Dez continhos catalanos #8 — Carta de amor aos mototaxistas

Victor Calcagno
4 min readFeb 13, 2019

Mototaxistas catalanos,

Se um dia algum passageiro desavisado e muito bobo, desses forasteiros que se pega na rodoviária e têm no rosto a descrença dos viajantes, perguntar de relance durante a viagem qual o motor que move os cem mil catalanos todos os dias, se a soja, a mineração ou a Mitsubishi, saiba que vocês podem virar o rosto de lado — apenas pra ouvir melhor a pergunta — e rir baixinho em seguida, imediatamente voltando os olhos pra via. Fica a cargo de vocês explicar na pausa do semáforo, na hora do pagamento ou mesmo enquanto o gaiato desengancha o capacete, que não. Que nenhuma das três, que nem perto, que muito menos, que longe disso, que se fosse assim era fácil e que ele, se não é desavisado, nem muito bobo, certamente percebeu nesses cinco minutos em cima da moto, tanto pela quantidade de colegas, quanto pela presteza do serviço, que Catalão sem mototaxistas é como um cachorro manco sem rodinhas de apoio.

Vocês são tão diversos, de tantos bairros, modelos de moto, cores de capacete, redinhas no banco, coletes brilhantes e estabelecimentos diferentes: Pica Pau, Pio Gomes, Ponto X, Tigre, Ligeirinho, Catalão, São João, 7000 e Líder, até o infame Jato Indo. Parecem se bipartir todos os dias em algum lugar entre o centro e a Lamartine. Têm a perigosa habilidade de surgir no canto do retrovisor, coelhos recém-saídos da cartola. São mestres em fazer as curvas com a suavidade certa até para que as senhoras de saia, que se sentam de lado, consigam se equilibrar sem perder o recato. Cobrem a cidade inteira, varam a madrugada, cruzam a BR, atendem a todos os acenos, buscam encomendas, esperam na saída e cobram sempre o mesmo preço. Sabe que vez ou outra, quando não tenho nada pra fazer, me pego imaginando quantas vezes por dia vocês respondem ao “quanto é?” com o sempre impressionante “só seis reais”? Parece bobeira minha, mas tenho dessas curiosidades técnicas, numeradas, ingênuas.

Fico me perguntando quais pessoas aqui nunca montaram nas suas garupas. Mais ainda: me pergunto que tipo de pessoas são essas, que desconhecem benesses superiores às já associadas ao transporte público, como poder beber álcool e não se preocupar com estacionamento. O que me pega mais é saber que esse povo nunca sentiu no rosto o vento frio da Raulina, já tarde da noite, sobre duas rodas alugadas. Nenhum outro veículo na via, doce ruído das 150 cilindradas, sinais furados com cuidado. Varar o córrego de cabo a rabo olhando as ruas transversais, todas que chegam lá de cima até o ponto mais baixo da região, e ver, ao invés de gente, infinitos postes de luz alaranjada. Nessas horas, pedir pra fechar a viseira seria de uma insensibilidade tremenda. E que não venham comparar com o vidro do carro abaixado, muito menos com dirigir, eles mesmos, a própria moto. Uma coisa é pilotar o guidão, e outra, mais serena e irresponsável, é se deixar conduzir por um mototaxista, o que vocês sabem muito melhor que eu.

Posso perguntar uma outra bobagem? Vocês ficam bravos quando passageiros os chamam — vocês mesmos, com filhos, mulheres, motos numeradas, capacetes no braço e nomes próprios — pela corruptela de “tótaxi”, como se fossem todos registrados pelos pais dessa forma, marcando um etéreo destino escrito em cilindradas? Já se acostumaram, é normal, dá raiva? Ou pior é a fama que vocês têm de barbeiros suicidas, kamikazes de corredor, gente que dispensa as setas, os freios, as rotatórias, os “pares”, as carteiras de habilitação e mesmo as testas dos passageiros? Imagino que essa última doa mais, não é, mesmo depois de anos de trabalho? Pois que a verdade seja dita: se existem, sim, aqueles dentre vocês que estariam melhor nas competições de motocross do carnaval de Três Ranchos, são muito mais numerosos os que desejam o mesmo que seus clientes, ou apenas atingir o destino com segurança, demore o quanto demorar. Mas não tiremos a razão dos desconfiados. Moto, como dizem os catalanos com razão, “é perigoso passado” e pode deixar ressabiado quem não tem costume.

Nessas horas, apenas lembre essas pessoas que são vocês os responsáveis por trazer o povo da pecuária de madrugada, levar a secretária pro trabalho no centro, arrastar a tia pra festinha de aniversário, carregar os parentes pra ver fulano no hospital, transportar os adolescentes pras barraquinhas e conduzir os namoradinhos, separados por seis bairros e um sistema de ônibus pouco razoável, até o encontro no fim de semana. E que falar em soja, mineração ou Mitsubishi só pode ser brincadeira.

Com amor (e recomendações de segurança),

Uma cidade inteira.

*ilustração de Valter Costa

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