“Vou juntar um dinheirinho e montar um restaurante, lá na beira da praia”

Capítulo IV — Dois anos na praia que sempre amanhece igual

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Maio de 2017

Cinco meses se passaram e o caso de Maiara havia se tornado uma pilha de poeira, uma dívida da polícia, a qual se manteve estática. Nesse período, mal respondiam aos questionamentos de Márcia dos Anjos, que passou a agir como cobradora oficial da família. O stand by das autoridades se deu por uma dispensa do delegado.

Dessa forma, quando Manoel Galeno voltou de licença, pouco havia mudado em relação ao que se tinha antes: os depoimentos de familiares da vítima e amigos não tão íntimos assim; as últimas imagens dela, no monitoramento da câmera de segurança da Polícia Militar, entrando na Prainha. Talvez a maior mudança tenha sido no fato de que a prefeitura iluminou aquele breu da Prainha que tanto gerou reclamações — pega mal ser responsável por proporcionar um ambiente para homicídio.

A maioria dos laudos chegaram mais ou menos nesse período, sendo que o único a ter sido lançado antes era o cadavérico, datado de 17 de novembro de 2016, no dia de sua morte. Nele constavam poucos detalhes além do visível: tinha uma pequena tatuagem nas costas, de três cruzes, escrito “maiara 1”; unhas pintadas; colar de bijuterias. A corda provocou um sulco no pescoço, mais aprofundado no lado direito e na parte de trás. Pequenas manchas vermelhas no rosto. As pontas das raízes do mangue marcaram suas coxas.

Houve morte? Sim;

Qual a causa? Asfixia devido a enforcamento. A fita adesiva sobre a boca contribuiu parcialmente para restrição respiratória;

Qual o instrumento que a produziu? Energia de ordem físico-química;

Se foi produzido por meio de fogo, veneno, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel? Sim. Asfixia.

O laudo para drogas psicotrópicas, solicitado em 16 de maio de 2017, respondeu, em 13 de junho daquele ano, que sim, os 65,4g de cigarros artesanais parcialmente carbonizados encontrados na sua residência, correspondiam a maconha.

Para o exame tóxicológico, quatro tubos de ensaio foram enviados do IML — três de sangue, um de conteúdo gástrico. Retornaram em 29 de março de 2017. Deram negativo para álcool e, para surpresa de ninguém, positivo para THC no corpo da vítima.

A perícia também avaliou quatro swabs de resíduos de seu corpo. Dois deles, anais, deram em nada. Os outros dois, vaginais, deram positivo para sêmen.

Barco de onde veio a corda utilizada no homicídio. Imagem: Gabriel D. Lourenço

O pedaço de corda, as fitas adesivas e o tecido com elástico ficaram retidos para análises no Instituto de Criminalística. Demais informações sobre eles não constaram no inquérito até então. Entretanto, muito provavelmente a corda pertence a Evelton, um segurança profissional, que ali pesca semanalmente, nos dias de folga. Ele contou que seu barquinho de nº 44 costuma ficar estacionado na Prainha, sem supervisão, e que, poucos dias após o crime, numa visita ao local, percebeu que a corda que guardava no barco fora cortada e roubada. Somente após conversar com os vizinhos que descobriu sobre o crime. Ligou A mais B e percebeu que a corda, que até então servia para manter o barco atracado, foi o instrumento da morte de Maiara. A polícia nunca procurou por ele, nem pela origem da corda, mas se tivesse, saberia que o autor do crime tinha conhecimento e domínio do ambiente.

O tempo passa e leva consigo os pormenores das provas. A perícia de local de crime, solicitada também em 16 de maio de 2017 — seis meses após o incidente — não apontou muito mais do que o laudo cadavérico já dissera ou o que os policiais já viram. Relembrou do conteúdo nos bolsos de Maiara. E especificou que a altura do galho onde a corda estava amarrada era de 2,60m do chão. E que os outros dois galhos logo abaixo dele tinham 94cm e 1,13m do chão, subentendendo que qualquer um poderia subir ao topo e preparar a corda se assim quisesse.

Todos os exames só provavam que o delegado ainda tinha muito o que fazer. Sua conclusão? “Tudo é possível”, dizia. E no seu “tudo” suicídio se mantinha como uma possibilidade sólida.

