De Volta Para o PRESENTE

Gustavo Simas
ReViu
Published in
11 min readJul 30, 2019

Um artigo sobre Escolhas e análise de Life is Strange

Este é um texto experimental escrito por 2 autores

Parte 1: “Compositor de destinos, tambor de todos os ritmos…”

Mais ou menos nos meus idos 12 anos eu estava em uma livraria num shopping center de minha cidade, e meu pai havia me dado a oportunidade de escolher alguma obra que me interessasse, levá-la para casa e incrementar a crescente estante de meu quarto. Lembro que passei pelos corredores da livraria algumas várias vezes, andando em círculos, tomando um volume em mãos, analisando a capa, a orelha, a sinopse. Meu pai talvez estivesse pensando que levo mais tempo para decidir uma leitura do que minha mãe leva para explorar toda uma loja de roupas.

De toda maneira, a cada volta que eu completava, acabava relanceando aquela obra com um garoto de óculos montado numa vassoura, que tentava capturar uma espécie de bola dourada com asas. Encontrava-me em indecisão, ante a vontade de ter aquele exemplar e iniciar a leitura desta série, contra o tolo viés de não ler algo assim tão popular, tão mania ou “modinha” entre os jovens. Sei que, após longos minutos encaçapado nesta sinuca de bico, mantive meu pueril desdém pelas obras mainstream e entreguei ao meu pai um livro que parecia menos fantasioso: “Amanhã: Quando a Guerra Começou”, de John Marsden. Não era a vez de Harry Potter ainda.

Descobri em casa que a história de Ellie Linton envolvia violência, sexo, medo, guerra e mortes. Algo que se distinguia visivelmente dos wingardium leviosas e partidas de quadribol narrados por J.K. Rowling. Sendo assim, com o término de Amanhã, fui influenciado de forma quase imediata quanto à minha percepção de literatura e, consequentemente, próximas escolhas de livros, filmes e músicas, interessando-me mais por obras de drama, suspense e terror. Não que o Amanhã tenha sido o único guia, mas foi uma parte dentre tantos outros elementos que integraram o meu Ontem (perdão pela fraca piada — e, só para constar, fui ler Harry Potter quase uma década depois, em inglês, acompanhado pela narração em audiobook de Stephen Fry. Recomendo a experiência).

Trago essa questão aqui para evidenciar que simples decisões, como qual leitura realizar, podem afunilar o futuro para apenas um caminho dentre os infinitos existentes (considerando o livre-arbítrio e a inexistência de algo chamado “destino”). Talvez mais no passado, se meu pai não tivesse me convidado para o shopping eu não teria entrado naquela livraria. Talvez ainda mais no passado, se eu não tivesse lido tantos gibis da Turma da Mônica eu fosse menos interessado por literatura. Talvez ainda mais no passado, se meu pai não tivesse conhecido minha mãe, se eu voltasse e assassinasse meu avô, se os australopitecus… Podemos remontar ao Big Bang.

E não chegar a conclusão alguma.

Ou a infinitas conclusões.

Heavy Rain, da Quantic Dream, foi o primeiro jogo de drama interativo com possibilidade de alterações de finais que testemunhei; nos ensinando que colocar uma caixa em cima ou embaixo de uma cama pode mudar fatalmente seu futuro. A produtora continuou o belo trabalho com Beyond: Two Souls (cabem aqui palmas a David Cage, a Ellen Page e a todos os desenvolvedores). The Walking Dead, da Telltale Games também cruzou meu caminho, assim como The Wolf Among Us, Back to the Future, Game of Thrones. Até o Netflix entrou no clube com Bandersnatch. Depois desses tantos encontrei, finalmente, Life is Strange (LiS).

Percebe-se que Life is Strange não é o único que há neste estilo. Quem sabe se inexistisse Heavy Rain, inexistiriam todos os outros.

Talvez.

