelo de listra branca e nº44, quase sempre preenchido por entulhos, como pedaços de madeira e um rolo de corda de pescador.

A única coisa que Marcus não esperava encontrar naquele ambiente imaculado pelo blasé da classe-média-alta era um cadáver.

Mal atravessou a mureta, quando se deparou com uma garota amarrada com o que parecia ser fita adesiva junto a um tecido vermelho, enforcada por uma corda de pescador que se alçava no topo de uma das árvores de mangue. A boca estava amordaçada, por voltas e voltas de uma fita parda. O corpo estava sentado, a coluna ereta, sobre raízes pontiagudas do manguezal, inundadas pela maré que começava a subir.

A polícia chegou cinco minutos após a notificação. Ademar e João Otávio eram os responsáveis pela ronda naquela manhã. Encontraram uma movimentação ao redor do corpo. Trataram de isolar a cena e conter os ânimos mórbidos do pessoal. Com exceção da boca, cujas camadas de fita sobrepunham uma volta e meia, firmemente no mesmo lugar, as ataduras enrolavam o corpo todo, irregulares, como uma serpente de plástico que não sabe sair do nó em que se meteu. Começavam nas mãos, junto a tira vermelha de elástico. Não apertavam muito, serviam mais para atar os pulsos sobre as pernas, também enroladas em fita. Dali, subia até a cintura, pra dar três voltas e seguir pros braços, sobre a roupa, até conectar-se à pele dos pulsos outra vez, para então retornar à cintura, e voltar para a coxa esquerda. O laço no pescoço, com os nós à esquerda, pendia a cabeça para o lado oposto. Areia sujava as laterais da legging de lycra.

Detalhes do corpo encontrado na praia no dia 17 de novembro de 2016. Imagem: Inquérito Policial

A garota tinha ascendência indígena e alemã; seus grandes olhos eram puxados; o queixo era quadrado, marcado por duas linhas musculares que atravessavam até a metade da bochecha; seu nariz lembrava uma batatinha; enquanto o cabelo, pouco abaixo dos ombros, estava loiro oxigenado, descuidado pela falta de retoques, deixando que lentamente a raiz negra reconquistasse seu espaço.

Os dois notificaram a Polícia Civil, que demorou quase uma hora para chegar ao local do crime.

E sessenta minutos foi mais do que o suficiente para que se espalhasse a notícia de que a Prainha amanheceu com o corpo de uma jovem loira na faixa dos 20 anos. Primeiro chegaram os moradores dali, um ou outro já havia visto a menina antes, geralmente de dia, fumando um baseado ou tirando selfies. Como é o caso do advogado Paulo Santana Júnior, que mesmo sem chegar perto do corpo, pressupôs se tratar de um caso de suicídio. Em seguida, chegaram os moradores da Fazenda Santo Antônio — a “Fazenda Max” — , da Ponte do Imaruim, e da região adjacente num todo. Nessa leva de curiosos, vieram juntas Angélica Rosa e Juliana “Neguinha” Passos Costa, duas moças da Fazenda Max, que reconheceram o corpo como sendo de sua amiga: Maiara Felisbino dos Anjos. Elas até quiseram se aproximar para ter certeza, pois parecia ficção, mas não podiam comprometer a cena.

Ilustração: Marcos Keller

Os policiais não deram tanta bola para o relato das duas, talvez porque pensavam que diante de um crime todo mundo quer mostrar serviço, ou não as achassem críveis por terem a pele negra. Preferiram então ouvir um colega do posto policial da Fazenda Max, conhecido por Silveira. Ele podia jurar que se tratava de Mayara Kammer, a qual conhecera quando a garota ainda era criança, e havia determinado para si um futuro na polícia.

Mas ela sequer era parecida fisicamente com o cadáver. Na época, os cabelos curtos e rentes ao ombro eram castanhos. Já era corpulenta, e a gravidez de quatro meses se evidenciava. Tinha piercing no septo, tatuagem nas costas e nas coxas. Usava óculos de grau.