7 de julho de 2017

A chegada dos exames foi concomitante à renegociação da dívida da polícia por parte da família, que há muito se desesperava com o vazio de informação. Sempre à frente, Márcia foi à delegacia, em São José, para se encontrar com Galeno, acompanhada de Ilcilei e Marli dos Anjos, tia de Maiara. Entraram mais uma vez naquela entediante sala de repartição pública, com mesa de MDF, armários de madeira envernizada e xícaras pirex sempre cheias de café. Ele sinalizou com as mãos para que elas se sentassem. Ilcilei entrou trêmula, com as bochechas molhadas pelas lágrimas anteriores, tinha olheiras profundas, mas, como de costume, tentava escondê-las por meio dos óculos escuros.

“Então, o que que acontece? Chegaram os laudos das drogas que foram encontradas no apartamento dela”, disse Galeno.

“Sim, mas não o…”, Márcia tentou responder.

“O tóxico? Não, ainda não, o toxicológico não”, disse ele, contradizendo o inquérito. “Saiu também o… não queria falar na frente da mãe dela porque é meio complicado pra mim isso, aí pra mim…” Galeno tentava não olhar muito para Ilcilei, que chorava um choro agudo.

“Você quer que a tia saia? É isso?” explicitou Márcia.

“Acho que era melhor falar só pra vocês, né? Depois…”

Márcia olhou para a tia, que entendeu o recado e concordou em sair do escritório.

Galeno retomou: “eu sei que é uma situação meio complicada. Chegaram dois laudos, o laudo das drogas que foram coletadas no apartamento e o espermograma. O laudo do espermograma constatou que tinha esperma na vagina dela, na Maiara.”

Cruzando todos os laudos até então apresentados, Galeno tinha uma certeza: a transa fora consentida. Isso fez com que suas suspeitas se afunilassem em Tairone — apesar de que, em outras conversas admitia se manter crente de que poderia muito bem se tratar de um suicídio.

“Eu vou ser bem sincero, o que eu acredito é que o Tairone possa ter participação nesse crime. Que no interrogatório, naquele início, ele mentiu. A gente foi só apertar ele, começou a apertar, que aí ele falou que horas antes, o corpo dela foi encontrado pela manhã, na madrugada, início da manhã… Ele disse que na noite anterior, ele fez uso de drogas com ela, disse que a última pessoa que viu ela foi ele, que se encontraram em um posto de gasolina ali na Fazenda do Max, fizeram uso de maconha e depois houve meio que uma despedida. Disse que ela tava meio depressiva, e ele não viu mais ela. Daí o corpo foi encontrado na praia todo amarrado. Só que, pra ele dizer isso, ele mentiu o tempo todo, aí que ele revelou isso. Aí, com o resultado do exame, do laudo do espermograma, constatando isso, né…”, tentou explicar o delegado.

“Tá, mas não fizeram um exame cruzando pra ver quem é a pessoa?”, questionou Márcia, enfurecida.

“Tem que pedir ordem judicial pra isso e mesmo com ordem judicial ele pode negar.” Galeno continuou insinuando para a família que Tairone era um homem possivelmente perigoso, alertando-os que não falassem mais com o rapaz. “Com o laudo de local de crime a gente vai constatar se foi homicídio ou suicídio. Se for homicídio, vou pedir a prisão dele.”

“Mas aí cadê a impressão digital?” Márcia não conseguia entender como a polícia, em quase um ano, conseguia ter tão pouca informação.

“Isso não quer dizer nada, porque se é homicídio, a pessoa tá usando luva, luva cirúrgica, aí não vai ter impressão digital realmente. A gente não pode descartar nada, mas tá tudo se fechando, tudo se fechando no Tairone. Se for homicídio, eu peço a provisória dele, interrogo ele novamente, faço ele fornecer o… ele não vai fornecer nada, mas às vezes a gente… como é que se fala?” Galeno procurava uma forma não comprometedora de dizer o que realmente pretendia fazer. “Numa forma secreta, a gente pode pegar um material dele, pra fazer uma perícia com o esperma. Eu peço paciência, porque a gente vai conseguir chegar lá.”

Mas, àquela altura, a última coisa que Márcia tinha era paciência. A própria tia Marli pedia isso a ela, que respondeu: “mas daí a polícia vai fazer a parte dela e a justiça não vai fazer pagar; porque a justiça brasileira não faz ninguém pagar nada. Digamos que seja ele; não tem antecedentes criminais, não tem passagem pela polícia, vai ter bom comportamento na cadeia, vai ser feliz para sempre. Isso não é justiça, é?”

