O Mito da “Livre Escolha”

Ninka
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11 min readJun 28, 2020

ou, “O que faz com que as pessoas escolham ir para a indústria pornô”?

“Existem formas de coerção ou ameaça que não envolvem uma arma apontada pra sua cabeça — mas podem ser tão efetivas quanto”

Esse texto foi escrito por Harmony (Dust) Grillo, MSW, uma sobrevivente de exploração sexual e fundadora de uma organização sem fins lucrativos que ajuda mulheres a efetivamente saírem da indústria do sexo.

A escolha dela

por Harmony Grillo.

Quando falamos das pessoas que trabalham na pornografia, ou em qualquer outra área da indústria do sexo comercial na verdade, existe uma crença ou argumento comum de que essas pessoas chegam ali e ali ficam por escolha.

A mentalidade superficial de que todas as atrizes ali são simplesmente adultas que estão consentindo com todos os ocorridos e que “sabiam muito bem aonde estavam se metendo” cria uma barreira que impede que as pessoas entendam a complexidade das dinâmicas que levam as pessoas a acabarem na pornografia ou outras áreas do mercado sexual. Através dessas lentes simplistas, é mais fácil não ter empatia — e até pior, é mais fácil julgar. Alguns dos que ouvem, leem ou de alguma forma se deparam com a realidade de algumas das atrocidades que uma mulher (ou um homem) na pornografia experimenta pode manter-se em sua opinião de que isso foi “sua escolha, e portanto sua culpa”.

Mas é essa uma forma precisa de ver as coisas? A verdade é, nem todas as pessoas que estão na pornografia estão lá realmente por livre escolha.

Como uma sobrevivente da exploração sexual, e alguém que gastou suas últimas duas décadas ajudando mulheres a sair e se recuperarem da indústria do sexo comercial, eu pude viver e ver isso com meus próprios olhos. Eu pessoalmente conheci mulheres que entraram na pornografia quando ainda eram menores de idade, uma experiência que é, por definição federal, uma forma de tráfico sexual. Eu também conheci incontáveis mulheres que foram forçadas e coagidas a fazerem pornografia por cafetões e traficantes sexuais.

Mas, para essa conversa aqui, eu vou deixar a questão do tráfico sexual (que está intimamente ligado ao mercado da pornografia) de lado, e focar apenas naquelas pessoas sobre as quais se diria que escolheram propositalmente e livremente trabalhar na pornografia. Embora esse artigo foque especificamente nas mulheres que entram na indústria da pornografia, porque elas são afetadas e levadas para lá de maneira desproporcional, notem que homens também podem se tornar vulneráveis em algumas questões sobre as quais eu vou falar aqui.

Quando uma decisão não é realmente feita livremente

A realidade é, quando falamos da “decisão” de entrar na indústria do sexo comercial, a questão da escolha não é assim tão simples quanto pode parecer.

Por detrás da “escolha”, nós muito frequentemente vemos uma interação de fatores de vulnerabilidade e de ambientação. Algumas vezes esses fatores são referidos como ‘fatores de puxa e empurra’, respectivamente.

De um lado, você tem características de um indivíduo que podem fazê-lo mais susceptível a escolher ‘trabalhar’ no mercado sexual. É por exemplo bastante bem documentado que mulheres no mercado do sexo, incluindo aquelas na pornografia, estão em níveis maiores de pobreza, tem problemas com abusos de substâncias (esses mesmo influenciados por outros fatores internos e externos), depressão, transtorno de estresse pós-traumático, e são bem mais prováveis de terem estado em sistemas de orfanatos ou assistência social do que a população em geral. [1]

Cada uma dessas vulnerabilidades sociais, econômicas, culturais, ambientais e psicológicas contribuem para a tal “escolha” de adentrar na pornografia:

E, algo que merece destaque — uma das mais notáveis vulnerabilidades que a VASTA MAIORIA das mulheres que estão ou adentraram a indústria do sexo comercial compartilha é uma história de abuso sexual na infância e/ou adolescência. [2] Essa não é uma simples coincidência. De muitas maneiras, na minha própria história pessoal, eu senti que a minha história de abuso sexual e estupro me aliciaram para a indústria do sexo, porque ser sexualizada, objetificada e usada foi normalizado em mim, e assim era algo familiar para mim que eu sabia que “poderia fazer”. Na indústria do sexo, ser um objeto sexual é um requerimento da ‘profissão’.

