“Ninguém Esperava”: um comentário sobre a depressão silenciosa

O suicídio não é sempre uma tragédia anunciada, mas isso não significa que não possamos ajudar em sua prevenção

Amanda de Vasconcellos
O Prontuário
6 min readSep 27, 2020

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Eu conheço essa história. Você conhece essa história. Ela parece ter virado algum tipo de clássico trágico dos tempos atuais. Todos já ouviram falar de alguma vítima inesperada do suicídio. Essa semana, uma colega de sala minha perdeu uma amiga para esse mal. E, independentemente das circunstâncias específicas, é quase certo que em algum momento do processo de luto serão proferidas as palavras: “Ninguém esperava”.

Os relatos sobre quem falece por um suicídio frequentemente descrevem pessoas aparentemente normais, que tinham um emprego, um estudo, e uma família. Lembro-me de uma vez que uma conhecida estava comentando que a filha adolescente de dois amigos ricos havia se matado. O choque era evidente em sua fala. Ela disse que a menina era estudiosa, que tinha amigos, que sua família a amava, que ela não era depressiva nem nada do tipo. Para minha conhecida, o mais provável era que a causa mortis fosse o jogo da Baleia Azul — sim, aquele mesmo, que foi mais um compilado de sensacionalismo que uma onda real de suicídios entre jovens.

A verdade é que, de fato, a menina talvez não fosse depressiva. Uso aqui o itálico para ressaltar que falo do temperamento: uma pessoa depressiva é aquela que possui em si certa melancolia, que exala um certo pessimismo. Mas não são essas as pessoas que preocupam os profissionais de saúde, preocupante é quem está deprimido, quem sofre com uma doença psíquica séria, um transtorno depressivo.

Nem todos que sofrem com esses transtornos correspondem ao estereótipo de um indivíduo depressivo. Para citar o exemplo óbvio, pensem no ator Robin Williams — um comediante! —, que tirou a própria vida em 2014. Há quem sofra em silêncio, há quem arranque risadas de uma plateia, e lágrimas de si.

Mesmo nos exemplos menos óbvios e dramáticos, a depressão pode ter manifestações silenciosas. Ela é uma doença que não distingue entre bem sucedidos e mal sucedidos, empenhados e preguiçosos, inteligentes e ineptos, sociáveis e reclusos, bem nascidos e desfavorecidos. Embora uma vida cheia de adversidades aumente o risco de que alguém a desenvolva, é possível que aquela pessoa com uma vida supostamente perfeita esteja deprimida.

Uma vez deprimida, é possível que a pessoa esconda seu sofrimento. Afinal de contas, expor uma doença psíquica requer expor vulnerabilidades, o que é especialmente difícil em ambientes competitivos, que são justamente aqueles onde mais se espera encontrar os indivíduos exemplares, que atingiram níveis inesperados de sucesso. E por mais aberta que nossa cultura possa vir a se tornar, tornar público o próprio sofrimento será sempre um ato de bravura. Reconhecer dificuldades, mesmo em ambientes acolhedores, é por si só um desafio.

Contudo, é frequente que os deprimidos silenciosos se encontrem entre a cruz e a espada: por mais difícil que seja ter a coragem de declarar o próprio sofrimento, carregá-lo sozinho é um peso que poucos são capazes de suportar. Com o tempo, a situação pode progredir para um dilema ainda mais doloroso: o que fazer com aquela dor que não desaparece? Seria ela inerente à vida? E, se sim… Não seria melhor escapar dela?

Com efeito, o escape é característica comum a qualquer suicídio. O suicida não quer se ver livre da vida, mas sim da dor. Há um momento em que a morte pode parecer a única saída — e, para aqueles que vivem uma luta contra a depressão, é muito fácil acreditar nessa ideia. A depressão distorce os pensamentos e sentimentos, de modo que mesmo aqueles que têm profundo amor à própria vida podem acabar abrindo mão dela.

A conclusão dessa história é trágica, e leva justamente à frase que intitula este texto: ninguém esperava. E essa afirmativa está certa! Por vezes, nem mesmo quem presencia o sofrimento espera que ele leve seu portador às últimas consequências. Todos acreditam-se livres de riscos, até que algo lhes ocorra, ou àqueles que mais lhes são caros.