Parentes sofrem com a ineficiência da polícia. Da esquerda para direita: Prima Margarete, Tia Nadir, Tio Valmo, Prima Marinês. Imagem: Eduarda Hillebrandt

Se até então ela quem segurava as pontas da família, ali, Márcia não aguentou mais, desmantelou-se. Quase entrou no abismo da descrença, mas se agarrou ao pouco de esperança que ainda tinha. Saíram de lá pouco depois. Pode soar masoquista, mas foram direto ao local do crime, precisavam reviver a cena, se por no lugar da falecida.

Ilcilei chorou o caminho todo, ficou no carro. Márcia, acompanhada de Marli, caminhou pela calçada estreita, que media uns 50 cm, passando pelo mar fétido e o cano de despejo quase preto. Transitaram pelo começo do manguezal, onde as árvores se sobrepõem ao mesmo lixo de sempre — sacolas, garrafas, latinhas e uma escultura da Branca de Neve segurando um bebê, carcomida pelo tempo. Por fim, chegou ao vão em que Maiara poderia ter morrido.

Márcia se agachou por entre as árvores, pisando na areia grossa, tentando encontrar o ângulo da foto que circula na internet. Lembra bem da imagem; havia nela um papel estranho grudado nas costas de Maiara, um que a polícia nunca notou até Márcia chamar atenção do escrivão Felipe, por WhatsApp, e depois de Galeno, pessoalmente. Nenhum dos dois deu importância para a informação, disseram que podia ser uma sacola, tanto faz. Márcia se sentia desamparada quando precisava conversar com eles, o mesmo pode se dizer daquele momento em que havia encontrado o ângulo exato da fotografia. Conseguia projetar a morte de sua prima, que em algum nível fora, ao mesmo tempo, irmã e filha.

Chorou o pouco que ainda podia.

Elas atravessaram o estado de Santa Catarina pior do que quando saíram para confrontar a polícia. Havia, ainda assim, um resquício de energia em Márcia, algo que a manteve insistindo nessa história mais um pouquinho. Ela fazia com que chovesse mensagens no celular de Galeno, que voltava sempre com as mesmas promessas e acusações.

Esta camisa foi feita por amigos de Maiara da região de São José em sua homenagem. Imagem: Matheus de Moura

Setembro de 2017

Em meados de setembro de 2017, o delegado mandou um áudio por WhatsApp no qual afirmava ter entrado com um pedido de prisão temporária contra Tairone. Entretanto, ainda segundo seu áudio, o sistema do fórum teria entrado em pane, sem conseguir computar medidas cautelares. Mas isso não seria motivo para atiçar os ânimos, pois prometia que não seria um problema técnico a impedi-lo de por Tairone atrás das grades em uma semana. Isso não só não aconteceu como, quando procurado pela reportagem, Galeno afirmou que teria entrado com um pedido de prisão apenas em abril de 2018. Enquanto isso, Miryan, advogada de Tairone, se mantém consultando o sistema da Justiça de SC, mas ao invés do suposto pedido, o F5 só a responde com a mesma página em branco.

Com o tempo, Márcia fazia a transição de uma pedra bem sustentada para a areia à beira-mar, um simples desgaste físico e emocional. E antes que virasse areia pura, a prima de Maiara abriu mão de qualquer sentimento patriótico e se mudou para os Estados Unidos no dia 3 de março de 2018, onde reside, trabalhando como garçonete num restaurante e limpando duas clínicas médicas à noite. A distância física, entretanto, não foi suficiente para fazê-la esquecer do crime e da sensação de descaso, palavra que ressoa em sua cabeça sempre que lembra da polícia. O embrião desse abandono, tão comum aos brasileiros que não tem dinheiro no bolso, surgiu pela primeira vez quando Galeno declarou aos jornais que acreditava na tese de suicídio — apesar de não descartar a de homicídio. Para piorar, ele interpretou palavras que não existiam naquele bilhete encontrado na bíblia. Ninguém da família gostou da afirmação, tinham certeza de que Maiara não poderia ter se matado daquela forma, e de que o bilhete encontrado na bíblia não era um bilhete, muito menos uma escrita recente sobre um namorado, adereçada à mãe.