Para aqueles de nós que infelizmente conhecem o extremo desamparo e impotência que emergem como o resultado do abuso sexual e estupros, principalmente em tenra idade, a indústria sexual oferece uma falsa promessa de empoderamento — uma oportunidade que faz com que pareça que podemos tomar de volta o controle da nossa sexualidade e usá-la para nossa vantagem, certo?

Alguns relatos de agentes e produtores de pornografia concordam, “algumas meninas já chegam prontas para o pornô” devido à abusos e violências sexuais sofridas em tempos anteriores. Muitas passam a ver seu único valor em quão “sexualizável” é seu corpo e no grau de desejo e excitação que conseguem despertar nos homens. Uma maneira deturpada de lidar com traumas de abusos do passado é uma causa extremamente e infelizmente frequente para mulheres acabarem entrando para a prostituição e para a pornografia.

‘Podemos argumentar diante dessa realidade que uma espécie de “ciclo” se forma e se retroalimenta: mulheres e garotas sofrem abusos e violências sexuais, o que devido à falta de acolhimento e/ou tratamento psicológico, somado com outros e diversos possíveis fatores sócio-econômicos, pode acabar aliciando-as para se tornarem um produto no mercado sexual. Dentro desse mercado, imagens de abuso e violência são produzidas com seus corpos, distribuídos e monetizados para o lucro dos produtores, agentes e donos de sites. Essas imagens influenciam a demanda que a própria indústria cria e mantém, dessensibilizando-a para o abuso e exploração sexual de mulheres … e alguns dos usuários mais sedentos e susceptíveis acabam abusando e violentando sexualmente mulheres reais. Um ciclo de abuso e exploração — aonde apenas os produtores saem lucrando.

((*) Ler mais a fundo: Pornografia & Estupro. Leia também: Aqui e Aqui)

Na minha experiência pessoal, não levou muito tempo até que essa sensação falsa de empoderamento desaparecesse e eu tivesse que encarar a realidade de que eram as pessoas que detinham o dinheiro detinham o poder — e não era eu.

Então, de um lado, você tem todos esses fatores que contribuem para um nível individual de vulnerabilidade e propensão e, de outro lado, você tem os fatores externos que contribuem para a tal ‘escolha’ da pessoa de entrar na pornografia.

O “sim” é uma escolha livre se o “não” não é uma opção?

Quando você coloca a vulnerabilidade individual da mulher no contexto de uma cultura inteira que normaliza e enforça a objetificação e sexualização da mulher, a cultura onde já se criou uma demanda gigantesca para que ela disponibilize a si e a seu corpo para ‘trabalhar’ na pornografia, com sites pornôs recebendo mais tráfego regular do que a Netflix, Amazon e o Twitter combinados, [3] torna-se mais fácil ver como ela, a mulher em vulnerabilidade, se torna bastante susceptível a “escolher” entrar para a pornografia.

A verdade desoladora é que, de acordo um estudo feito por 9 países distintos, 89% das mulheres no mercado do sexo querem desesperadoramente sair, mas não conseguem: dentre outros, não vêem outras opções viáveis para a sobrevivência sua e de suas famílias. [4] Um estudo que procedeu este examinou mulheres no stripping, nos bordéis e na prostituição de rua e não achou diferença significativa na porcentagem de mulheres (89%) que queriam sair. [5]

Esses fatos imploram pela pergunta, o que é escolha sem opções? O “sim” é uma escolha livre se o “não” não é uma opção?

Bom, isso deixa por volta de 11% de mulheres que poderiam dizer, “Estou aqui por escolha, e eu quero ficar”. Mesmo para essa bem menor e menos representativa porcentagem, o fato de que elas querem trabalhar na pornografia não as protege das situações extremamente comuns, precárias, e mesmo ameaçadoras situações onde elas podem vir a serem coagidas, e muitas vezes forçadas, a performar atos e cenas fora de seus próprios limites de escolha.

