Congo, uma nação africana na final da Copa

Colonização, guerras e imigração: França e Bélgica contam com vários jogadores ‘afro-europeus’

João Abel
O Contra-Ataque
6 min readJul 10, 2018

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Lukaku é um dos jogadores com origem congolesa na Bélgica (Foto: Ricardo Nogueira)

Quando a bola rolar no estádio Luzhniki, no próximo domingo, um país europeu conquistará o título da Copa do Mundo de 2018. Mas não se engane. A África também estará representada na final. Uma história que começa em 6 de abril de 1994, quando explode o genocídio de Ruanda: 800 mil mortes em cem dias e uma série de alterações na geopolítica da região central africana.

Naquela noite, um avião que transportava os então presidentes de Ruanda, Juvenal Habyarimana, e do Burundi, Cyprien Ntaryamira, foi derrubado. Era a gota d’água na divisão histórica entre dois grupos étnicos: os hutus (cerca de 85% da população) e os tutsis (outros 15%). A minoria tutsi dominou por muito tempo o país. Em 1959, os hutus derrubaram a monarquia tutsi e dezenas de milhares de tutsis fugiram para países vizinhos, incluindo a Uganda. Um grupo de exilados tutsis formou um grupo rebelde, a Frente Patriótica Ruandesa (RPF), que invadiu Ruanda em 1990 e lutou continuamente até que um acordo de paz foi estabelecido em 1993.

Após a queda do avião, no entanto, extremistas hutus culparam a RPF e imediatamente começaram uma campanha bem organizada de assassinato em massa. A RPF disse que o avião tinha sido abatido por hutus como uma forma de dar uma desculpa para o genocídio.

O conflito ‘termina’ em 4 de julho com a chegada ao poder da própria RPF. Ou seja, os tutsis retomavam o poder depois de quase cinco décadas. E, agora, com o desejo de vingar-se dos hutus, os responsáveis ​​pela tentativa de genocídio. Muito deles vão para o exílio. Em longas filas, pessoas pobres, inimigas do novo governo se refugiam na República Democrática Congo (o antigo Zaire), vizinho ocidental e um país com terrível histórico de saques e miséria.

Região dos Grandes Lagos Africanos: a pequena Ruanda faz fronteira a oeste com o Congo, ao sul com Burundi e ao norte com Uganda

Com o caos instalado na fronteira entre os dois países, o novo presidente de Ruanda, Paul Kagame, ordenou uma grande invasão dos soldados da ‘pequena, mas organizada Ruanda’ em marcha para ‘o enorme Congo’, como uma forma de ‘pacificar o país’. Ele temia que os poucos remanescentes das milícias hutus pudessem querer reconquistar o poder em Ruanda e era dever do novo governo prevenir. Além, é claro, de ocupar o leste congolês e sua grande riqueza natural, especialmente coltan e diamantes. E foi o que aconteceu.

Aqui vale um parênteses antes de continuar com a história. A geografia da República Democrática do Congo facilitou a invasão ruandesa. A capital do país, Kinshasa (sim, aquela da luta do século entre Muhammad Ali e George Foreman em 1974), localiza-se no extremo oeste do país, quase beijando o Oceano Atlântico. No centro da nação, estende-se uma selva impenetrável, atravessado por rios e de difícil comunicação com outras regiões. No leste, portanto, as cidades de Bukavu e Goma estão quase isoladas do poder central. É por isso que, para Kagame, elas se tornaram um alvo muito simples de atacar.

A invasão de Kagame no leste do Congo desencadeou a Guerra do Congo, mais conhecida como a ‘Guerra Mundial Africana’, de 1996 a 2003. Nove países africanos participaram diretamente, apoiados e armados, é claro, por empresas europeias e incontáveis milícias, grupos paramilitares, mercenários e bandos armados. Um verdadeiro desastre: mais de cinco milhões de mortes, principalmente devido à fome e doenças infecciosas.

E o futebol?

É neste contexto caótico que o futebol entra em cena. Por uma série de razões históricas e até mesmo pela facilidade de viagens mais longas, a imigração congolesa para a Europa, principalmente para a França e a Bélgica (sim, as semifinalistas da atual Copa do Mundo), aumentaram desde a década de 1970. O início da guerra, no entanto, disparou uma curva exponencial nessa rota. Como é o caso do campeão olímpico de atletismo Mo Farah, que veio para a Inglaterra para escapar da guerra na Somália, um dos países diretamente envolvidos na guerra. Muitas famílias em Kinshasa, Lubumbashi, Goma ou Kisangani migraram para a Europa e se estabeleceram nas banlieues (regiões periféricas) de Paris, Marselha, Lyon, Bruxelas ou Antuérpia.

