Salmo 2.10–12: A divina recomendação

Salatiel Bairros
Salatiel Bairros
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9 min readMay 23, 2019
Recorte de The Creation of AdamMichelangelo, 1511.

Agora, pois, ó reis, sede prudentes; deixai-vos advertir, juízes da terra. Servi ao SENHOR com temor e alegrai-vos nele com tremor. Beijai o Filho para que não se irrite, e não pereçais no caminho; porque dentro em pouco se lhe inflamará a ira. Bem-aventurados todos os que nele se refugiam. (vv. 10–12 ARA)

Não são poucas as recomendações que encontramos na Bíblia. Dela podemos tirar princípios para nossa relação com todas as esferas da existência. Algumas dessas recomendações são feitas a nível individual, ou seja, correspondem às nossas ações como indivíduos; outras, feitas para o povo de Deus, como a comunidade escolhida para representá-lo aqui. Algumas delas, no entanto, são feitas para todos os povos e especialmente seus líderes. Todo o governante está sob bênção e maldição propostas por tais recomendações.

Conforme vimos, o salmo 2 inicia expondo a irracionalidade da rebeldia contra a autoridade do Senhor. Em resposta a esta rebeldia, vimos que Deus mostra desprezo e anuncia o reino do Seu Filho. O reino anunciado possui em seu domínio tudo o que existe e não há limites para a autoridade e justiça do Ungido que é declarado rei pelo próprio Deus. Tal reino não aponta apenas para a coroação dos descendentes de Davi, mas para uma futura coroação do Ungido. Com a revelação que hoje nos é dada, podemos saber que Jesus Cristo é este rei e que tudo lhe será entregue diante de todos.

Veremos agora o quarto e último ato deste salmo: a recomendação dada pelo salmista aos rebeldes a quem ele se dirigiu no início do salmo. Diante de quem o Filho é, não há razão para continuarem em rebeldia. Aqui são propostas bênção e maldição. O Filho cujo cetro é de ferro também é misericordioso refúgio.

“Agora, pois, ó reis, sede prudentes”

[…] o princípio da genuína sabedoria consiste em que o homem se desvencilhe do orgulho e se submeta a autoridade de Cristo. (Calvino)[1]

No estudo do Salmo 1 e brevemente neste, refletimos um pouco sobre a seriedade do juízo de Deus e como todos os seus atributos estão presentes em todas as suas ações, ou seja, mesmo ao aplicar sua justiça na condenação, o amor de Deus também está presente, pois tal atributo faz parte do ser de Deus, não apenas como característica de uma personalidade. Este texto nos dá uma pequena noção disso. O salmista, inspirado por Deus, faz uma advertência aos governantes da terra para que eles abandonem a vã imprudência que ele relatou nos versículos iniciais.

Davi chama os reis a serem sábios. Chamados como este são feitos inúmeras vezes nas Escrituras por diferentes autores e para diferentes públicos. Salomão, em seus provérbios, personifica a sabedoria e nos convida a segui-la (Pv 8–9). Já o profeta Oséias encerra seu livro da seguinte maneira:

Quem é sábio, que entenda estas coisas; quem é prudente, que as saiba, porque os caminhos do SENHOR são retos, e os justos andarão neles, mas os transgressores neles cairão. (Os 14:9 ARA)

Segundo Calvino, ao chamar a atenção dos reis, Davi chama a atenção de todos os homens, pois “se Davi não poupa nem ainda os próprios reis, os quais pareciam ser inatingíveis pelas restrições das leis e isentos das normas comuns, sua exortação se aplica muito mais à classe dos homens, a fim de que todos, dos mais nobres à classe mais baixa, pudessem humilhar-se diante de Deus[2].

Com isso em vista, a sabedoria bíblica não significa apenas escolhas morais corretas ou decisões inteligentes, mas uma posição de humildade e serviço diante de Deus. Um reconhecimento de quem Ele é. Ser biblicamente sábio é seguir os caminhos do Senhor, confiando em Sua autoridade de prescrevê-los.

Vivemos em uma sociedade bastante sincretista em suas crenças. Não é incomum vermos pessoas misturando doutrinas cristãs, espíritas, budistas, gnósticas e naturalistas. Em geral, essas crenças são agrupadas de forma pragmática, conforme necessidade de quem o faz. A sabedoria é deixada para os gurus ou para alguma “conexão com o universo”. Alguns outros atribuem à sabedoria apenas uma função evolutiva, perdendo sua diferenciação com o conhecimento e o acúmulo de fatos e reduzindo-a a um mero utilitarismo irracional. Todavia, o cristianismo nos aponta uma origem diferente para a sabedoria e uma forma clara de obtê-la:

Se algum de vocês tem falta de sabedoria, peça-a Deus, que a todos dá livremente, de boa vontade; e lhes será concedida. (Tg 1:5 NVI)

“deixai-vos advertir, juízes da terra”

Este segundo trecho do alerta dado pelo salmista pode ser entendido como um paralelo ao primeiro. Nele, as implicações da sabedoria requerida anteriormente são profundadas, a saber, que é necessário se deixar corrigir pelo Senhor.

