Sete #6 — O céu com estrelas de sangue

Renato Nascimento
Sete Crônicas
Published in
4 min readOct 10, 2017
Angellus — tocado pelo anjo.

Dizem que antes de você morrer toda sua vida passa diante de seus olhos. Eu nem pisquei. Sangue e lágrimas se misturavam e manchavam meu vestido claro, eu via o rapaz sendo dilacerado na minha frente mas todo o meu corpo ficara rígido naquele momento, imóvel, adormecido, senti que cairia de joelhos em frente à criatura como se fosse o prato principal, uma suculenta e apetitosa carne vermelha para saída, “Embrulhada pra viagem?”.

Pouco a pouco a criatura se alimentava com a ferocidade de um animal selvagem faminto, partes do pobre rapaz eram atiradas por toda a parte enquanto jatos de sangue espirravam e marcavam todo o banheiro, as pias, os mictórios, o espelho e o azulejo azul celeste se tornaram um verdadeiro céu de estrelas de sangue. Eu sabia que era a próxima, sabia que o garoto era apenas a entrada naquele menu, mas ainda assim nem minhas pálpebras piscaram. Nem um único músculo se moveu e eu percebi que não passava de uma garotinha assustada.

O relógio dos meus pensamentos começou a correr ao contrário. Eu revivi meu pai me pegando no colo e me levando para escola, com minha lancheira cor de rosa e minha mochila de rodinhas. Aquele seus óculos quadrados, seu beijo e o toque da sua barba na minha testa no meu primeiro dia de aula no jardim. Como eu era pequena naquela época. Eu senti o cheiro de torradas vindo da cozinha no domingo de manhã no meu décimo quarto aniversário, o sorriso largo da minha mãe e seus longos brincos dourados. Senti em meus lábios meu primeiro beijo no portão da minha casa recentemente, a lua sorria, o clima era ótimo e o momento perfeito. Eu ouvi quando o carro dele se aproximava enquanto eu estudava para as provas do último ano na escola, sua blusa branca, cabelos loiros encaracolados, olhos azuis e sorriso bobo. Porquê não consigo tirar Hymn for the weekend da minha cabeça?

Ângelo me ensinou a usar a dádiva que me foi concedida. Um toque celeste. O poder de tomar minhas próprias decisões. Poder proteger meus pais e enfim retribuir todo o amor que eles me concederam em todos esses anos. Minhas preces e orações enfim tinham sido atendidas. O céu e o inferno fizeram sentido então. Me senti tão forte ao seu lado, tão capaz, me senti invencível. Ele me ensinou sobre tantas coisas e quando eu o olhava e via seus lábios se mexerem, mesmo não ouvindo som algum que ele pronunciava, aquilo era música para os meus ouvidos. Ele me ensinou a ama-lo também, sem saber. Eu jurava estar preparada, jurava poder fazer algo, jurava poder vencer.

Aqui estou eu agora. “Grande aluna, não Ângelo?”. A criatura olhou pra mim indicando que era minha vez, guardando apenas o coração do rapaz e eu me lembrei em como ela era apenas a menina esquisita da classe a alguns minutos atrás. Não sobrara muita coisa da entrada e a sua gula não estava saciada. A cada passo que ela dava em minha direção meu coração acelerava, o pavor tomou conta da minha alma. Eu não conseguiria proteger ninguém, não iria fazer diferença alguma, não venceria. Ela sairia e atacaria todos lá fora. Seriam sorrisos rasgados e diplomas ensanguentados. Seria tudo minha culpa. Morreria pensando em todos que não pude salvar.

Abissal — tocado pelo demônio

Ela inclinou a cabeça lentamente para o lado, como um boneco de corda. Apreciando meu medo, degustando meu pânico. Ela sabia que eu era uma tocada também, por isso veio com cautela, sabia que estávamos de lados opostos. Desculpe mamãe, desculpe papai e desculpe Ângelo. Eu ainda sou apenas a garotinha da lancheira cor de rosa. Ela saltou em minha direção. Fechei meus olhos por um instante. Aqueles seus dentes grandes e pontiagudos, os ossos enormes sobre a fina camada de pele, e meu grito. Eu quase cheguei a sentir seus dentes rasgando minha pele.

Porém antes que ela conseguisse encostar em mim ele surgiu como um relâmpago, rápido, ágil e certeiro. Toda a extensão de seu braço era na verdade sua espada. E no fim o que veio em minha direção era apenas a cabeça da criatura enquanto seu corpo, pelo impacto, fora jogado na direção oposta. Ângelo, meu cavalheiro branco. Até quando você vai me salvar? Até quando serei a inútil e pequena Jennifer? Droga. Hymn for the weekend de novo na minha mente! Ele me levou aos seus braços e eu tive que engolir meu choro para não parecer tão patética. Mas então ele me disse, “Parabéns”. O anjo que o tocou sabia o que estava fazendo. E quer saber? Pelo menos por hoje eu não me importaria em ser a princesa indefesa salva pelo príncipe encantado. Eu ainda farei a diferença, um dia serei a que ajuda, a que protege, a que salva e a amada.

Gostaram? Deem palminhas!

Esse é o sexto conto de uma série de contos sobre 7 grupos de 7 personagens cada e a descoberta de seus dons sobrenaturais, em meio a uma luta invisível travada entre a Ordem e o Caos.

Para continuar acompanhando os contos siga Sete Crônicas.

A batalha entre a Ordem e o Caos está apenas começando.

Contos anteriores:

I — Sonhar é sua sina.

II — Dia da caça.

III — Apenas um desenhista.

IV — Dance comigo esta noite.

V — Alcançar estrelas.

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