“Quem fez isso tinha envolvimento com a vítima e frequentava a casa”

Capítulo V — As mãos que puxaram a corda

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A essa altura da reportagem, você, leitor, já deve ter percebido que a Polícia Civil falhou em cumprir com seu dever por todo esse processo. Sendo justo, é natural que algumas investigações demorem um pouco mais, ou que siga ao mesmo tempo vertentes totalmente opostas. O que não quer dizer que seja aceitável dois anos de investigação terminarem em 94 páginas de inquérito, principalmente se considerarmos que desse documento pelo menos três páginas estão repetidas. Ou seja, o resultado desses dois anos foi um inquérito de apenas 91 páginas.

Mas antes fosse esse o único problema.

A análise do local do crime deixou a desejar, pois a polícia sequer procurou pela origem da corda que alçou Maiara à morte, talvez o objeto chave para compreensão do fato. Ainda relativo à cena do homicídio, foram ignoradas as imagens da câmera de segurança de Édio Schmitt, que a captou caminhando, aérea, por volta das 22 horas. Da mesma forma que o relato dele poderia contribuir não apenas para entender a hora que Maiara chegou, mas também que quem cometeu o crime conhecia bem o lugar. Afinal, tinha noção de que havia uma corda de barco passível de ser usada, e não foi recebido a latidos pelos cães de Édio, que sempre latem para quem nunca pisou na Prainha antes — algo que pudemos atestar na primeira ida ao local.

Outro erro foi ignorar todas as possibilidades de acesso do lugar. São três, para ser mais preciso: a ruela por onde entrou Maiara; uma rua maior, cuja pequena calçada da lateral direita permite acesso; e uma terceira rua, que se conecta à maior pela mesma praia, permitindo entrar sem ser filmado por qualquer uma das câmeras, pois, durante a noite, as prainhas se tornam uma só, graças à maré baixa.

Mapa das movimentações possíveis para o acesso à cena da morte de Maiara dos Anjos (Imagem: Arquivo da investigação/Google Maps)

Além disso, houve descaso, por parte da Polícia Militar, com Ju e Angélica, as conhecidas de Maiara que primeiro reconheceram o corpo — o que poderia ter poupado tempo e empenho na investigação da morte de uma Mayara que nem morta estava. E quando a investigação finalmente começou a andar, com uma análise caótica do quarto da vítima, teve que ser pausada por uma dispensa do delegado Galeno, que não deixou diligências, nem alguém que pudesse manter o caso aceso nesse período. Assim, o pedido de análise do material colhido se deu cinco meses depois do ocorrido.

E os resultados obtidos foram pouco significativos, frustrando a família. E mesmo sem grandes respostas, Galeno tinha duas certezas: ou foi suicídio ou foi o Tairone.

Foquemos um pouco na tese de suicídio:

A vítima estava amarrada com fita e tecido, ou seja, duas camadas de pressão; a boca fora amordaçada; a corda não estava a uma altura que permitisse uma morte rápida, fazendo com que Maiara tivesse um mínimo de paciência para morrer; além da posição ser desconfortável pelas raízes de mangue, que inclusive deixaram marcas nas coxas dela. Numa primeira vista, beira ao ridículo chamar de suicídio, principalmente pela falta de precedentes quanto à técnica complexa aplicada à morte. Mas como não somos especialistas, chamamos um médico legista do IML de outra cidade de Santa Catarina, para garantir que não tenha quaisquer relações com o caso. Ele preferiu não se identificar na reportagem, teme retaliação da corporação.

Ao analisar o inquérito, ele foi categórico: dada as circunstâncias da morte e o grau de complexidade com o qual Maiara foi amarrada e enforcada, a possibilidade de um suicídio é irreal, sem dúvidas. Ele acredita que o laudo do IML está insuficiente, pois não aponta se o caso pende mais para suicídio ou homicídio, podendo ter se abstido de comentários justamente para não entrar em conflito com alguma tese pregressa do delegado. O legista lembrou também que, se Galeno realmente quisesse cortar essa possibilidade da lista, teria solicitado uma reconstituição da cena do crime, a qual mostraria a não plausibilidade de um suicídio naquelas condições.