A palavra aqui traduzida como “advertir”, no original significa “disciplinar, castigar, admoestar ou corrigir[3]. Não se trata, portanto, apenas de um alerta. Os juízes da terra não são alertados a apenas ouvirem a advertência, mas a se deixarem corrigir pelo Ungido. A sabedoria bíblica implica em deixar-se corrigir e disciplinar por Deus de forma humilde e submissa. Não há espaço para o orgulho diante de Deus e não há nada que nos distancie mais dele do que a falta de humildade em nossa relação com Ele.

De acordo com os mestres cristãos, o pecado capital, o mal supremo, é o Orgulho. A falta de castidade, a raiva, a avareza, a bebedice e tudo o mais são meras fichinhas em comparação: foi pelo Orgulho que o diabo se tornou diabo; o Orgulho leva a todos os outros vícios — trata-se do estado de mente completamente contrário a Deus [ou anti-Deus]. (C. S. Lewis)[4]

“Servi ao senhor com temor e alegrai-vos nele com tremor”

Vimos acima que não há real sabedoria distante do Senhor. Todo este salmo expõe a tolice de se rebelar contra Deus. Eis a maneira pela qual podemos começar a ter sabedoria: o serviço e o temor a Deus. É bastante claro nas escrituras que “o temor do Senhor é o princípio da sabedoria” (Pv 9:10a). Contudo, ainda que uma primeira leitura faça a ordem de servir com temor e alegrar-se com tremor parecer simples, este contraste de palavras é dissonante.

A palavra hebraica traduzida como “temor” é amplamente utilizada no Antigo Testamento, considerando-a junto de suas variantes. Muitas dessas vezes, ela é utilizada na relação homem-Deus, mas em várias outras ocasiões é utilizada para expressar medo de alguém ou de algum evento[5]. Diante disso, não podemos reduzir o “temor do Senhor” apenas como uma forma de respeito, desconsiderando o aspecto do medo expressado aqui. Da mesma forma, não podemos entender que a Bíblia nos ordena a viver em pânico ao pensarmos em Deus. O temor do Senhor, para o crente, é o reconhecimento da distância que a santidade de Deus nos põe dEle e Seu completo direito de nos consumir com ela por causa dos nossos pecados. Tal temor é também reverência por Sua autoridade, sabendo que, ainda que Ele nos coloque em posição de Seus amigos, assim o é por nossa posição de servo (Jo 15:14). Não é diferente em nossa posição de Filhos (Ef 1). Por fim, o temor do Senhor é o antídoto para todos os outros medos. Não há nada o que temer quando temos ao nosso lado o Deus que ordena todas as coisas sendo absolutamente insuperável. Ao reconhecermos Sua santidade e autoridade junto com sua misericórdia e seu amor, podemos obedecer a Deus confiantemente, sabendo que Seus planos são absolutamente bons, perfeitos e agradáveis (Rm 12:2). Lembremo-nos de que o apóstolo Paulo nos recomendou a desenvolvermos a nossa salvação com temor e tremor (Fp 2:12). Tais coisas são parte necessária do nosso relacionamento com Deus.

Tendo clara a definição de temor do Senhor, podemos ver que era parte fundante do pensamento Israelita a associação do temor com o serviço, visto que tal atitude diante de Deus fazia com que se buscasse fazer tudo com o zelo requisitado por Deus. Voltamos aqui a um ponto que já foi visto durante o estudo deste salmo: o correto serviço ao Senhor é necessariamente atrelado com um correto entendimento de Sua autoridade. Contudo, fica-nos restante ainda a tensão entre o temor e tremor com a alegria recomendada aqui.

A dissonância na ordem de alegrar-se com temor torna-se um acorde suave e alegre[6] quando lembramos das palavras do sábio ao nos dizer que “o temor do Senhor é fonte de vida” (Pv 14:27) e que o temor do Senhor é melhor do que um grande tesouro (Pv 15:16), sendo ele “riquezas, e honra, e vida” (Pv 22:4). Ao praticarmos a confiança que o temor traz, conforme vimos, podemos ter segurança da nossa salvação e paz com o Criador do universo. Tudo isso recebemos mediante a uma honesta humilhação diante dEle, reconhecendo a santidade que nos separa e o sangue que foi derramado para nos mediar.