Mesmo na pornografia popular, existe uma inacreditável exibição de violência contra a mulher. Em uma análise de conteúdo de uma lista dos top-50 vídeos pornôs mais populares, 88% destes mostraram agressão física contra as mulheres, primordialmente espancamento, engasgamento e fortes tapas. (Será que todas as mulheres nesses vídeos consentiram totalmente com o que de fato foi filmado?)

A demanda por esse tipo de conteúdo prepara o palco para essas mulheres — mesmo aquelas que podem estar ali por escolha — para serem coagidas e exploradas com o objetivo de agradar e satisfazer a demanda (demanda essa, nutrida e alimentada pela própria indústria)

Como é a cara da coerção, mesmo para aquelas que escolhem

Aqui está o que frequentemente ouvimos das mulheres que trabalham na minha organização e que um dia fizeram parte da indústria da pornografia. Os cenários da exploração e coerção são tão comuns na indústria pornô, que muitas atrizes podem até mesmo não entender ou estarem atentas para os reconhecerem de imediato como exploração.

Isca e troca

Em muitos casos, mulheres aceitam um certo papel em um filme pornográfico baseado em uma descrição fraudulenta do que ela está teoricamente aceitando fazer. Por exemplo, pode ser que a digam por alto que ela irá fazer uma cena softcore, mulher com mulher. Ela assina o termo — quando tal termo sequer existe. Quando ela chega no set de filmagem, ela descobre que não somente esperam que ela trabalhe em cena com um homem, mas que a cena vai envolver algum tipo de ato sexual que está fora da sua zona de conforto ou de limites pré-estabelecidos. ‘Se elas negarem? Podem ser taxadas de mulheres “difíceis de trabalhar com”, colocadas em listas negras e fazer com que as oportunidades de cenas para as quais ela possa ser chamada no futuro diminuam consideravelmente. Muitas sofrem pressões no momento, sejam elas financeiras, emocionais, psicológicas, e acabam cedendo seus corpos para a cena. E estou falando dos casos onde as mulheres ficam sabendo do que lhes acontecerá antes que as câmeras rolem — às vezes, nem isso ocorre. Simplesmente é esperado que elas se submetam ao que for feito com elas, e muitas em choque ou por causa de abuso de medicamentos, se deixam usar e filmar. (É comum que mulheres se droguem ou dopem antes de algumas filmagens, com a ideia de que não aguentariam ou não gostariam de passar pela filmagem sóbrias).’

Enquanto escrevo isso, estou me esforçando ao máximo para não compartilhar coisas ou usar termos que possas ser gatilhos ou muito explícitos, então deixo de fora os detalhes. Mas o que eu vou te dizer é que eu ouvi histórias de coisas que mulheres e garotas com as quais eu me importo foram feitas fazer diante das câmeras que faria qualquer pessoa com um pouco de compaixão perder algumas noites de sono.

Ameaças

Como mencionado, no cenário descrito, quando uma mulher não quer cumprir com o que está sendo pedido dela, ela é frequentemente ameaçada com a perda de dinheiro ou representação na indústria, ou até mesmo ameaçada de ser processada pelo dinheiro e tempo que ela estaria custando enquanto se nega a filmar o que eles querem. (A propósito, isso é claramente coerção e, por definição, é tráfico sexual.)

Degradação

Frequentemente, os agentes usam a degradação como recurso para coagirem mulheres a fazerem o que eles querem que façam. Aqui está o que uma mulher em particular compartilhou comigo:

“Muitos agentes se inclinam a degradar suas clientes como uma maneira de manipulá-las a fazerem o que eles querem delas. Eles as xingam e dizem que são lixo, que não valem nada. Quão pior que eles podem fazer com que as garotas se sintam sobre si mesmas, mais provavelmente essas mulheres e garotas irão abaixar a cabeça e fazer o que é pedido delas para ganharem novamente a atenção e elogios. A relação entre agente e cliente realmente não é nada diferente da relação entre cafetão e prostituta. Tudo está bom e você está ótima desde que você esteja gerando dinheiro para eles.”

