(Nuovo) Cinema Paradiso
Resenha do filme Cinema Paradiso (1988). Diretor Giuseppe Tornatore
SINOPSE: O menino Toto se encanta pelo cinema e inicia uma grande amizade com o projecionista de sua pequena cidade. Já adulto e agora um cineasta bem-sucedido, Toto volta a lembrar de sua infância ao descobrir que seu velho amigo faleceu.
Depois de muito tempo após fazer a crítica de O Carteiro e o Poeta, completarei a minha promessa de falar sobre mais esse grande filme do Philippe Noiret (e mais um daqueles em que se aprecia mais pela emoção do que pela razão, então, se você for assistir o filme com um amigo chorão — como no meu caso — já prepare os lenços). E, de certa maneira, esse também é um filme que fala sobre poesia e metáforas, troca-se os poemas de Neruda pelo uso do ritmo poético nas cenas, numa espécie de cinema de poesia, já que a história de Toto é intercalada com as cenas de filmes clássicos do cinema, como se fossem complementares e participam ativamente da narrativa. OBS: Podem haver spoilers no texto abaixo.
E, acima de tudo, que trilha sonora fantástica. Composta por Ennio Moricone, envolve uma mistura de sensações nostálgicas, com o simples e bucólico, capaz de despertar a criança que vive em nós. Não tem como pensar em um filme sobre nossas vidas e não pedir para o Ennio criar a trilha sonora.
Entretanto, o foco desse filme é diferente, há os que defendem que ele é um mero coqueluche com referências a volta a origem, entretanto eu particularmente entendo que ele possui três papéis: (i) o de fazer uma ode a história do cinema e ao quão importante ele foi (e ainda é) na vida nas pessoas; (ii) o de explorar o relacionamento das pessoas, especificamente sobre a sensação de falta e a importância dos vínculos, e; (iii) o de reabrir discussões sobre o eterno conflito entre gerações (que já foi tema de outros artigos — sobre geração Y, cultura organizacional e propósito compartilhado), mas principalmente o de voltar as origens;
(i) A ode a história do cinema
Um dos principais pontos do filme é a felicidade de Totó ao entrar em contato com a magia do cinema. Na verdade, não só de Totó, todos naquela pequena cidade utilizavam o Cinema Paradiso (aparentemente o único cinema — e fonte de entretenimento — do local) com válvula de escape para os problemas da vida, falta de dinheiro e uma era pós-guerra sem muitas perspectivas. Qualquer semelhança com os dias atuais pode ser mera coincidência, afinal diversão significa a mudança de direção, isto é, a possibilidade de viver uma outra vida (um segundo “verso”), ainda que por alguns instantes, em que você possa fazer algo que não consegue de outra forma.
E não só Totó, a cada sessão de cinema, vemos diversas outras personagens se emocionando de diferentes formas, cada um com sua própria catarse, de acordo com suas experiências pessoais e cosmovisão. Por exemplo, o padre consegue imergir no filme de forma atenta quebrada com periódicos ataques de histeria em cenas que vão contra os “bons costumes”, como as diversas cenas de beijo hollywoodiana. Há ainda alguns personagens que apenas utilizam o espaço como mero ponto de encontro social, como as crianças que só vão ao cinema para zombar dos adultos e fazer bullying com outras crianças. Mas há de se destacar que o filme narra a história como se toda a vida e acontecimentos daquela cidade fosse uma obra decorrente das energias do cinema.
O cinema realiza um tipo de educação da sensibilidade que a vida real não é capaz de realizar. Essa educação só é possível porque a linguagem de cinema estabelece um distanciamento entre personagem e espectador, entre a intenção e o gesto, entre a visão e a audição. Realiza, também, outro tipo de estreitamento: um amálgama de sentidos e significações para cada detalhe que se oferece à visão e audição [ Laura Maria Coutinho, 2009]
O filme também realiza diversas referências a atores e filmes de outros tempos do cinema, como Charlie Charplin, Clark Gable (que frequentemente é comparado com o pai de Totó), Buster Keaton e Jean Renoir (e talvez vários outros). As cenas dos filmes antigos são intercaladas com as cenas de Cinema Paradiso, como se eles fizessem parte essencial da narrativa.
