Dez continhos catalanos #1— Trem de ferro

Victor Calcagno
4 min readFeb 5, 2019

Em Catalão-GO, seja de manhã cedinho, na hora do almoço ou quase meia noite, a lua já alta no céu, dá pra ouvir o trem de ferro passando de qualquer ponto da cidade. Lógico: tem lugares em que se ouve mais que os outros. Se sua casa é uma daquelas antigas e atarracadas perto da prefeitura, então provavelmente os trilhos, os vagões e o piuí-piuí não têm nada de nostálgico ou poético — são apenas um estorvo barulhento, periódico. Agora, se você tem o costume de dormir no Maria Amélia, do outro lado da BR, aí é possível que ouça muito pouco (ou quase nada) do roça-roça ferroso, e o mais leve ruído da locomotiva já seja suficiente pra aquecer seu coraçãozinho.

O mais certeiro, no entanto, é dizer que o barulho do trem de ferro não aqueça o coraçãozinho de mais ninguém em Catalão (ou de pouquíssima gente), mas apenas incomode os catalanos, que estão sempre se incomodando. Com tanto incômodo envolvido, o maquinista da noite, ainda que seja um maquinista — e seja o da noite — sente-se compelido a tomar algumas precauções. Seu dever de apertar a buzina quando passa pela cidade, tarefa cumprida pelos colegas com generosidade quando está claro, é reduzido a algumas frações de segundos, seis ou sete vezes quando cruza as ruas na madrugada. Assim pelo menos os catalanos se incomodam menos.

O maquinista da noite é um cara engraçado. Fez curso de maquinista no SENAI, veio de Porangatu, rodou em algumas outras empresas de mineração da região, pulou aqui e ali até parar na Copebrás. Carrega o que vier: minério de ferro, rocha fosfática, brita, titânio, o que for. Já ouviu falar que nióbio é coisa muito cara, que dá pra comprar um cruzeiro, que pode até salvar o país da crise e etc, mas não liga muito: pra ele é tudo carga, tudo trabalho do mesmo jeito. Decidiu ser maquinista porque não queria ser caminhoneiro. Gostou do negócio, até hoje repara nos trilhos fazendo a curva lá na frente e tem satisfação em pensar que controla toneladas de qualquer coisa, assim, na palma da mão.

Tem o costume de olhar pra frente, mas principalmente pros lados quando passa pela cidade, já altas horas no relógio, nenhuma nuvem no céu escuro. Imagina todo mundo dormindo e solta os apitinhos tímidos em alguns cruzamentos principais. Gosta de imaginar que alguém atento lá embaixo, talvez perto do córrego, ouviu e comentou com algum outro: “ó o trem de ferro passando”, sem resposta. O maquinista da noite é um só e é todos, não tem nome, nem rosto, conduz os mesmos trens há anos e está sempre pronto a ser substituído por outro igualzinho a ele, o mesmo maquinista da noite. Ninguém sabe quem é, mas todo mundo o reconhece — pelo trem de ferro, pelas horas e pela discrição do apito.

Esses dias (os catalanos usaram a palavra “isturdia” pra contar a mesma história) ninguém entendeu o acontecido. Era uma da manhã, noite tranquila, quando surge o trem de ferro numa aura bélica: de um lado e de outro, as buzinas, antes discretas, acordaram o pessoal até no Paineiras. Acharam que era assalto, duelo, tiro, Catalão não é terra de gente brava? Àquela hora, ninguém na rua, não deu pra saber de nada, e quem botou a cabeça na janela só viu os vagões passando a toda velocidade, com o apito estourando. Que absurdo, como pode, a gente aqui tendo que trabalhar cedo amanhã. Teve foto, vídeo com o celular, criança gravada chorando, carro tendo que acelerar pra não ser pego na linha férrea, tudo devidamente encaminhado pra TV Anhanguera no outro dia. A população catalana, do jeito como dizem os candidatos à prefeitura, queria saber que diabo justificava a barulheira. Não deu outra: carro, repórter e câmera pra sede da Copebrás, quem é o fulano maquinista da noite mesmo? Aquele? E qual o motivo da confusão, sr.? O maquinista da noite, sem saber que estava ao vivo (porque achou que estava sendo gravado), olhou pra câmera e disse com vergonha: “é porque ontem me bateu uma tristeza, sabe, dona?”

Por algum motivo, nenhum catalano se incomodou.

*ilustração de Valter Costa

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