Os Problemas do Setembro Amarelo

Por mais que as intenções sejam boas, campanhas de prevenção ao suicídio nem sempre são executadas da melhor forma possível

Amanda de Vasconcellos
O Prontuário
7 min readSep 6, 2020

--

Se você está em risco imediato para suicídio ou conhece alguém que esteja, ligue para o Centro de Valorização à Vida em 188.

Assim como eu tirei o mês de abril para falar da conscientização sobre autismo, gostaria de tirar o mês de setembro para falar do “tema” que a ele cabe: prevenção ao suicídio. Entretanto, enquanto o Abril Azul não é tão conhecido pela população em geral, o Setembro Amarelo já é tão conhecido que se tornou um clichê, e, como tudo que é clichê, o Setembro Amarelo é digno de algumas críticas. Antes, portanto, de trazer conteúdo sobre prevenção ao suicídio, vou iniciar o mês com meus 2 centavos sobre a campanha.

Alguns problemas que vejo nas campanhas de conscientização que ocorrem neste mês são inerentes a todas as campanhas oriundas de meses coloridos. Eu poderia, por exemplo, iniciar este texto explicando o quanto o Setembro Amarelo costuma inspirar campanhas bregas. Mas vamos com calma: qual o exato problema disso? E por acaso o Outubro Rosa, o Novembro Azul, ou mesmo o Abril Azul são melhores nesse parâmetro? Logo, o que eu gostaria de argumentar é menos trivial.

A questão mais problemática ao falar de prevenção ao suicídio, a meu ver, é que falar de saúde mental sempre trará mais espaço para “achismo” que falar de saúde física. Claro, não faltam exemplos de gurus que buscam fornecer a cura do câncer, da covid, ou a dieta definitiva para perder 5kg em 1 semana, mas é mais fácil identificar charlatães nessa área. Quando se trata de saúde mental, porém, muita gente bem intencionada tenta promover intervenções questionáveis, e poucas são percebidas como tal.

Nesse contexto, é evidente que, havendo um mês inteiro dedicado à conscientização sobre a consequência mais extrema à qual podem levar os transtornos psíquicos, haverá um trabalho intrínseco em separar joio de trigo no que se trata de campanhas. E eu fiz um teste rápido para tentar entender se prevalece o joio ou o trigo: o que as pessoas buscam saber sobre o Setembro Amarelo?

O que mais se busca no Google a respeito do Setembro Amarelo são frases

Frases! O mais notável na campanha são suas frases. Ok. Mas façamos uma comparação justa: será que isso não é comum a qualquer mês colorido? Procurei saber o que se questiona acerca do Outubro Rosa:

As frases novamente figuram entre as curiosidades do público, mas já não são tão notáveis quanto no Setembro Amarelo.

Para entender ainda melhor qual a visão global que tem-se do mês de prevenção ao suicídio, avaliei ainda quais as frases que estão fazendo sucesso entre internautas. A primeira página que o Google mostrou-me trazia 40 frases para o Setembro Amarelo. Em suma, eram quase todas dizeres motivacionais. Trarei aqui algumas que saltaram à minha atenção:

  • Não enfrente a tempestade só, eu estou aqui para conversar com você!
  • Uma conversa, um abraço ou um simples “estou aqui”, pode salvar muitas vidas!
  • Falar é a melhor solução. Não rejeitem um pedido de ajuda!
  • Continue vivo! Pode ser ouvindo sua música preferida uma vez, o barulho da chuva ou o que te faz feliz.
  • O “Setembro Amarelo” é um mês de alerta para todos nós. O alerta é para que cada um de nós possamos escutar mais as pessoas.
  • Não precisa caminhar sozinho pela vida. Eu estou aqui para conversar com você.
  • Escolha viver.
  • Para tudo, se tem uma solução, tudo passa. Acredite. Converse com alguém.
  • A sua ajuda pode salvar a vida de alguém.
  • Setembro amarelo para lembrar que a vida é colorida.

Busquei evitar viéses excessivos em minha seleção de frases. Dentre as 40 mais acessadas, coletei 10, o que é uma porcentagem decente: 25%. E é com base nessa amostra da percepção pública que opinarei sobre o modo como o público lida com o mês dedicado à prevenção do suicídio.

Comecemos com dois dados relevantes: mais de 60% das pessoas que morrem por suicídio possuem algum transtorno de humor (depressão, bipolaridade, distimia, etc), e até 90% podem ter sido vítimas de doenças mentais em geral. É seguro, então, afirmar que o combate ao suicídio passa pelo combate à depressão, e boa parte das campanhas de Setembro Amarelo buscam abarcar a saúde mental como um todo.