Porém, como já notado, se formos elencar todos os “e se…”, o tempo de uma vida seria insuficiente. O que torna, na verdade, LiS peculiar e distinto dos outros listados é a habilidade sobrenatural/paranormal/divina que Max Caufield recebe: voltar no tempo e “corrigir” o passado. A obra da Dontnod Entertainment apresenta o Tempo como protagonista principal e molda uma discussão metafísica sobre a natureza de nossas escolhas.

Um eclipse no pôr-do-sol

Embora graficamente esteja abaixo de demais games da geração contemporânea, esteticamente Life is Strange dialoga sobre solidão num pôr-do-sol eclipsado distante, lembranças desmanchadas em fotos sorridentes que se queimam, frustração com a repetição de atos para a tentativa de manter (ou criar) um Presente (ou Futuro) mais perfeito. Tentativas inúteis realizadas pela “Mad Max Caufield” num Eterno Retorno.

O filósofo Friedrich Nietzsche, em algumas de suas obras, resgata este conceito do estoicismo, uma escola de filosofia grega, quanto ao loop infinito de ações ao longo da História:

“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: ‘Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência’”— Friedrich Nietzsche

“Super-Max” com seu mural de fotografias autorais

E é exatamente este círculo temporal que a Mad Max (que nada tem da tendência laissez-faire de Rockatansky) se enrosca. A maçante vontade de potência em ajudar, evitar conflitos, consertar as partes, impedir suicídios. Muitas vezes temos de decidir entre duas opções que parecem, de mesma forma, desgraçadas, infelizes. Porém, de uma maneira ou outra, temos de decidir. Podemos verificar como os fatos se desenvolvem e retornar ao ponto de decisão. E verificar a alternativa restante. Repetir o processo. E sofrer novamente com a indecisão.

É um carregar de pedras incessante até o alto do morro, para que ela volte a rolar em direção à base, como no grego Mito de Sísifo, resgatado em tempos modernos pelo filósofo Albert Camus:

“Vou-lhe dizer um grande segredo, meu caro. Não espere o juízo final. Ele realiza-se todos os dias” — Albert Camus

Ou em melhor dizeres, também do filósofo supracitado: “Não se pode criar experiência. É preciso passar por ela”. Sendo assim, em suma, temos que um modo de encarar este absurdo do não-controle sobre as ações é simplesmente aceitá-lo como característica natural de nossas vidas. Evitar a confecção de altas expectativas para driblar a frustração, como falei nesse texto. Refletir que a culpa em relação a perdas não é de sua responsabilidade única, como falei nesse texto. Assim como buscar criar relações amistosas e vínculos sociais, porém não depender totalmente deles, como falei nesse texto.

Life is Strange nos mostra que inação também é escolha.

E que, às vezes, o melhor a fazer é não fazer nada.

“Você sabe, a esperança é um erro. Se você não pode consertar o que está quebrado… Você fica louco” — Max Rockatansky

Parte 2: “ Por seres tão inventivo, e pareceres contínuo…”

Na época em que eu possuía meus 12 anos, recebi a triste notícia de que eu e minha família mudaríamos de cidade. No momento em que aquela frase adentrou meus ouvidos, tive a estranha sensação de tristeza, embora ela fosse misturada com uma curiosa vontade de experimentação.

Fiquei imaginando os novos lugares, a nova casa, as novas pessoas. Entretanto, aquela tristeza surgiu mais uma vez, e pesou. O que aconteceria com meus amigos? Eu nunca mais os veria? Os pensamentos eram ruins, ainda mais que eu iria morar relativamente longe.

O tempo passou, e eu já moro há 10 anos na nova casa. Perdi amigos, fiz outros, mantive um. Obviamente, assim como discutivelmente qualquer pessoa na face da Terra, eu já fiz a indagação de “e se eu tivesse feito diferente?”.

Quando tive a oportunidade de jogar LiS, lembro com clareza que a proposta me intrigou (o que posso fazer, tenho uma quedinha por jogos sobre tempo e morte). E ao iniciar o jogo, fui agraciado com uma trilha sonora maravilhosa.