(ii) Sensação de falta e o papel dos vínculos
O objetivo para o qual o princípio do prazer nos impele — o de nos tornarmos felizes — não é atingível; contudo, não podemos — ou melhor, não temos o direito — de desistir do esforço da sua realização de uma maneira ou de outra. [Freud]
Outra ideia do filme é apresentar a sensação de falta que cada um das personagens possui, explorando toda a miséria daquele vilarejo e o quanto cada um trava suas próprias batalhas (e como o cinema ajuda-as a suportá-las melhor). Ideia aparecida pode se encontrar nos conceitos de Luto de Freud, de uma certa forma, quando se perde algo é necessário investir em outra coisa para dar continuidade aos nossos anseios cotidianos:
O luto, de maneira geral, é o sentimento de perda de um objeto amado. O luto, neste sentido, consiste nas etapas em que um sujeito passa na superação deste sentimento que tem, necessariamente, um período de tempo determinado [...] O que compõe o luto, no caso, é a manifestação externa de que “algo precisa ser feito” em relação a esse objeto ou pessoa. No luto profundo existe a perda de interesse pelo mundo externo a não ser que se trate de circunstâncias ligadas ao objeto perdido. Há a dificuldade de adotar um novo objeto de amor. A ausência do objeto exige grande esforço para redirecionamento do desejo, ou libido como diria Freud, aquilo que nos move em direção a vida.
E o luto parece presente na maioria dos personagens, especialmente em Totó que sofre em casa com uma mãe histérica, com a falta da esperança da volta do pai (pós-guerra) e com todos os sofrimentos de uma vida amorosa que não encontra um rumo. O cinema acaba sendo o investimento de Totó para dar significado a sua vida, e esquecer suas eternas faltas e combater a angústia de suas perdas. Além do mais, é no cinema que Totó encontra um novo objeto de amor: Alfredo (Philippe Noiret), o projetista do Cinema Paradiso. E aqui temos uma estratégia de amizade que eu chamo de “a estratégia da raposa” [em referência a raposa do Pequeno Príncipe]: “é preciso ser paciente! Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. E eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal entendidos. Mas, cada dia, te sentarás mais perto…”. E assim acontece com os dois, no começo Alfredo é bem carrancudo e inflexível com Totó, mas aos poucos vai se afeiçoando ao garoto.
Alfredo funciona como uma figura paterna para o menino, que já não sente mais falta do pai. Uma cena muito importante do filme é quando os dois estão justamente falando do pai do garoto e aparece o poster de “E o vento levou”, que foi estrelado por Clark Gable (que no filme, era a imagem que Totó fazia de seu pai).
O que quer dizer cativar? É uma coisa muito esquecida… significa criar laços! [Pequeno Príncipe]
Entretanto, o adolescente Totó continua tendo problema com outras de suas angústia: sua vida amorosa. No filme vive o seu primeiro (e provavelmente único) amor, com Elena. Apesar das diversas tentativas e artimanhas de conquistar o amor da bela, e até de passar grandes momentos juntos, há uma questão quase shakesperiana envolvendo a família de Elena, e logo eles não conseguem ficar mais juntos. É o ponto de inflexão para ele, e a partir daí vemos um Totó muito diferente daquela criança alegre que encarava a vida com magia, e a realidade volta a bater a porta e novamente cai em luto.
O filme dá a entender que Totó nunca esqueceu Elena, e mesmo quando aparece adulto, várias mulheres parecem ter passado em sua vida mas nenhum realmente continha o amor de Elena. A amizade de Alfredo, que outrora foi útil para Totó superar seus problemas com a família, especialmente com o pai, já não surte efeito para esse problema, e Totó parece não ser capaz de superá-lo ainda como adolescente.