Até o momento tal diligência não foi dada.

Maiara Felisbino dos Anjos morta na praia. Imagem: Inquérito Policial

Agora, vamos olhar um pouco a ideia de que possa ter sido Tairone:

O raciocínio policial de que “se há um namorado da vítima, ele é imediatamente o principal suspeito” não é completamente sem fundamento em um país agravado pela violência doméstica. Agiliza muita coisa colocar a culpa no amor da vida de uma pessoa morta. Inclusive, o fechamento de certos inquéritos.

A estatística de 4,4 assassinatos a cada 100 mil mulheres fortalece a premissa. Mas nem toda resposta que o inquérito dá é sinônimo de verdade.

Há alguma razão para os policiais quererem Tairone dos Santos atrás das grades. Sua ingenuidade o colocou de maneira muito vulnerável diante de uma polícia desesperada em encerrar aquela história. Nisso, a pressa em depor, sem advogado, pra resolver isso tudo de uma vez, não é lida como honestidade, mas culpa. Uma culpa que se implica não pela relação lógica dos fatos e sujeitos, mas pela mera presença diante do assunto. E pela mentira diante da possibilidade de ser preso — por algo que afirma não ter cometido.

Fechar a investigação no entorno do antigo parceiro coincide tanto com as estatísticas brasileiras de feminicídio íntimo quanto a uma narrativa comum. A narrativa batida da passionalidade, da possessividade, do eu-amava-demais-para-lidar-com-a-falta. Esse destino poderia ter sido o de Maiara se ela não tivesse conseguido escapar de Luiz Eduardo Domingues. Porém, pressupor essa conduta por conta de um namoradinho de três rolês sem relação com a cena do crime pode ser visto de três maneiras, uma pior que a outra:

A primeira é um vício profissional por parte da polícia, o que pode conotar dificuldades de recursos em investigação, sim, mas também falta de preparo;

A segunda é preguiça — o destino de uma menina pobre permanecer sem resposta por dois anos é um completo descaso com a existência do outro;

E a terceira é ignorância, a pior das bênçãos a se ter numa profissão que precisa olhar fundo nos olhos da maldade.

Pior ainda: Tairone tem um álibi. Depois do encontro com Maiara, passou o resto da noite junto da namorada, Andreia. E não há nada que o coloque na cena do crime. A Polícia queria mudar isso, com um DNA conseguido de uma maneira secreta, pra bater com o espermograma, como subentendeu Galeno para Márcia. E assim, provar que o sêmen no corpo da vítima, aquele encontrado sem sinais de violência, era de Tairone.

Em caso positivo, a única coisa que isso conseguiria provar é que foi ele quem fez sexo consensual com ela. Em caso negativo, bem, o espermatozoide sobrevive até 72h dentro do corpo feminino. Ambos os cenários não são tipificados como crimes no Brasil.

Também não é enxergado como problemática a consequência de apontar Tairone como o assassino de Maiara. Isso está bem longe da verdade. O assunto até hoje é sinônimo de estresse para ele. A mãe, desgostosa, prefere não tocar no assunto, nem acreditar que seu filho é um criminoso vagabundo — e pra não mudar de ideia, optou por não vê-lo mais. A vizinhança comenta, maldosa, pelas costas. E por muito tempo, a família da vítima o pressionou à loucura. Os chefes de Tairone enxergam qualquer chamado externo no trabalho com olhos tortos, como se esperassem que um dia ele encerrasse seu expediente mais cedo num camburão.

Tairone também tem medo que seu expediente encerre assim.