Todavia, o que me agarrou, foi Max e Chloe. Para ilustrar melhor, basta uma explicação sobre.

Max e Chloe são duas amigas que, devido ao infortúnio do “destino” (ou vida, se não gostar da palavra), tiveram que se separar. E assim como eu, Max viajou para longe, conheceu novas pessoas, e meio que deixou sua vida antiga para trás.

Max e Chloe em suas fantasias de pirata

Um tempo se passou, e depois de muitas vivências diferentes (e conseguir uma bolsa na renomada escola de Arcadia Bay), Max retorna para sua antiga cidade. O que era para ser uma boa ideia, acaba se tornando bizarra quando, durante uma ida rápida ao banheiro, ela acaba presenciando uma discussão envolvendo um carinha do barulho, que exaltado, saca uma pistola e dispara contra uma garota.

Nessa hora, tudo tem um giro sobrenatural na vida da garotinha Caufield. A partir daí, ela se vê mais uma vez na sala de aula, vivenciando os mesmos acontecimentos antes da ida ao banheiro.

Dessa vez, ela salva a garota. E então, como num passe de mágica, as coisas boas começam a acontecer na vida da Max.

A garota que ela salvou naquele banheiro era, ninguém mais, ninguém menos, que sua amiga de infância. Chloe havia mudado, e muito. No entanto, aquele laço que ambas tinham, parecia ter se reconectado, mesmo após o primeiro encontro conturbado e com uma leve discussão; era como se elas encontrassem algo que estava faltando.

Charles Dickens consegue sintetizar bem essa situação com a seguinte frase:

A dor de partir não é nada em comparação com a alegria do reencontro.

— Charles Dickens

A partir desse momento, ambas começam a se conhecer mais uma vez, e perceber que apesar do tempo, e das mudanças exteriores, ainda eram as duas garotinhas de outrora.

Todavia, como nem tudo são flores, logo descobrimos e vemos as enrascadas que ambas se metem. Neste momento, conseguimos entrar no miolo de Life is Strange: a morte e sua inevitabilidade.

Durante todo o percurso que as amigas atravessam, Chloe morre algumas vezes — sejam elas acidentais ou não — apenas para ser revivida pela Max com seus poderes. Isso acontece cada vez mais de acordo que o enredo avança e segue para um final sombrio. Não demora muito para que possamos deduzir que o destino deseja consertar a interferência da Max para manter tudo em ordem (e isso se amplifica, se levarmos em consideração o fato de que o furacão que promete destruir a cidade seja uma ação do destino para que isso ocorra).

Mas isso tudo vale a pena? Entremos na mente da jovem Max por um momento.

Max e Chloe assistem a Blade Runner

Após o acontecimento que fez com que Max fosse embora da cidade, as coisas pareciam boas para ela. Entretanto, ela jamais esquecera da amiga que deixou para trás, das promessas. Ela imaginou que nunca mais sequer veria a sua tão amada Chloe.

Ao reencontrá-la, elas reatam o laço de antigamente, e isso a faz viver mais uma vez o passado — lembre-se, o jogo é sobre tempo também, em que Max vive o passado seja ele figurativo ou literal.

Não há como ser ruim a sensação que a Caufield sentia. Para ela, aquela seria a situação perfeita, e seus poderes caíam como uma luva. E mesmo ela percebendo em certo grau de que o destino parecia imutável, ela ainda possuía motivos para continuar.

Foi a felicidade que ela conseguiu encontrar e agarrar com todas as forças.

E para ela, valeria todas as coisas do mundo, para se sentir amada, e feliz, com a pessoa mais importante de sua vida. Além disso, ela busca nunca mais sentir a dor da perda.

Como o Eterno Retorno de Nietzsche, sentiremos felicidade e tristeza repetidas vezes, alternadas vezes. Max estava disposta a nunca mais passar por esse ciclo.

Afinal, todos querem viver felizes, em paz, e amados. Apenas isso, não é?