Em resposta à reportagem, o delegado disse que “família não tem que gostar de nada”.

Para Galeno, a tese de homicídio e suicídio podem muito bem andar juntas, paralelamente. O que não quer dizer que ele saiba explicar o que o leva a crer em qualquer uma delas. Talvez por isso, antes de interromper a entrevista, ele tenha resumido sua visão na seguinte afirmação: “esse caso é meio complicado… bem inconclusivo”.

Um dos fatores que mais dificulta o avanço dessa investigação, além da falta de vontade, é a má compreensão dos últimos dias de Maiara. E isso, por sua vez, não pode ser interpretado sem retroceder à última passada dela por Gaspar.

Junho a setembro de 2016

Embora nunca sejamos capazes de enxergar as feridas que a vida nos deixa, suas cicatrizes são sempre visíveis — ainda que tentemos cobri-las. Maiara não conseguia mais fazer isso. Até voltar para Gaspar, pela última vez, em 2016, a jovem já tinha percorrido uma trilha de dores muito únicas para apontar aos outros.

E as pessoas ao seu redor diziam: “Você está diferente.”

A prima Géssica percebeu isso de cara. Tão logo soube que Maiara chegou em Gaspar, decidiu prestar uma visita àquela com quem dividiu casas, noites, risos, dores e glórias. Encontrou-a arrumando suas roupas no armário do quarto — de Floripa não trouxera nada mais. Seu cabelo, na altura do ombro, não era mais o loiro vistoso de antes. Estava desbotado como o jeans clarinho que usava, e a cabeça longe demais para se preocupar com qualquer coisa. Géssica sentou na ponta da cama, observando aquela de quem sentia tanta falta. Mas ao invés de matar a saudade, dividiram um silêncio constrangedor.

“Maiara,” perguntou Géssica, “que que deu que tu não tá falando comigo?”

“Perdi meu celular,” respondeu, sem tirar os olhos da tarefa.

“Maiara, olha pra mim.”

A prima se escondia atrás da obrigação.

“Você nem tá olhando na minha cara!”, a paciência de Géssica não existia. “Tá conversando comigo mas não tá me olhando!”

Maiara ficou calada, como se a tagarelice entre as duas nunca houvesse existido.

“Você…” Géssica hesitou, “você tá grávida mesmo?”

A prima lembrava do dia em que recebeu a notícia da gravidez. Por telefone, Maiara confirmou, perplexa, mas também eufórica, que havia sido uma paulada real da vida. Ali, no entanto, o efeito da paulada era visivelmente outro.

“Não… não sei,” respondeu Maiara. “Não quero falar sobre.”

Géssica ainda sofre com a morte de Maiara. Imagem: Eduarda Hillebrandt

Géssica percebeu que estava diante de uma cicatriz que não havia fechado direito. E não sabia como agir, o que fazer, ou quais palavras poderiam suturar aquela ferida. Maiara levou um longo tempo até emergir de volta à realidade.

“Ai, Gê,” disse, num lampejo de lucidez. “Agora eu vou mudar. Eu tava mal, mas agora eu vou mudar. Já vou procurar um emprego, trabalhar, juntar um dinheirinho. Tu sabe né, morar com a mãe…”, e olhou para o chão, amargando a palavra que recém escapou da boca. Era desagradável para Maiara pensar no regresso à uma cidade em que nada via, com uma mulher que cresceu sem chamar de mãe.

“Tu vai ver, vou juntar um dinheirinho e montar um restaurante,” continuou. A conversa a havia relembrado de um sonho, de ter seu próprio negócio, e continuar fazendo aquilo que enxergava como um de seus maiores talentos. “Tu vai ver, Gé, um restaurante lá na beira da praia, eu e o meu fi…”

Maiara cessou a fala e, então, pôs a mão na barriga. Entrou de volta no silêncio do abismo dentro de si, voltou a arrumar as roupas e não disse mais nada.

Géssica teve a mesma certeza que a família, aos poucos e de outras formas, também teve.