Mas então, como morreu Maiara? Bem, por mais que tudo aponte para um homicídio, há um fundinho de verdade na ideia de que ela tinha um comportamento suicida. Só é possível atestar esse fato, entretanto, com uma investigação de verdade e uma autópsia psicológica, que consiste numa análise da mentalidade do falecido em seus últimos dias com base no cruzamento de relatos e evidências levantadas pela polícia. Essa técnica costuma ser aplicada por profissionais da psicologia jurídica ou forense. Nem todos são adeptos disso, pois a polícia brasileira nutre, em muitos casos, uma certa desconfiança do campo da psicologia. Assim, não é de surpreender que essa ideia não tenha passado pela cabeça dos investigadores da morte de Maiara.

Fazendo o que podíamos, então, solicitamos uma autópsia psicológica com Eliamar Machado, especializada em psicologia jurídica. Responsável pelos psicodiagnósticos dos presos da Penitenciária de Florianópolis, a especialista ajudou a reportagem a observar os últimos dias de Maiara em contraste às condutas recorrentes de sua vida entre 2013 e 2016.

Ela analisa que a vítima se punha em situações de risco intencionalmente, ao abusar de substâncias e cortar relações afetivas bruscamente. “Se você for ver, isso em si é também um comportamento suicida. Tudo isso é uma forma de se matar um pouco,” afirma a psicóloga. Em outras palavras, ela já vinha se matando um pouquinho a cada dia, numa forma de parassuicídio.

Um dos catalisadores desse comportamento, em sua análise, foi a série de visões do ex-namorado morto. Esse seria talvez o maior sinal de que Maiara não passava bem, delirando pelas ruas, e apresentando condutas cada vez mais agressivas, no que Eliamar chama de surtos psicóticos.

E para ela, quando se casa os traumas da juventude de Maiara com o medo do fantasma que não existia e as sequelas de anos de abuso de drogas, tem-se uma bomba relógio, uma pessoa necessitada de ajuda profissional. Eliamar nota também que ao observar que o corpo não apresentou características de violência pré-morte, pode-se pressupor algum nível de cooperação da vítima, que estaria, muito provavelmente, em transe, no meio de um surto.

“Quem fez isso teve todo um planejamento de envolvimento com a vítima, é conhecido dela e frequentava a casa. E nesse dia, a vítima estava passando por uma fase em que favoreceu o crime, dentro de um surto psicótico. A Maiara não foi levada à força; mas a pessoa que a levou ali [na praia] tinha intenção de matar. Teve um planejamento ali: escolha de momento, situação, o que ia ser feito. Até porque foi levado um pedaço da cortina, um objeto pessoal para cometer o crime. Ela não estava com a roupa descida, estava devidamente vestida. Tudo o que houve de sexual foi antes, no apartamento dela. Isso é um indicativo de que veio de lá. Ela estava vestida de legging; calçada com um sapato, que não parece arrastado na areia nem nada. Muito provavelmente, não foi levada à força em nenhum momento. Acredito que pela pessoa conhecer a vítima, houve um jogo, um jogo de sedução. Porque a pessoa não amarrou as pernas dela depois que puxou a corda. A altura da coxa está presa, ela não ia conseguir fazer isso sozinha. Ela participou disso, pois quem fez isso com ela tratou tudo como um jogo, se aproveitando da fragilidade dela.”

E há um fato ainda não desvelado que casa com essa teoria de Eliamar: Maiara estava saindo com um segundo homem. Trata-se de um rapaz* que divide uma dupla jornada entre trampos que remuneram mal, como lava-carros e mecânicas, e traficar drogas no bairro, mais especificamente em nome do chefe do região, Dico. O jovem em questão é casado e tem dois filhos. Sua esposa não lidou bem com as constantes saídas do marido para “conversar” com Maiara e mantinha os olhos tão abertos quanto a mão que desfere o tapa.

Diferentes testemunhas da vizinhança o viam namorando Maiara em becos do bairro, e o próprio mapeamento dos movimentos dela pelo Facebook mostra que frequentou a casa dele e os becos a frente. Foi um relacionamento conturbado, pois, assim como Luiz Eduardo Domingues, ele não gostava de vê-la papeando com outros homens. Numa conversa com um jovem chamado Gean, um dos amigos desse rapaz, descobrimos que a maioria dos jovens do bairro deixou de conversar com Maiara por medo de retaliação. Assim, o isolamento dela foi recrudescendo para além de suas brigas com amigas e familiares.