Parte 3: “E quando eu tiver saído, para fora do teu círculo…”

GS: Sim, meu caro colega de escrita, todos queremos viver felizes, em paz, amados, mas acima de tudo: livres. Liberdade. Liberdade, em princípio, para podermos viver e tomarmos nossas escolhas de modo a não afetar os demais e, somente então, podermos (ou pelo menos tentar) ser felizes, amar e ser amados. Com a execução das ações de reversão do tempo pela “super Max”, a senhorita Caufield acaba por julgar, dentro de sua própria ética limitada, quem deve ou não sofrer, o que deve ou não ocorrer, quem deve ou não morrer. É criado um “mundo fictício”, uma realidade paralela que vai de encontro à natureza da arbitrariedade para o seguimento de um caminho único. Artificialmente modelado. Irreal.

Max acorrentada: uma “escrava do tempo”

A fotógrafa iniciante busca pela beleza das coisas, pela simplicidade do micro e procura ver o mundo com bons olhos, mas acaba por negligenciar a complexidade do macro e se ofusca em sua lente suja e rabiscada, numa ótica imprecisa, ao se tornar uma espécie de Juiz da Morte e brincar de Deus. Ao ajeitar o futuro segundo seu desejo próprio, a garota elimina infinitas possibilidades estendidas no leque do Tempo e revela seu egoísmo mais profundo ao privar todos os que estão ao redor de decidirem algo por si mesmos.

Na verdade, Max se torna uma Escrava do Tempo.

O Utilitarismo encaminha um raciocínio para estes ramos e pode ser uma das opções de guia para tomada de decisões quando em sinuca de bico. Como dito por esta linha de pensamento:

“Ações são corretas na medida em que tendem a promover a felicidade, erradas quando tendem a produzir o oposto da felicidade” — J.S. Mill

Afinal, vale mais viver preso numa felicidade inventada do que viver livre numa (mesmo que triste) verdade?

DZ: Ora, Simas, e não estamos todos presos em uma liberdade? Segundo Jean-Paul Sartre, “a liberdade reside em nossas escolhas”. Ao não escolher, deixando para a verdade/realidade decidir, já estamos escolhendo, sendo livres.

“Somos indivíduos livres e nossa liberdade nos condena a tomarmos decisões durante toda a nossa vida. Não existem valores ou regras eternas, a partir das quais podemos no guiar. E isto torna mais importantes nossas decisões, nossas escolhas.” — Jean-Paul Sartre

Se pararmos para pensar e utilizarmos a linha de raciocínio proposta, é possível que não exista uma felicidade inventada já que, ao escolhermos, estamos exercendo nossa liberdade e trazendo felicidade ou tristeza para nós mesmos dependendo de nossas escolhas.

Enfim, o que quero dizer com isso é que nossas escolhas não são passíveis de verdade ou falsidade quando exercemos nossa liberdade. No momento em que Max decide fazer o que fez, ela torna-se livre, adquire sua liberdade, embora a atitude possa ser egoísta, por exemplo.

GS: Tendo sido livre ou não, Max acaba vivendo as consequências. E, talvez, o melhor seja não fazermos tantas perguntas e seguirmos com a dúvida para evitar mergulhar num ciclo vicioso de questões possíveis.

Quem sabe, muitas vezes, o simples fato de questionar torna falso o conceito questionado. Podemos estar certos de nossa liberdade, sendo, portanto, livres para questioná-la. Ou não? Podemos ser livres a ponto de escolhermos não sermos livres?

Quem sabe a liberdade seja um paradoxo…

Quem sabe a felicidade seja um paradoxo…

Ou não?

“Se perguntarmos se somos felizes, deixamos de sê-lo” — J.S. Mill

Life is Strange desenvolvido por Dontnod Entertainment
Screenshots tirados por Gustavo Simas
Texto escrito por Gustavo Simas e Diogo Zimmermann

--

--

Gustavo Simas
ReViu
Editor for

Escreve sobre o que dá na telha. Não sabe tricotar, mas sabe a diferença entre mal com “u” e mau com “l”