Pois Maiara já havia, há muito tempo, perdido a calma. Se antigamente fazia questão de ouvir os conselhos da prima Márcia, ali passou a ignorar completamente suas ligações e não querer mais dar ouvidos — até não haver mais telefonemas. Se os baseados eram acesos longe de casa, às escondidas, dessa vez passaram a ser fumados dentro de casa, na frente de Ilcilei — que precisava tirar o cheiro do ar e as pontas do chão. Lá no fundo, Ilcilei sempre soube que Maiara fumava maconha, mas aquela foi a primeira vez que teve de se confrontar com essa realidade — até hoje intragável. Maiara sabia que isso magoaria a mãe, mas quem liga? Virara impaciente, impulsiva — fazia questão de ignorar aqueles que a amavam, irrestritamente.

Havia algo de errado com a Maiara que todos ali conheceram. E ninguém sabia direito o que era.

Aos poucos, alguns familiares foram desistindo de mantê-la por perto, enquanto ela se mantivesse rancorosa. Outros, como Géssica, ficavam cada vez mais aflitos. Esta foi relegada por Maiara à sua lista longa de ignorados, quando uma vez passou de bicicleta pela prima, pedalando, sorrindo. Géssica parou, esperando que elas se cumprimentassem e trocassem algumas palavras. Não aconteceu. De fato, era difícil encontrar nela a mesma Maiara que tempos antes escrevera uma carta especial para a prima.

“Jéssica, ser especial é… — é surpreender a cada atitude… — é fazer com que todos notem sua presença e sitam sua ausência… — É dexar amizades por onde passa e saudades por onde passou… — É ser o próprio sonho e o de outras pessoas — Ser especial é ser Assim, Igualzinha a VC!!! “gosto muito de vc, quando prescisar de mim sabe que pode contar sempre cmg,quero apenas o seu bem beijinhos de sua prima doidinha Maiara dos Anjos”. Imagem: Eduarda Hillebrandt

As insistências em visitar a prima e romper essa barreira intangível eram mal vistas por Rodrigo, o namorado de Géssica na época.

“Ela nem te responde mais e tu vai lá ver ela? Ela tá te ignorando…”

Ela respondia que não abriria mão. Afinal, era sua prima, e não ia desistir dela. Mas não seria preciso, Maiara já havia desistido há tempos.

É ao redor desta igreja que se constrói a vida metropolitana de Gaspar, cidade intrinsecamente ligada a Maiara. Imagem: Eduarda Hillebrandt

Outubro a Novembro 2016

Maiara voltou a São José, e a Fazenda Max nada mudara no breve período que passou em Gaspar. Até maio daquele ano, ela morava num conjunto de kitnets azul de alto padrão — para a região — , com quintal amplo e jardim intocável. Agora, de volta ao seu verdadeiro habitat, mudou-se para a kitnet já citada de Marta. Desempregada e ainda um tanto instável, recebeu de Ilcilei não só uma ajuda com o aluguel, adiantado em dois meses, como uma série de móveis usados em ótimas condições. Recomeçar a vida é caro, e isso Maiara e sua família já sabiam bem.

Este foi um período muito conturbado. Moradores do bairro a ouviam suplicando desculpas com alguém pelo celular. “Oh, meu amorzinho, me perdoa, não faz assim comigo.” Ela se encontrava completamente isolada, sem amigos, distanciara-se de todos desde seu o exílio em Gaspar. Os vizinhos viram, certa vez, Maiara apanhando para o que parecia ser dois homens. Era de noite e não conseguiram identificar bem os indivíduos — na verdade, ninguém gosta de entrar muito no assunto, pois, rege ali uma lei do silêncio imposta pelo tráfico, conhecida por muitos brasileiros de subúrbios e favelas. Quando ainda se encontrava em Gaspar, poparam mensagens no celular de Maiara, mensagens agressivas, de uma mulher que cobrava a grana de uma dívida, aparentemente grande, deixada por ela, antes da mudança, relacionada à compra de maconha. Maiara se esforçou ao máximo em nunca mais responder a moça.

A busca por emprego foi perseguida pelos surtos em que via Dudu, seu falecido ex. Onde Maiara ia, o fantasma ia atrás. A grana foi encurtando e junto dela o número de móveis no apartamento, cujo paradeiro era as lojas de móveis usado da região. Ninguém sabe onde uma garota sem amigos, familiares e emprego gastava tanto dinheiro, só sabem que gastava.

O suspiro de alívio veio com a chamada para uma vaga: cozinheira na Isa Crepes. Tratava-se de uma creperia na principal avenida do bairro Fazenda Max, em São José (SC). Mari, a dona do estabelecimento, tinha se empolgado com o currículo da moça, que contava com passagens por diferentes restaurantes do Continente Shopping, o maior da Grande Florianópolis, há dois quilômetros dali, na marginal da BR-101.

