Crônica

A Arte de Sair do Armário

pedro a duArte
pedro a duArte

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Eu estava jogando campo minado enquanto esperava minha avó chamar para o almoço. Minha mãe também estava no escritório e, por algum motivo, começou a falar sobre minha melhor amiga de infância — tinha certeza que um dia eu casaria com essa amiga. Respondi de maneira sarcástica: “Taí um casamento difícil de acontecer…!” Ela finalmente entendeu. A mensagem caiu em seu colo como uma bomba. Mas com um ruído na comunicação: “Ai, meu Deus, ela é lésbica!” E começou o drama. Foi meio desconfortável, em um momento ela chegou a usar as palavras: “Que decepção…!” O assunto morreu quando nos reunimos com o resto da família para o almoço.

Passei o resto da tarde mal por ter tirado minha melhor amiga do armário. Por mais que tivesse sido um acidente, eu sabia que era errado. Também me sentia um covarde porque eu joguei a menina pra fora, mas continuei dentro. De volta em casa, expliquei pros meus pais o que eu queria dizer após o jantar: “Esse casamento é difícil de acontecer porque nós dois somos bi”. Eles ficaram em silêncio. Era a minha vez de lavar a louça, então só dei as costas para eles e comecei a molhar os pratos. Eles foram pra seus quartos e nunca mais falamos sobre isso.

A treta é que quando uma pessoa LGBT sai do armário para sua família, sua família por sua vez é colocada dentro de outro armário. É a vez dela ter a coragem de sair. É uma jornada longa e, pelo menos no início, solitária. Se demorou pra pessoa LGBT se aceitar, vai demorar pra família também. Eu percebi a jornada de minha mãe porque aos poucos ela começou a soltar “quando eu tiver uma nora… ou genro…” — depois de um tempo ela passou a só falar em “genro”. Começou a perguntar se meus amigos também eram homo/biafetivos. Soube que ela tinha saído completamente do armário quando me contou que estava conversando com alguém na academia e o assunto chegou em mim e teria dito com muita naturalidade, sem nem pensar: “Pedro até hoje não trouxe um namorado para casa.” Fiquei feliz por ela.

Hoje me considero gay, amanhã só os deuses sabem. Mas não fiz questão de corrigir a informação pros meus pais.

A verdade é que pessoas LGBT vão ter que passar o resto de suas vidas saindo do armário porque a sociedade sempre assume que todo mundo é hetero-cis. Mas estou aqui para dizer que com o tempo vai ficando mais fácil. Ainda mais quando você é feliz com sua sexualidade/afetividade e não a esconde.

A primeira vez que saí do armário foi para meus amigos da faculdade, quando eu estudava cinema. Me senti confortável porque já sabia que nem todos eram héteros. Estávamos conversando sobre Game of Thrones, qual ator ou atriz achávamos atraente. Eu só citava os homens: Jon Snow, Ramsay Snow, Theon Greyjoy… Achei injusto meus amigos de faculdade saberem antes dos de infância, então naquele dia mandei mensagem para eles contando.

Na verdade, acho ridículo ter que ficar contando. Você não vê hetero-cis ter que sentar com seus pais e discutir sua sexualidade-afetividade ou seu gênero. Por que com pessoas LGBT é diferente? Então procuro maneiras de casualmente passar a informação e não transformar isso em um grande evento.

Quando eu estagiava no Comprova, por exemplo, joguei no verde para alguns colegas de trabalho. Eles propuseram que encerrássemos a investigação por aquela noite, alguns comentaram que iriam ver futebol ou outra coisa. Eu disse que ia assistir a um filme que estava em cartaz no festival Mix Brasil — quem pegou, pegou.

No curso de jornalismo, a turma estava escrevendo em conjunto um Manual de Sobrevivência na Quarentena. A classe deve ter reparado que não sou hétero quando propus que usássemos o gênero neutro ao longo da redação por saber que no nosso público-alvo haveria pessoas não-binárias e trans. E tiveram certeza quando defendi a proposta com unhas e dentes. Valeu muito a pena, a turma acatou a ideia e, meses depois, fomos agraciados com uma menção honrosa no 1º Prêmio de Jornalismo Inclusivo.

Já em outra disciplina com uma outra turma de jornalismo, o professor pediu que levássemos pra a aula um jornal de nossa admiração. Eu já estava mais calejado na arte de sair do armário e minha apresentação foi assim: “Caso o letreiro rosa-neon esteja desligado e vocês não tenham reparado, eu sou um grande viadinho. Então o jornal que eu trouxe foi o Lampião da Esquina.” Soube que a piada funcionou porque vi o professor abrir um sorrisinho.

Hoje eu coloco a bandeirinha arco-íris e meus pronomes na bio do Twitter e do Insta. Se você presta atenção no que eu compartilho nas redes sociais não precisa ser um Sherlock Holmes pra entender que hétero eu não sou.

Eu já saí do armário pros meus pais, pros meus amigos, pros meus professores e pra colegas de trabalho. Falta sair pros meus avós. O plano era lhes informar quando eu começasse um namoro: “Estou namorando. O nome dele é X”. Mas ainda não engatei num namoro… Eu devo ter plantado uma pulga na orelha deles quando pedi de aniversário o livro Devassos no Paraíso — só alguém muito interessado leria um livro de 500pgs sobre a história da comunidade LGBT brasileira. Ou quando eu falo que meu musical favorito é sobre um rapaz que convive com o HIV ou quando eu fiz uma resenha muito elogiosa sobre o monólogo da Jesus travesti. Se eles não tinham certeza, agora vão ter quando lhes mostrar essa crônica. E eu sei que eles não vão se importar.

NOTA: Esta crônica foi produzida para a oficina “Por Dentro da Crônica”, ministrada por Fabrício Corsaletti na Escrevedeira.

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pedro a duArte
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Jornalista e Escritor // "Para além do que vivemos e acreditamos, nossas vidas se tornam as estórias que contamos" (Lynn Ahrens)