Outra informação importante, todavia, é que mais de 50% dos pacientes de depressão não recebem tratamento, e essa é uma população que provavelmente não está sendo bem contemplada pelas estatísticas sobre suicídio. Entre 2 e 4% dos pacientes tratados para depressão morrem por suicídio, mas não encontrei boas estimativas para aqueles que estão desassistidos. É bem provável que essas sejam pessoas com as quais estamos falhando, e muito. Por mais multifatorial que seja a saúde mental, não se pode fugir da absoluta necessidade de tratamento — médico, psicoterapêutico, ou ambos — para casos que chegam ao nível da doença.

Mas o que vemos nas campanhas de Setembro Amarelo é raramente um apelo por melhora dessa situação. De fato, há estrondosos “Procure ajuda” sendo pronunciados pelas redes sociais, porém essa dica está chegando verdadeiramente a quem está desamparado? Afinal, qual a razão pela qual tantas pessoas deixam de se tratar?

E vejo, do outro lado, as frases que são ecoadas sob a temática do setembro amarelo. A intenção é certamente boa, todavia penso no efeito real de afirmar que “Para tudo, se tem uma solução, tudo passa. Acredite. Converse com alguém”. Afinal, estamos fazendo bem ao sugerir que alguém passando por depressão, ou pensamentos suicidas de qualquer tipo, converse com alguém? Não menosprezando o valor da interação social, mas reduzir um quadro psiquiátrico complexo à necessidade de conversar com alguém é, no mínimo, imprecisão.

Qual mensagem estamos passando quando dizemos “Escolha viver”? Não estaríamos sugerindo que basta ao deprimido que ele escolha melhorar? E quando ele falha em fazer essa suposta escolha, que tipo de sentimentos ele experimenta? Talvez culpa, talvez desamparo, talvez impotência… Certo, incentivar o autocuidado é empoderador, porém quando se alega num contexto de Setembro Amarelo que a depressão está sob controle do deprimido, colocamos sobre suas costas um peso. Afinal… Se é só escolher viver… Por que ele continua sem conseguir se levantar da cama?

No fundo, quando tentamos expressar neste mês que estamos disponíveis àqueles que sofrem, ou que a vida é bela, estamos, sobretudo, tirando de nossas costas o peso da impotência. Só quem já viu entes queridos consumidos por doenças mentais sabe o quanto dói saber que temos poucos recursos para auxiliar àqueles que amamos em face desses demônios. Então tentamos aliviar a dor: agimos como se o que faltasse ao suicida fosse esperança, ou fé em Deus, ou um ombro amigo. Agimos como se a causa da depressão fosse a falta de empatia das pessoas, ou a solidão. Porque, afinal de contas, é apenas quando identificamos a causa de algo que podemos solucioná-lo.

A verdade, contudo, é mais complexa, e colocar-se disponível para conversas em sua rede social predileta dificilmente será a cura para o sofrimento de alguém. É claro, suporte social é essencial para o bem estar psicológico, mas não precisamos de um mês específico ou de posts gentis em redes sociais para promovê-lo. Todos podemos, ao longo do ano, desejar um bom dia àqueles com quem convivemos, ou buscar fortalecer as conexões com amigos que se distanciaram em um momento de crise. A conversa no mês de prevenção ao suicídio não deveria ser sobre gentileza, mas sim sobre o peso que a doença mental representa para tantas pessoas ao redor do mundo, e sobre como podemos efetivamente aliviá-lo.

Seria interessante, portanto, que voltássemos campanhas de Setembro Amarelo mais ao que se pode fazer na prática pelo bem estar psíquico do que à positividade relativamente vazia. Meios de informar à população não faltam, e, se você quer fazer a sua parte, por que não começa buscando um pouco mais de informação sobre depressão? Afinal de contas, é com cada indivíduo entendendo melhor esse quadro que atingiremos um estado em que a sociedade como um todo o entende. Você pode também buscar se reconectar com amigos ausentes, individualmente, e não como um público-alvo para postagens em redes sociais. Pode divulgar os serviços de clínicas populares, visto que os preços de psicoterapias podem ser proibitivos para muitas pessoas. A parte mais difícil é ter boas intenções, e isso você já tem.

Por fim, para encerrar este texto num tom positivo, as campanhas orgânicas, desorganizadas, e às vezes desorientadas da internet nos últimos Setembros Amarelos tiveram um papel importante na mudança da visão que tem-se sobre saúde mental. De uns anos para cá, tenho visto muito menos gente alegando que depressão é frescura, ou que suicídio é fraqueza. Cada vez mais as pessoas têm percebido que depressão é coisa séria. A quem tem contribuído para a mudança progressiva dessa percepção, deixo aqui meu muito obrigada. Vocês têm feito um bom trabalho, e podemos torná-lo cada dia melhor.

Obrigada por ler esse texto! E você, o que acha das campanhas de Setembro Amarelo? Deixe um comentário!

Se gostou, não se esqueça de deixar seus aplausos (de 1 a 50). Produzirei mais conteúdo sobre depressão e prevenção ao suicídio ao longo deste mês, então não deixe de me acompanhar nas redes sociais para ficar sabendo.

Até semana que vem, e cuidem-se.

--

--