“Beijai o filho para que não se irrite, e não pereçais no caminho; porque dentro em pouco se lhe inflamará a ira”

A ira de Deus é um assunto constante na Bíblia. A intensidade com que é tratada não se diferencia da intensidade com que o amor é tratado. Não é incomum ver cristãos tentando fugir desta realidade, amenizando as passagens mais fortes e, alguns, até fugindo da doutrina do Inferno (até mesmo Lewis se sentia desconfortável com esta doutrina). A ira de Deus aplicando Sua justiça nos traz desconforto. Certamente nosso Inimigo pode usar este desconforto para nos levar a um desespero paralisante, que nos afasta de Deus. Entretanto, há um aspecto onde a ira de Deus nos conduz a Cristo e à salvação.

John Bunyan expressou de forma bastante ilustrativa como o desespero do homem causado pela ira de Deus pode nos levar a Ele. Ele inicia a descrição do seu sonho da seguinte forma:

Eu vi um homem vestido com trapos, em pé em um certo lugar, com o rosto virado para sua casa, um livro em suas mãos, e um grande fardo em suas costas. Eu olhei, e vi ele abrir o livro, e ler; e, conforme ele lia, ele chorava e tremia e, não sendo capaz de conter-se, quebrantou-se com um lamentoso choro, dizendo, “o que eu devo fazer?”.[7]

Logo após isso, ele ainda diz para sua esposa e filhos:

Minha querida esposa […] e vocês, meus filhos […] por causa do fardo que pesa sobre mim […], eu certamente sei que esta nossa cidade será queimada com fogo do céu, onde temo que tanto eu, quanto você, minha esposa, e vocês, meus filhos, seremos miseravelmente arruinados […][8]

Quem já leu O Peregrino sabe que tal pavor motiva o encontro dele com o Evangelista e o início da caminhada em direção à porta estreita. Graças a este temor, ele passa a caminhar em direção a Sião e começa a ser chamado pelo nome de Cristão. A ira vindoura é, então, seta que aponta para a esperança da salvação. Felizes são os que tremem no desejo de livrar-se do fardo do pecado e restaurar o relacionamento com o Criador. Felizes são os que buscam nEle o refúgio para a justa ira que Ele trará e que, nesta ira, encontram o conforto para as injustiças deste mundo.

“Bem-aventurados os que nele se refugiam”

A bem-aventurança que, em uma primeira leitura, é desconexa do restante do texto, se mostra a conclusão óbvia diante da ira do Filho. Não há verdadeiro refúgio em Deus sem um relacionamento restaurado com Ele, sem dar atenção aos Seus alertas. Não é possível a restauração deste relacionamento sem o intermédio do Filho. Não há verdadeira submissão ao Filho sem arrependimento da nossa rebeldia. E não há arrependimento sem o temeroso e lamentoso reconhecimento da justa ira vindoura sobre nós. Quando, por fim, reconhecemos que até o arrependimento nos foi dado como proteção imerecida desta ira, nada mais podemos compreender deste mundo que não seja por meio do reconhecimento da Graça. E é por esta graça que somos salvos.

Caso deseje receber uma versão do estudo em PDF, envie um e-mail solicitando o estudo que deseja para salatiel.costabairros@gmail.com. Sugestões de textos e temas também são bem-vindos.

Notas

[1] CALVINO, J., Comentário de Salmos vol. 1, p. 65, Fiel.

[2] Ibid., p. 64.

[3] Mais informações sobre esta palavra disponíveis em https://biblehub.com/hebrew/3256.htm, acessado em 02/05/2019.

[4] LEWIS, C. S., Cristianismo Puro e Simples, p. 165, Thomas Nelson Brasil.

[5] A palavra utilizada é יִרְאָה (yirah). Entretanto, existem palavras que são associadas puramente ao pavor, como מוֹרָא (moyre), cujo uso não é para a relação entre o crente e Deus.

[6] Talvez um acorde maior com sétima maior?

[7] BUNYAN, J., Pilgrim’s Progress, The Old-Time Gospel Hour, p. 11. Tradução Livre.

[8] Ibid., p. 11.

Referências

Bíblia de Estudo Cronológica Aplicação Pessoal. (2015). Rio de Janeiro: CPAD.

Bíblia de Genebra Revista e Ampliada. (2009). São Paulo: Cultura Cristã.

Bruce K. Waltke, J. M. (2015). Os Salmos como Adoração Cristã. São Paulo : Shedd.

Calvino, J. (2013). Comentário de Salmos (Vol. 1). São Paulo: Editora Fiel.

Crossway. (2013). Gospel Transformation Bible. Wheaton, Illinois: Crossway.

Faith Life. (s.d.). Faith Life Study Bible. Faith Life.

Richards, L. O. (1985). Expository Dictionary of Bible Words. Grand Rapids, Michigan: Zondervan Corporation.

Various. (1962). The Wycliffe Bible commentary. Chicago: Moody Press.

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Salatiel Bairros
Salatiel Bairros

Cristão, marido, pai e programador. Trabalha como Engenheiro de Dados. Especialista em IA (PUC Minas) e pós-graduando em Teologia Filosófica (STJE).