Salmo 4.2: Até quando?
O posicionamento dos servos de Deus diante da maldade do mundo
Ó homens, até quando tornareis a minha glória em vexame, e amareis a vaidade, e buscareis a mentira? (Sl 4:2)
Após ter introduzido sua súplica diante de Deus baseada no que Deus revelou de si mesmo, como vimos no estudo anterior, Davi passa agora a se dirigir ao povo, especialmente aos líderes e pessoas influentes, buscando confrontá-los com a verdade divina. Tendo Deus como escudo e testemunho, o salmista confronta os difamadores, idólatras e mentirosos que o atacavam.
Ó homens
Iniciando a partir do contexto direto, podemos inferir que o grupo a quem Davi se referia era restrito ao povo de Israel, ou seja, aqueles com quem Deus tinha uma aliança visível. Isso não quer dizer que ele se referia a crentes, mas a pessoas que estavam sob os termos da aliança temporal. Isso pode ser claramente percebido nos conselhos dados nos versículos 4 e 5. Podemos saber também que Davi se referia a pessoas que o acusavam e contendiam contra ele em seu reinado. É provável que o povo estivesse sendo conduzido a se desviar do Senhor, como vemos na condenação que Davi faz à vaidade e à mentira. Podemos concluir, então, que Davi se referia a pessoas pertencentes ao povo e que exerciam algum poder de influência, visto que suas acusações pesavam no governo do rei.
A palavra aqui traduzida como “homens” não é a palavra hebraica comum para homem, mas a mesma utilizada em Sl 49:2 e 62:9 para se referir a pessoas influentes e/ou poderosas. No entanto, é possível inferir que as pessoas influentes são aquelas que lideram, conduzem e são exemplo para o povo de alguma forma e, nesse sentido, podemos perceber aplicações gerais das admoestações de Davi.
Até quando
Um dos clamores mais presentes no coração daqueles que ardem pelo retorno de Cristo, pelo fim do sofrimento e aplicação final da justiça de Deus é “até quando”. Em muitos casos, diante de tanta maldade, como mentiras, roubo, corrupção, racismo, adultério, aborto, estupro, assassinato e muitas outras, como não clamar “até quando”?
Note que aqui o clamor não é a Deus, mas aos homens. Davi está confrontando os homens com sua maldade e rebeldia e, como vemos nos versos seguintes, ele os chama a um relacionamento com Deus. Davi é uma voz profética que os acusa da injustiça mas não um revolucionário: a justiça definitiva só poderia ser feita por Deus e somente Ele é capaz de recompensar a cada um devidamente. Ainda assim, Davi, como um servo de Deus, não se intimida em apontar os pecados do povo, especialmente dos poderosos.
Com isso em mente, podemos perguntar ao texto: quais pecados Davi está apontando? Quais os pontos onde os poderosos da época eram condenáveis segundo Davi? Creio que podemos dividir em três:
1) Tornareis minha glória em vexame
Segundo Calvino, eu seu comentário sobre esse Salmo, a glória a que Davi se refere é sua unção como rei, visto que muitos eram os seus inimigos. Uma vez que Davi foi diretamente escolhido por Deus através do profeta Samuel e era dito como alguém segundo o coração de Deus (1 Sm 13:14; At 13:22), se opor ao reinado de Davi seria se opor ao próprio Deus que o ungiu. A tradução NVI, por sua vez, sugere em uma nota que esse trecho poderia ser traduzido como “desonrarão aquele em que me glorio”, mas é preciso notar que mesmo eles consideraram menos provável do que a tradução que escolheram: “ultrajarão a minha honra”.
Como vimos no Salmo 3, Davi afirma que “tu, SENHOR, és o meu escudo, a minha glória e o que exaltas a minha cabeça”. Somando isso às interpretações possíveis do verso, podemos entender que todas apontam para que as ofensas feitas pelos poderosos eram, antes de tudo, a Deus, mesmo que quando direcionadas a Davi. Eis então o primeiro pecado apontado por Davi: os homens desprezavam a glória de Deus. Tal desprezo se dava tanto na relação deles com Deus quanto na relação deles com o próximo, como vemos no salmo como um todo.
Em Romanos, Paulo nos dá uma detalhada situação do homem quanto a sua rejeição à glória de Deus e como isso se reflete em idolatria:
Porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-lhes o coração insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis. (Rm 1:21–23)
A rejeição da glória de Deus e tornar tal glória incorruptível como algo corruptível, por meio da adoração de criaturas ao invés do criador, levou o homem a um estado de irracionalidade, como que em negação da realidade, percebendo o mundo e vivendo nele de forma desconectada do seu propósito real. Os tolos se declararam sábios e, como o salmo segue, amaram a vaidade e buscaram a mentira.