Era dia de treinamento e ela não queria arriscar perder o trabalho o qual vinha procurando havia quase dois meses. Fizera muita coisa para poder se manter erguida, sempre a procura de emprego. Fora que odiaria ter que pedir dinheiro à mãe mais uma vez, repudiava a ideia de ser dependente dela. Quando finalmente achou aquela vaga, foi contratada na hora. Maiara pôs o avental, veste com a qual já estava familiarizada, e começou a aprender as diferentes formas de se preparar um crepe. Mas, o aprendizado durou menos que uma aula de Youtube.

“Dona Mari, posso fazer uma pausa para fumar?”, disse Maiara, atônita.

A chefe olhou o relógio; a menina começara a trabalhar não havia nem uma hora, mas como era o dia de treinamento, preferiu não negar.

“Pode sim, querida.”

Ela então largou o avental e atravessou a porta de vidro, sumiu no meio da luz do dia que ali incidia.

Maiara nunca mais apareceu na creperia.

Na semana seguinte ao episódio, Maiara, desempregada, conseguiu arranjar dinheiro para tratar as madeixas, àquela altura eriçadas por frizz e secura.

Era em torno das 16h quando ela entrou no salão de Getúlia, perto de casa, num dia denso, daqueles em que as nuvens carregadas adiantam a noite e aumentam a umidade, mas se recusam a deixar a chuva cair. Estava de cara limpa, senão por um batonzinho, as olheiras manchavam a pele branca, e os ombros estavam um tanto retraídos.

“Oi, menina, como posso ajudar?”, perguntou Getúlia.

“Eu quero cortar o cabelo.”

“Qual o corte? Um chanel combinaria com você.”

Maiara caminhou pela sala de parede bege e enfeites rosa, foi até o espelho e se contemplou. Fora uma moça sempre maquiada e muito vaidosa — conhecida entre as amigas pelo bom gosto para roupas, geralmente compradas de anúncios em grupos de Facebook — , mas, naquele momento, estava com cara de doente, pálida, com bochechas que nunca mais foram vistas coradas. Virou-se para Getúlia e apontou para a altura dos ombros.

“Quero cortar aqui. Quero ficar bem bonita.”

Getúlia, que há muito já trabalha com isso, entendeu o recado. “Ela queria ficar bonita para alguém em especial”, conta. Maiara pouco disse na sessão, era difícil tirar alguma informação da garota. Nem fofoca de bairro funcionava ali. Depois de alguns minutos tentando puxar assunto, a cabeleireira desistiu, entendeu que o lance de Maiara era o silêncio, ou que, quem sabe, ela poderia estar triste.

Esta foto de Maiara na Prainha foi publicada em seu Facebook fantasma em 14 de novembro de 2016. Imagem: Arquivo Pessoal

A semana virou sem trazer qualquer novidade no status de desempregada, o que não atravancou sua rotina em nada. Era quarta-feira, 16 de novembro, e Maiara fez o que sempre fazia naquele dia da semana: comprou maconha. No fim da tarde, após ser vista voltando dos cafundós do bairro Ponta de Baixo, subiu a escorregadia escadaria da favela da região. Ela passou pelos moleques que ficam no meio do caminho, interceptando os viciados em crack dispostos a trocar seus objetos de valor por pedra, acenou. Chegou no topo e foi vista pelos seus traficantes: dois senhores gordos e carecas, instalados num casarão de madeira de dois andares, aos fundos de um terreno baldio onde nenhuma planta cresce e o lixo aumenta a cada dia. Em geral, Maiara comprava dez reais em erva, o que equivalia a mais ou menos três gramas; naquele dia, entretanto, pagou vinte reais e recebeu o que deveria ser seis gramas.

Os traficantes acharam estranho, pois não era do perfil da cliente, mas não questionaram. Eles entenderam: ela não fumaria sozinha.

Maiara dos Anjos na dianteira da bike. Imagem: Eduarda Hillebrandt

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Matheus de Moura
Não Há Respostas Quando Morre Uma Pobre

Jornalista. Escritor. Neguinho. Catarinense no Rio. Co-criador de: N.E.U.R.A Magazine e Não Há Respostas Quando Morre uma Pobre