Dez continhos catalanos #3 — A profecia do prefeito nato

Victor Calcagno
5 min readFeb 7, 2019

São poucos os catalanos que sabem, mas tem menininhos que nascem pra ser prefeitos da cidade. Se alguém perguntar o motivo — aos que sabem, é lógico — dirão que de tempos em tempos Deus resolve fazer um neném que tem a política escrita na carinha larga. Desde os primeiros dias a criança vai sorrir fácil, querer colo de todo mundo, bater palma pra demonstrações bobas de subserviência e fazer birras que ninguém vai chamar de enjoadas, mas manhosinhas ou até, confirmando os prognósticos, carismáticas. Esse bebê, ainda segundo o povo que tem a profecia na ponta da língua, vai saber o nome de todos os vizinhos aos cinco anos de idade, aperfeiçoar a força exata de um aperto de mão aos dez, ser conhecido de desconhecidos aos 16, virar cabo eleitoral aos 19 e aí até vencer a primeira eleição pra vereador e, finalmente, outra pra prefeito, é um pulo. Esse rapazinho é o que chamam de prefeito nato, um fenômeno que produz o cerrado no sudeste goiano.

Quando o Harley nasceu no Santa Terezinha, todo mundo que entendia do assunto já sabia que era um desses casos, a profecia virando realidade, a coisa acontecendo de novo. Primeiro indício: a mãe deu à luz no dia do aniversário da cidade, uma quinta-feira 20 de agosto que, vertida em feriado, emendou-se no dia seguinte e dobrou o fim de semana. Não só todos os parentes puderam ir ver a criança e tomar café com biscoito de maizena, mas também os parentes dos parentes, os vizinhos dos parentes e os amigos e inimigos dos parentes, que no final já dava o mais ou menos o bairro todo. Ainda mole, carinha enrugada e olhos quase sempre fechados, Harley — “fala ‘árlei’, mas escreve invocado assim mesmo”, diziam as tias — já dava mostras de simpatia ao passar no colo dos convidados sem chorar e até esboçar um risinho safado. Segundo indício: no sábado arrumaram galinhada com tutu pra comemorar a ocasião. Os quatro dias de folga, a galinhada e a disponibilidade precoce da criança tornaram o nascimento um fim de semana lembrado toda vez que o moleque fazia aniversário.

Harley não durou muito, mais exatamente sete anos e uns quebrados. Daí em diante começaram a chamá-lo de “Feitim”. O motivo foi justamente o amor do Harley pela política, ou pelos santinhos de políticos durante a campanha, que em Catalão as crianças chamam de “calendário”. Bater calendário era brincadeira que unia todos os moleques da cidade, no chão de cimento ou no sofá da sala, e qualquer hora era hora de rapelar os amigos ou pedir pro moço do carro de som, por favor, um calendário pra nóis brincar. Ia ter comício no bairro e o menino convenceu a mãe a deixá-lo ir com os pais do Wesley da mercearia. Tudo porque ouviu dizer que em comício jogavam calendário em cima do povo. Chegou lá, pegou uns santinhos, sentou com o Wesley da mercearia pra apostar e saltou do chão quando ouviu o candidato lá em cima chamando as crianças presentes pro palanque. Queria mostrar “o futuro da cidade” e enfileirou os menininhos, perguntando o que cada um queria pro bairro. Na sua vez, Harley, esperto, lembrou do que ouviu no rádio e gritou no microfone: “quero é uma Catalão com saúde, emprego e muita alegria pra toda a população!”. Foi a resposta mais completa, ou mais decorada, não importa — o candidato, que se elegeria, soltou um “aô, prefeitin!”. Pegou.

Daí em diante foi só ladeira a baixo, o Harley-Feitim botou na cabeça, ou botaram na cabeça — e no nome — dele, que mais dia, menos dia, seria prefeito. Começou a fazer por onde e, um a um, foi completando todas os passos da profecia, aos dez, aos 16, aos 19. Na quarta-série, foi representante de turma no Mãe de Deus. No ensino médio, organizou a ala jovem do PMDB, convencendo os colegas de 16 anos a votar. Na Administração do CESUC, chegou a levar carro de som pra porta da faculdade em época de eleição. Até que aos vinte e poucos achou que já era hora de disputar a primeira delas, como vereador.

O prefeito nato não era rico, mas tinha o suficiente pra fazer alguns calendários seus. Distribuiu pra todo mundo, pediu voto até pra quem não votava em Catalão e esperou pela vitória, dada como certa pela parentada. Teve 73 votos. Ficou triste. Quem sabe daqui a quatro anos, você mais experiente? Na segunda tentativa, o mesmo esforço, 113 votos. Mais quatro anos, resolveu que era agora ou nunca e candidatou-se como prefeito por um partido nanico: 427 votos. Era injustiça demais, o menino não era um caso certo? Se a cidade já tinha visto vários prefeitos natos, um alarme falso era novidade. O povo não soube como reagir, ainda mais que a culpa recaía nele mesmo, que não tinha votado no Harley. A estratégia foi negar o óbvio: que o Feitim, ao invés de agraciado, tinha nascido perfeitamente comum, que não tinha capital político nenhum e que, por fim, era só um rapaz de coração bom que fazia amizade com todo mundo. Nada além disso.

Ainda hoje, o prefeito nato já com 40 e tantos e pai de família é saudado como futuro prefeito de Catalão em todo lugar que passa, o sorriso certo na cara larga. Já tem tudo preparado para 2020, quando vai tentar uma vaguinha na câmera de vereadores outra vez. A mãe se mudou pra Anápolis, o Wesley da mercearia agora tem um supermercado e nenhuma vizinha teve coragem de contar que o Harley nunca vai ganhar coisa nenhuma ou apenas não tinha dado a sorte adicional de, além de ser prefeito nato, ter nascido parente do prefeito de verdade.

*ilustração de Valter Costa

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