Mesmo em casos onde as mulheres estão ‘escolhendo’ trabalhar na pornografia, há casos onde sua vontade é descartada e ela se encontra sendo coagida, manipulada, pressionada e mesmo ameaçada a performar atos degradantes ou violentos que violam suas vontades, seus limites e seus confortos (mesmo em situações fora do set). Nesses casos, a mulher vai de ser uma participante disposta na indústria da pornografia a uma vítima de exploração sexual em segundos.

Independentemente de escolha, elas merecem melhor

Culpar uma pessoa pela exploração ou violência que ela experimenta na indústria porque foi “escolha dela” entrar ali é tanto inútil quanto desinformado. Considere todos os fatores sociais, econômicos, culturais e psicológicos que discutimos, e que fazem com que cada pessoa tenha uma história e vivência individual que possa a tornar vulnerável — de maneira a se tornar susceptível a acabar dentro do meio da pornografia, mesmo que todos esses fatores estejam escondidas na fantasia da “escolha”.

Leia: Not All Porn Is Consensual. Don’t Believe It? Just Ask These Performers.

No final do dia, queira uma pessoa ter escolhido estar na pornografia ou não, eu fortemente acredito que todo ser humano no planeta merece melhor do que a objetificação, o abuso, a violência, a desumanização e a degradação sob as quais o mercado do sexo é construído.

Minha esperança é a de que, como sociedade, possamos ver além das fantasias, dos mitos, das fachadas e reconhecer as realidades cruas da pornografia, assim como o valor e o direito à dignidade de todas as pessoas envolvidas, independente de quem sejam.

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Citações:
[1] Bracey, D. H. (1982). The juvenile prostitute: Victim and offender Victimology, 8(3–4), 151–160.Grudzen CR1, Meeker D, Torres JM, Du Q, Morrison RS, Andersen RM, Gelberg L. Comparison of the mental health of female adult film performers and other young women in California. Psychiatr Serv. 2011 Jun;62(6):639–45. doi: 10.1176/ps.62.6.pss6206_0639.

[2] Bracey, D. H. (1982). The juvenile prostitute: Victim and offender Victimology, 8(3–4), 151–160.Grudzen CR1, Meeker D, Torres JM, Du Q, Morrison RS, Andersen RM, Gelberg L. Comparison of the mental health of female adult film performers and other young women in California. Psychiatr Serv. 2011 Jun;62(6):639–45. doi: 10.1176/ps.62.6.pss6206_0639.Harlan, S., Rogers, L. L. & Slattery, B. (1981). Male and female adolescent prostitution: Huckleberry house sexual minority youth services project. Washington D.C.: U.S. Department of Health and Human Services.Melissa Farley, 2004, Prostitution is sexual violence. Psychiatric Times. http://www.psychiatrictimes.com/sexual-offenses/content/article/10168/48311 Norton-Hawk, M. (2001). The counterproductivity of incarcerating female street prostitutes. Deviant Behavior: An Interdisciplinary Journal, 22, 403–417.Silbert, M. H. (1980). Sexual assault of prostitutes: Phase one. Washington D.C.: National Center for the Prevention and Control of Rape, National Institute of Mental Health.Weisberg, K. D. (1985). Children of the night: A study of adolescent prostitution. Lexington, MA & Toronto: D.C. Heath and Company.

[3] https://www.similarweb.com/top-websites/united-states

[4] Melissa Farley, from “Prostitution and Trafficking in Nine Countries: An Update on Violence and Posttraumatic Stress Disorder” www.prostitutionresearch.com

[5] Farley, M., Cotton, A., Lynne, J., Zumbeck, S., Spiwak, F., Reyes, M. E., Alvarez, D., & Sezgin, U. (2003). Prostitution and trafficking in 9 countries: Update on violence and post-traumatic stress disorder. In M. Farley (Ed.), Prostitution, trafficking, and traumatic stress (p. 1100). Binghamton, NY: Haworth.

Traduzido e editado livremente por mim ❤ Nina Cenni.
Link para o texto original.
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Ninka
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Cursando PhD em Física. Lutando contra a exploração e violência sexual evidente e inerente à pornografia, prostituição e tráfico humano nas horas vagas.