Silveira nem íntimo da moça era, que mal lembrava dele. Se fosse, saberia que Mayara já havia mudado de ambições para sua carreira; sonhava em ser médica. Ou que era bissexual, gostava de frequentar festas LGBT, como a 1007 e o Conka, e que tinha um namorado, Tiago Grizulfi, pai de seu filho, com quem estava junto desde em janeiro de 2016.

Foi justamente num consultório médico, acompanhada do namorado, que ela recebeu a notícia mais bombástica. Não pelas revistas velhas no balcão, mas sim pela mãe, via mensagem:

— Reconheceram seu corpo no IML. Querem que eu vá lá confirmar.

— Como vai ser eu, se eu saí de casa agora? Tô no hospital.

Print da publicação de Mayara Kammer após a notícia de que ela teria morrido

Ela achou engraçado nos primeiros minutos. Mas às 14h, sua prima a bombardeava com prints da notícia sobre sua morte. Amigos do Rio Grande do Sul mandavam mensagens, emocionados. A vizinhança a recebeu em lágrimas. Desmentir aquilo levaria um mês inteiro.

Mayara Kammer não entendia o que diabos estava acontecendo ao seu redor.

Quando questionado pelo jornal Hora de SC sobre o mal entendido que perturbou a moça e sua família, o delegado Manoel Galeno, responsável pela investigação, só soube dizer que: “A gente trabalhou a tarde inteira com o nome de Mayara Kammer, mas não procede esta informação porque essa Mayara está viva. Eu vi ela pessoalmente.”

A notícia segue relatando que o erro custou ao delegado um dia inteiro de testemunhas sem utilidade. “O caso está sendo investigado pela Divisão de Investigação Criminal de São José. Conforme Galeno, a investigação voltou à estaca zero, já que as testemunhas ouvidas na quinta-feira foram em função do nome errado. Ele preferiu não informar suas suspeitas se caso foi um homicídio ou suicídio.”

À esquerda: Maiara Kammer; à direita: Maiara Felisbino dos Anjos. Imagens: perfis do Facebook

Seguiram então pelo caminho mais óbvio: ouviram as testemunhas iniciais, Ju e Angélica. Finalmente reconheceram que aquele era o corpo de Maiara Felisbino dos Anjos, uma moradora da Fazenda Max, de 22 anos, tão normal quanto qualquer outro jovem a frequentar ali, tanto que carregava no bolso uma carteira de Dunhill, um isqueiro azul, um maço de chaves, dois reais em nota e 1 real em moeda. E de similar, as duas garotas só tinha o nome, que ainda por cima variava na grafia.

Objetos encontrados junto ao corpo de Maiara. Imagem: Inquérito Policial

Restava à polícia o trabalho de descobrir quase tudo sobre essa garota. Tinham como pista, além do depoimento das duas amigas, a imagem da câmera do casarão de Édio Schmitt Sales, dono de um pastor alemão que só late para quem nunca pisou naquela rua. Às 22h do dia 16 de novembro de 2016, a câmera capturou Maiara caminhando à beira do mar, chutando a água enquanto segurava o sapato na mão, pueril, como uma criança que frequenta pouco a praia. Seu trajeto foi filmado até o pequeno manguezal, onde a luz se dissipou naquele breu tão profundo que unia a vizinhança e os nóias numa mesma causa de reclamar com a prefeitura sobre a insegurança que o ambiente trazia. Curiosamente, o pastor alemão de Édio não latiu naquela madrugada.

A polícia não guardou as gravações.

Autores: Gabriel D. Lourenço & Matheus de Moura

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Gabriel D. Lourenço
Não Há Respostas Quando Morre Uma Pobre

Jornalista. Escritor. Co-fundador do NEURA Magazine e Não Há Respostas Quando Morre Uma Pobre. Encrenqueiro profissional.