2) Amareis a vaidade
A palavra “vaidade” nas Escrituras possui uma forte associação com Eclesiastes, visto que o próprio pregador começa o seu discurso com “vaidade de vaidades, tudo é vaidade”. Contudo, a palavra hebraica traduzida aqui como vaidade não é a mesma de Eclesiastes e, enquanto Salomão usa uma palavra que traz o sentido de efêmero, disforme ou, mais literalmente, vapor, Davi aqui usa uma palavra que se refere a literalmente vazio. O que esses homens amavam não eram somente as coisas materiais e mundanas, mas o vazio, a mentira, o que não existia verdadeiramente.
O amor ao que não é real é profundamente associado ao desvio da lei do Senhor no Antigo Testamento, especialmente idolatria. Davi está aqui apontando o pecado de amar com intensidade, com grande disposição de coração, coisas que não possuem significado algum e não passam de ilusões. Se considerarmos o contexto como o golpe de estado dado por Absalão, pode existir uma conotação até mesmo política aqui. Tais coisas não passam de idolatria: todo o ídolo é uma mentira e nosso coração não perde tempo e fabricá-los. Podemos adorar imagens, adorar ao dinheiro, adorar filhos, pais ou cônjuge, ideias políticas e políticos ou até mesmo proclamar que não existe Deus e adorarmos a nós mesmos; ou declararmos que tudo é apenas vazio. Tudo, longe de Deus, é apenas vazio. Tanto o ateísmo quanto o prostrar-se diante de imagens são atitudes idólatras que amam o vazio.
As afeições dos homens são de acordo com seus princípios (…). Aqui está o ponto da vaidade: aqueles que são pessoas vãs se deleitam em coisas vãs; como crianças, eles amam aquilo que mais se adequa às suas inclinações infantis e convém para eles em particular. Do coração se originam todos os tipos de males. (Thomas Horton)
3) Buscareis a mentira
Os ímpios podem, deveras, gabar-se e iludir-se, mas quando são expostos seriamente à provação, será sempre manifesto que a razão por que são enganados é que desde o princípio estiveram determinados a tratar enganosamente. (Calvino, Comentário do Salmo 4)
Como é comum na poética hebraica, “buscareis a mentira” é um paralelismo de “amareis a vaidade”, ambas se equivalem. O amor àquilo que não é se resume a uma busca intencional e apaixonada pela mentira. Aquilo que amamos e adoramos é aquilo que buscamos como nossa prioridade; e essa busca nos molda. Acabamos por ser moldados pelos ídolos que buscamos. Mentimos por e para buscarmos aquilo que é mentira, rejeitamos a imagem em nós do Deus verdadeiro para apaixonadamente buscarmos nos tornar à imagem daquilo que nada é. Ao caminharmos em direção ao vazio, distorcemos a nossa individualidade e nossa vida em comunidade. Sem o referencial verdadeiro, o “tu” se torna uma projeção do “eu” e tudo que o “eu” consegue projetar é uma mentira vazia.
Em um mundo onde alguns buscam afirmar-se como certos em suas teorias sociais e outros tentam afirmar que não existe verdade nem mentira e tudo é relativo devido nossas limitações linguísticas, a afirmação de que tudo que é adorado além do único Deus vivo é buscar objetivamente a mentira soa aterrorizante, intolerante e, para alguns, até mesmo agressivo e ofensivo. No entanto, isso não deve nos assustar. Como Igreja, é nosso papel apontar para os influentes de nosso tempo (e seus seguidores) e acusar sua idolatria. Não devemos nos intimidar e omitir de dizer: “até quando amareis a vaidade e buscareis a mentira?” confrontando os ímpios e autoexaminando nosso próprio coração.
Conclusão
Da mesma forma que fizemos no verso anterior, creio que podemos extrair alguns princípios do que aprendemos nesse versículo.
- Não podemos ignorar ou distorcer o papel da Igreja, como povo em aliança com Deus, diante da sociedade. Não somos revolucionários ou apaixonados políticos, mas devemos apontar as falhas morais e sociais da nossa sociedade e não ter medo de assumirmos posições contrárias à cosmovisão vigente. Somos chamados a pregar o Evangelho e, através dele, tanto o amor quanto santidade e justiça divinos.
- Devemos conhecer a corrupção da natureza humana e sermos sensíveis em nossa sociedade e nossa vida particular para os pontos onde mais somos tentados a usurpar a glória divina.
- Tudo fora da realidade divina é vaidade e, sem Deus como centro da cosmovisão, tudo pode se tornar mentira. Sem Deus, somos como alcoólatras que buscam a fuga da realidade ao se inebriarem. Tudo o que vivemos e cremos fora da Palavra é mentira e só não conseguimos viver completamente em mentira pois a imagem divina ainda permanece em nós.
- Nesse verso, Davi fala em “amar” e “buscar” a vaidade e a mentira. Isso significa que a crença em Deus e a rebeldia contra Deus não se resumem a posições teóricas, mas a uma disposição do coração e dos desejos. Podemos professar uma fé teórica altamente bíblica com nossos corações inclinados para o mal. Qual é a verdadeira inclinação do seu coração?
No próximo verso veremos Davi anunciando publicamente sua aliança com Deus e demonstrando, através disso, sua confiança nEle e a autoridade sob a qual ele falava.