O rapaz parou de responder a reportagem depois de algumas entrevistas. A última vez que tivemos algum tipo de contato com ele foi por intermédio de um de seus melhores amigos, o qual nos recebeu com muita agressividade e disse: “Não sou dedo-duro, não vou dizer quem matou, não vou dizer quem foi. Melhor vocês irem embora daqui.”

Da esquerda para direita: Gabriel D. Lourenço, Géssica dos Anjos, Matheus de Moura. Imagem: Eduarda Hillebrandt

Maiara não era conhecida quando viva e, depois que se foi, não passou a ser mais amada. Porque as pessoas que só a reconheciam de vista, cruzando a esquina rumo à padaria, ou da foto mórbida que circulava no Whatsapp da vizinhança, com certeza estavam muito por dentro de quem ela era.

De um passante anônimo nas ruas da Ponta de Baixo, ouvimos que a jovem morreu daquele jeito porque era metida com um policial ciumento, violento, que era fechado com o resto da corporação. Um condômino do mesmo bairro, filho de policial civil — e portanto completamente confiável — alegou que outro cara, o namorado dela, o assassino, foi executado na Ponte do Imaruim, em Palhoça (SC), e despejado noutro lugar. De outros tantos prestativos em ajudar veio a ideia de que ela era perseguida — fosse por um ex-namorado ciumento, criminoso e violento, fosse por um gol vermelho que a catava no meio da rua. De outros enfáticos colaboradores, ficamos sabendo que Maiara foi estuprada na praia e foi encontrada sem as calças. Ou que seu corpo foi trazido da Ponte do Imaruim até a Prainha.

De um punhado de meninas da Fazenda Max, ouvimos que a morte foi assim, amordaçada e enforcada, porque isso era uma mensagem de mulher do tráfico pra todo mundo saber o que acontece com talarica que se mete com homem casado.

Foi o que ouvimos neste um ano e meio de investigação e que nunca se confirmou de maneira alguma. É fácil falar mal de gente morta. Difícil é ir atrás da verdade.

E se a vizinhança não poupava esforços em difamar quem não conseguia desmentir o boatos, a família se dividia em dois grandes grupos: aqueles que a pintam como um anjo e aqueles que culpam Deus por sua queda. Aos familiares mais antigos, é confortável a crença de que Maiara jamais usou maconha, de que era uma menina religiosa, nos conformes das duas gerações anteriores, que não teve falta alguma na infância — e que não entendem como uma fatalidade dessas pode acontecer. Já os familiares da mesma geração de Maiara não enxergam assim. Vêem amor esforçado, mas também falhas, e um certo rancor de matriarcas que crucificavam a jovem pelos seus vícios. Quem sempre viu com horror os pilares das gárgulas aos seus pés jamais entenderia que aquilo era a única coisa que poderia ser erguida em sua ausência. E era aquilo que a sustentava.

Restam assim, sequelas numa família que mesmo morando perto nunca foi próxima. Ilcilei se aprofunda em depressão a cada dia que passa, dizem que sua instabilidade segue a da filha. Márcia se mantém morando nos Estados Unidos, para sempre cicatrizada com as falhas do sistema policial brasileiro. Géssica é tão sensível à história que provavelmente não terá lido até este último parágrafo. As tias choram sem muita certeza de quem perderam, agarrando-se na memória de uma Maiara da infância. E todos continuam sem saber se a gravidez era verdadeira ou só mais um surto de uma garota que de tanto temer fantasmas acabou virando um.

*Sem provas de que ele cometeu o crime, optamos por não identificá-lo, ainda que seja pertinente levantar essa possibilidade

Autores: Gabriel D. Lourenço & Matheus de Moura

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Gabriel D. Lourenço
Não Há Respostas Quando Morre Uma Pobre

Jornalista. Escritor. Co-fundador do NEURA Magazine e Não Há Respostas Quando Morre Uma Pobre. Encrenqueiro profissional.