Se você leu ao genial texto de Romelu Lukaku para o Player’s Tribune (traduzido aqui no Brasil pelo Trivela) sabe que ele nasceu na Antuérpia, mas que a origem de sua família é congolesa.

“Quando as coisas corriam bem, eu lia os artigos de jornal e eles me chamavam de Romelu Lukaku, o atacante belga. Quando as coisas não corriam bem, eles me chamavam de Romelu Lukaku, o atacante belga descendente de congoleses.” — Lukaku, sobre a reação dos belgas às suas atuações pela seleção

O centroavante do Manchester United e da Bélgica, no entanto, está longe de ser o único nesta lista longa e trágica. Christian Benteke, por exemplo, não chegou a ser convocado para defender a seleção belga na Copa do Mundo, mas é outro que tem origens congolesas. Nasceu em Kinshasa e foi mandado à Europa com apenas dois anos para escapar dos tiros da guerra civil.

Na Bélgica, dez jogadores têm ascendência em outras nações. Só do Congo, colonizado por belgas, são cinco. (Fonte: R7)

Outros nomes dos ‘diabos vermelhos’ com descendência no Congo são o zagueiro Vincent Kompany, os meias Youri Tielemans e Alex Witsel, e o atacante Michy Batshuayi. Todos nascidos em hospitais belgas, mas com sangue africano.

É claro que as histórias de imigração da Copa do Mundo não se resumem só ao Congo. Pione Sisto, camisa 9 da Dinamarca no mundial, nasceu em um campo de refugiados do Sudão do Sul na cidade de Kampala, Uganda, em 1995. Uma história que contamos em nosso especial sobre a seleção dinamarquesa antes da Copa.

Mandanda está em sua terceira Copa com a França

Na seleção francesa, a miscigenação sempre foi um fator predominante nas convocações para a Copa e a intensa imigração a partir dos anos 1990 só acentuou a situação. A adversária da Bélgica na semifinal também tem sua conexão com a guerra no Congo.

Quando o conflito estourou no país africano, o jovem Steve Mandanda, nascido em Kinshasa, já sonhava em ser goleiro. A família Mandanda fugiu para Liège, na Bélgica, e posteriormente para a França, sem imaginar que seu filho mais velho se tornaria um atleta assíduo da seleção francesa desde 2008. Hoje, é o terceiro arqueiro do país na Copa e um dos ídolos do Olympique de Marselha.

Fica claro que esse processo tende a ficar ainda mais acentuado nos próximos anos com as sequenciais crises de migração entre África e Europa. Até mesmo no Brasil, que recentemente recebeu milhares de haitianos e africanos, essa mistura de nacionalidades deve ficar evidente com o passar das décadas.

19 dos 23 jogadores franceses têm origem ou descendência de outros países, especialmente africanos (Fonte: R7)

O Zaire (atual Congo) foi uma potência africana no futebol e venceu duas Copas das Nações Africanas, em 1968 e 1974. Naquele ano, eles se classificaram para a Copa do Mundo, a primeira vez de uma seleção do continente no mundial. Depois vieram os anos de conflito, de instabilidade, de colapsos. E tudo ruiu. Nos últimos anos, eles voltaram a ser protagonistas e estavam muito perto de se classificar para a Copa da Rússia. Foram vice-campeões do Mundial de Clubes, com o Mazembe, em 2010.

É difícil não imaginar que, se todos os filhos dos imigrantes tivessem escolhido representar a seleção de seus antepassados, a República Democrática do Congo poderia ser uma potência do futebol. Em vez de ‘geração belga’ ou ‘negros maravilhosos’ da França, poderíamos estar exaltando jovens congoleses na Copa do Mundo. Não se engane: o futebol africano é maior do que você imagina. Ele só não é protagonista porque a ganância do colonizador o empurrou para o além-mar.

Futebol em Lagos, Nigéria. O futebol africano é uma manifestação cultural.

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João Abel
O Contra-Ataque

jornalista, autor de ‘BICHA! homofobia estrutural no futebol’ e coautor de ‘O Contra-Ataque’