É possível afirmar que isso é tudo oriundo daquele velho viés, daquela outra frase frequente: não vai acontecer comigo. Porém, por mais que eu não goste de dar explicações mirabolantes para fenômenos do cotidiano, acredito que há também outro ângulo pelo qual se pode olhar a negação pela qual passam vários entes queridos de pessoas deprimidas: negar é também uma forma de autoproteção.

Ainda que a percepção dos transtornos psíquicos venha mudando nos últimos anos, há quem ainda afirme que tudo não passe de frescura. Hoje em dia, é raro encontrar quem veja formas severas de depressão como preguiça, frescura, ou seja lá o que for. O indivíduo que não consegue sair da cama, que se isola do mundo, que começa a abusar de alguma substância, que perde quantidades enormes de peso está certamente doente, ninguém nega. Mas o estudante que se isola dos amigos para jogar videogame? O executivo que trabalha cada vez mais? A universitária que parou de aparecer nas festas? A mãe que tem deixado os filhos mais frequentemente sob o cuidado dos avós? O seu vizinho? O seu colega de trabalho? O seu familiar? Quem foge dos sintomas clássicos certamente não pode estar deprimido! E, se não está deprimido, não há com o que se preocupar. Se não houver com o que se preocupar, você estará protegido de todas as angústias que acompanham a experiência de cuidar de um ente querido deprimido.

Digo tudo isso não com a intenção de inflingir culpa àqueles que já sofrem com a possibilidade de perder alguém amado para a depressão, mas sim para chamar atenção aos problemas que nossos julgamentos precipitados podem causar. Mesmo quem está deprimido pode passar pela negação como mecanismo de autoproteção, e pode negar os próprios problemas àqueles que ama com o intuito de poupá-los. Relações humanas são complicadas demais para apontar culpados. Os preconceitos que nutrimos em relação às doenças mentais são quase nunca mal intencionados. É, porém, nosso dever trabalhar pelo melhoramento contínuo do mundo em que vivemos. E o que podemos fazer por aqueles que ocultam o próprio sofrimento?

Em primeiro lugar, acredito que conversar sobre isso já seja uma boa medida, e é isso que o Setembro Amarelo tem feito nos últimos anos. Eu me lembro de ver piadinhas sobre automutilação na internet lá pelos idos de 2012. Em menos de uma década, ficou praticamente impossível encontrar quem ria disso. A percepção pública tem mudado, e aquilo que costumava ser motivo de piadas é, agora, motivo de preocupação. Até pessoas mais velhas — do tipo que costumava bradar que “Na minha época, não tinha nada disso!” — têm mudado suas opiniões. Mudanças de valores sociais ocorrem por um processo lento, porém contínuo. Não se pode impor valores de cima para baixo, mas, organicamente, o diálogo sobre prevenção à depressão e ao suicídio tem servido como propulsor da mudança.

Além disso, quando o assunto é a saúde mental, é provável que o cuidado a nível individual auxilie mais que um disparo coletivo de mensagens motivacionais. Utilizar o mês de setembro para divulgar variações da frase “Você é especial!” pouco provavelmente causará impacto positivo sobre a vida de alguém. Entretanto, prestar mais atenção a quem nos cerca certamente o fará. Amigos que têm se isolado, familiares que têm agido de modo estranho, colegas que parecem estressados… Por que não dar mais atenção a quem dá sinais iniciais de mal estar? Para quem se deprime, é difícil procurar ajuda. Ser, no entanto, uma ajuda que vai até aquela pessoa pode fazer a diferença. Não é preciso ser um super-herói: não havendo uma emergência (circunstância em que até mesmo uma ambulância pode ser chamada), basta deixar clara sua disposição em ajudar, e incentivar a busca por auxílio profissional.

Por fim, gostaria de encerrar com a reflexão de que, mesmo num mundo ideal, em que doenças psíquicas sejam tratadas com a devida importância, ninguém nunca esperará uma tragédia. Somos humanos, e qualquer auxílio que possamos oferecer será sempre limitado. Contudo, isso não necessariamente é ruim. No fim das contas, reconhecer em si limitações é essencial para formar relações com outras pessoas igualmente limitadas. É dentro da condição humana que sofremos, mas também dentro dela podemos buscar sempre estender uma mão amiga. Para que ninguém jamais precise sofrer em silêncio.

Obrigada por ler este texto! Eu adoraria saber o que você achou, então deixe um comentário. Além disso, se tiver gostado, não se esqueça de deixar seu aplauso (de 1 a 50) e de me acompanhar nas redes sociais para ficar sabendo dos próximos. Até semana que vem :)

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