Antes do fim, um dos momentos mais importantes da trama: Alfredo, percebendo a dor de Totó com o lugar (especialmente depois da desilusão com Elena) sugere que ele saia de lá e faça valer todo o seu potencial longe daquele lugar que lhe carrega muito sofrimento e não apresenta nenhuma esperança. Mais do que isso, faz o garoto prometer nunca voltar. A cena é bem emblemática, já que se inicia com uma tentativa de Alfredo em tentar entender Totó mas já encontra nele uma pessoa muito diferente, e entende que a melhor solução para o garoto é “seguir sua estrela”, que pode ser mais feliz se entender melhor o mundo e descobrir coisas diferentes. Aliás, a montagem da cena é fantástica, Alfredo diz que aquele lugar está “amaldiçoado”, e logo a câmera sai do mar e foco na praia desértica com metais encalhados — provavelmente coisas antigas encalhadas no local — o que é uma referência direta ao fato de que, na visão de Alfredo, aquele lugar não pode fornecer mais nada a Totó, apenas coisas antigas que não tem mais utilidade (há muitos detalhes semióticos — como uma cruz, indicando que alguma coisa morreu para Totó naquele lugar — em poucos segundos de filme, o que mostra como o diretor trata as coisas complexas com a complexidade que é necessária, sem fugir da simplicidade de uma breve conversa entre dois amigos). Na minha opinião, tudo o que Alfredo queria era que Totó se valorizasse, e descobrisse que tudo era uma questão dele com ele mesmo, e pra isso ele precisaria daquilo que o deixava preso no meio de um deserto.
As pessoas não querem receber lições. É por isso que não compreendem agora as coisas mais simples. No dia em que o quiserem, verão que são capazes de compreender também as coisas mais complicadas.[Freud]
Há ainda a cena de despedida entre os dois, que não precisa de muito mais comentário. Todo o ciclo de vida da criação de um laço permanente está representada nesse filme.
Como já dizia a sabia raposa do Pequeno Príncipe: “Eu não como pão. O pão para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então serás maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho de vento no trigo.”. No fundo, ainda que os nossos amigos e pessoas mais próximas “vão embora”, o que fica é todo o significado e isso torna as coisas da vida mais interessante. Ainda que vocês já conheçam alguma música que algum amigo acaba de lhe indicar, o fato dessa música partir dele já a torna especial e única no meio de tantas outras que você já conhecia.
(iii) Volta as origens
O incêndio do cinema e sua posterior reconstrução faz uma analogia clara a emergência de novos tempos e de que o mundo ao redor da aldeia está crescendo e se desenvolvendo, através da inserção de determinados signos na trama que corroboram tal fato. O acidente no cinema também trouxe à cegueira para Alfredo, que mesmo destituído de sua visão, ainda mantém-se suficientemente sensível às variações dos maquinários da sala de projeção, a vida e sobretudo ao cinema, o que denota que a força motriz dessa arte reside não só nas imagens, mas sobretudo nas sensações delas derivadas.
Após sua volta, trinta anos depois, encontra uma cidade diferente, onde todas as suas lembranças continuam intactas, mas a sua vida antiga não o pertence mais. O ícone dessa falta de pertencimento é a demolição do Paradiso, evidenciando que o tempo se encarrega de todas as coisas. Além do mais, aquilo fez parte significativa da vida de Totó, e vice-versa, ele claramente se sentia responsável por aquele lugar. Não era só o enterro de Alfredo que ele vivenciou naquele dia, mas também a morte de um grande ícone da sua origem. Se Totó se preocupasse mais com o passado e suas origens, poderia ele fazer alguma coisa para resgatar a sua história?
No decorrer do filme é que vamos compreendendo os motivos que levaram Salvatore a ficar 30 anos sem voltar a sua cidade natal, o que para muitos seria simplesmente injustificável. Ele seguiu firmemente o conselho e no final fica evidente que Alfredo guardara para ele muito mais do que uma caixinha com “lembranças”. É como se já na fase adulta, Totó redescobrisse os sonhos perdidos da infância através da magia do cinema tal como um dia conhecera!
Por fim, voltarei a usar “O Carteiro e o Poeta” como exemplo, e direi que independente das perspectivas do filme que eu tive aqui, a arte se torna propriedade daqueles que mais precisam dela, e essa relação pode gerar diferentes sensações para os espectadores (tais como os filmes que passavam no Cinema Paradiso). Muito possivelmente há diferentes interpretações, sentimentos e perspectivas dessa história do que aquelas que eu mencionei neste texto.
Uma leitura complementar muito boa sobre o filme esta na dissertação de mestrado da Verônica (link aqui), que reflete um pouco mais sobre o filme.