Dez continhos catalanos #9 — Nas barraquinhas

Victor Calcagno
5 min readFeb 15, 2019

O moço tem um segredo e um desejo pra vida, os dois, aliás, a mesma coisa — gastar de uma só vez R$1000 em pares de meia nas barraquinhas da Festa do Rosário. Se perguntassem pro moço o motivo dessa vontade alargada, diria primeiro que não é alargada coisa nenhuma, e depois que se trata de uma questão de praticidade. É simples: se todo mundo em Catalão gasta cerca de R$25 nesses pares a cada outubro, o que já garante mais de dez unidades, então pra ele, que gosta muito de meias e se acostumou a comprar R$50 das peças nessas ocasiões — pra ter ou dar de presente — gastar R$1000 de uma vez seria adiantar a vida em 20 anos, ganhar na inflação e se afogar num mundo de malhas elásticas. Se o questionassem sobre a qualidade das meias, conhecidas pelos rasgos, o moço diria que é assim mesmo, que está acostumado e que até gosta, por isso tantas. Se o chamassem de doido, o moço responderia que cada um tem suas manias. Se o acusassem de querer acabar com as meias das barraquinhas, por sua vez, o moço só argumentaria que é mentira. Tudo isso diria o moço se o perguntassem, mas ninguém perguntava, porque seu desejo pra vida era também um segredo e o plano era apenas aparecer em casa, num dia de outubro, com sacolas e mais sacolas.

A dona tem uma vontade que volta sempre que ouve os tambores de ensaio em setembro — acompanhar, todos os anos até morrer, os ternos de congo passarem em cortejo pela cidade. Sabe que é coisa que demanda energia, afinal são mais de dez grupos de dançadores de congo que saem pelas ruas no domingo de manhã, e até mais de 20 se contar os moçambiques, catupés, etc. A dona, na verdade, não sabe muito diferenciar quem é quem, já é velha e a vista não ajuda, mas desde criança acha bonito as roupas, os acessórios, os instrumentos, a dança, os tecidos, as fitas, as bandeiras, os estandartes, os chapéus, as saias, as cores, os nomes, as cadências, os cantos e as respostas. Não nasceu dançadora, mas sabe que ficar no sol pra ver o povo também tem seu valor, principalmente quando já se tem mais de 70 anos, diabetes, joelho ruim e comida pra fazer. Os filhos da dona acham ruim, mas a dona diz que começou quando jovem e agora não vai parar. Sobre essa vontade, ela não sabe bem o motivo, nem de onde veio. Só acha que se não for ver os congos passarem, a vida desanda, os bolos desandam, a família desanda, e aí é melhor não arriscar.

O menino tem um capricho no coraçãozinho, basta ter pontaria, prática e fé na canhota — ganhar a vida derrubando latas em chutes certeiros. No declive das ladeiras mais pro fim das barraquinhas, passada a parte dos fliperamas e do tiro ao alvo, encontra sempre o desafio esperando numa barraca de lona azul, meio capenga como todas as outras. O desafio é simples, por R$5 você tem direito a três chutes. Se derrubar todas as latas, o barraqueiro, esse homem mal-encarado, te dá uma nota de R$20 e você pode ir gastar em pirulitos, tamagochis, soldadinhos que piscam. Mas o menino jura que não quer nada disso, que quer é comprar comida, pagar aluguel, ajudar os pais, um homenzinho já, vai entender. Mantém a determinação nos olhos mesmo com o aviso dos passantes, que desconfiam das latas pesadas, da bola leve demais, do declive escolhido e dos recursos infinitos do barraqueiro. Ainda assim o menino não arreda o pé, diz que é só questão de se aquecer pra começar a fazer fortuna e que no ano passado mesmo conseguiu ganhar os R$20. Tem orgulho da história, fala que comprou picolé pra família toda e nunca revela que gastou os R$35, ou todo dinheiro que a avó deu pra ele usar nas barraquinhas, até derrubar todas as latas.

O senhorzinho tem uma obsessão que mexe com suas entranhas mais profundas — encontrar o mesmo risole de carne moída com milho verde que comeu nas barraquinhas em 2014. Após alguns exercícios de memória, ele tem certeza que era uma barraca ao lado da sorveteria e é capaz até de lembrar o rosto da menina que o atendeu no domingo, último dia de festa. Com fila grande demais pro espetinho, resolveu procurar outra coisa pra comer, viu na vitrine o risole empanado com farinha de rosca, achou bonito, perguntou qual era o recheio. A menina “baixinha, com cabelinho aqui”, disse que era só R$3,50, ou R$5,00 com o refresco de limão, manga ou morango. O velho pediu um desses com o suco amarelo, comeu e se refastelou. Ficou com vergonha de pedir outro e foi embora. No outro dia acordou arrependido, esperou dar 10h e foi direto pra mesma barraca, que agora ele jura que se chamava “o nome de alguém & Salgados”, como Mara & Salgados ou Lara & Salgados, não sabe agora. Se no domingo os barraqueiros que ficam já estão se arrumando pra ir embora, na segunda são pouquíssimos os que ainda não desocuparam as ruas, e o senhorzinho não achou nenhum risole. Ou até achou, mas em outras barracas, e nenhum que chegava perto do entregue pela menina do cabelinho. Desde então, todos os anos o senhorzinho percorre as barraquinhas atrás do exato risole de carne moída com milho verde e quando alguém pergunta se já encontrou, só responde que ainda não, mas que continua comendo, até achar.

O moço, a dona, o menino e o senhorzinho têm uma fantasia comum — querem que no último dia de barraquinhas alguém apareça e diga que a Festa do Rosário está garantida pelo menos nos próximos 150 outubros da cidade.

*ilustração de Valter Costa

--

--