Jornalismo esportivo ainda reproduz cultura machista
Apesar de representarem 58% da categoria, mulheres têm pouco espaço na editoria
De acordo com a pesquisa “Perfil dos Jornalistas Brasileiros (2021)”, que contou com a participação de mais de 7 mil jornalistas, os profissionais no Brasil são majoritariamente mulheres, representando 58% da categoria. Apesar das mulheres serem maioria, sua presença no jornalismo esportivo ainda é reduzida.
Para analisar esse cenário, a Beta Redação entrevistou a jornalista Lídia Ramires, discente do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e pesquisadora com pós-doutorado em Discurso, Mídia e Gênero, pela Universidade de Toulouse, na França, e Kaliandra Alves Dias, jornalista e pós-graduanda em Gestão de Marketing.
Primeira repórter esportiva de rádio em Alagoas, Lídia conta que o número reduzido de mulheres em algumas editorias está relacionado à divisão sexual do trabalho e à lógica de espaços ditos “para homens” e “para mulheres”.
“O esporte, notadamente o futebol, é palco dessa discriminação que começa já na infância: bola para menino, boneca para menina; escolinha de futebol para eles, balé para elas”, explica. Ainda segundo Lídia, as mulheres são vistas como destinadas para áreas tipificadas femininas, como, por exemplo, cuidado e beleza.
Lídia conta que o jornalismo reproduz uma lógica misógina. Além disso, recorda que a prática do futebol, assim como de outras modalidades, foi proibida às mulheres até 1979. A pesquisadora pontua que um dos fatores que explica o baixo número de mulheres na área esportiva seria o “machismo de ponta a ponta: desde a proibição até a reprodução dessas ideias sem nenhum respaldo, como: ‘mulher não entende de…’, ‘mulher não sabe jogar…’ e ‘a voz da mulher não combina com (narração, comentário ou reportagem)’”.
“Foi sendo criado um cenário em que não havia nem como sonhar em ocupar espaços pela inexistência de outras mulheres a serem admiradas, seguidas ou, até mesmo, refutadas”, explica a pesquisadora.
A Beta Redação também conversou com a jornalista e pós-graduanda em Gestão de Marketing Kaliandra Alves Dias, conhecida como Kaka, idealizadora do portal “Futebol por Elas” — FPE. Como o nome indica, a produção de conteúdo jornalístico esportivo no portal é gerida, exclusivamente, por mulheres. “Sempre tive vontade de participar de sites e blogs esportivos e percebi que nós, mulheres, tínhamos pouco espaço e poucas oportunidades”, relata Kaka ao explicar a motivação para a criação do FPE.
A ideia do “Futebol por Elas” surgiu em 2015. Na época, Kaka começou a constituir uma equipe totalmente feminina, motivada pela invisibilidade das mulheres em outros espaços midiáticos. “Iniciamos a equipe com três mulheres (quatro contando comigo). Começamos a convidar as meninas que eram acadêmicas para dar continuidade ao site”, relembra. De acordo com a idealizadora, atualmente, o FPE possui 30 redatoras distribuídas em oito regiões do país.
“Não seria apropriado porque eu era mulher”
Tanto Lídia quanto Kaka relataram à Beta Redação episódios de machismo sofridos durante trabalhos em coberturas de futebol. Em um jogo pela Divisão de Acesso, disputado em 2018, na cidade de Erechim, Kaka relata que precisou praticamente implorar à Brigada Militar (BM) para registrar boletim de ocorrência contra os insultos vindos da arquibancada. “Lembro que quando ouvi os torcedores, a primeira coisa que fiz foi ir em direção ao policiamento do estádio”. De acordo com Kaka não foi possível identificar os culpados e que, tanto o presidente do clube mandatário, quanto a BM, disseram que seria impossível gerar o boletim de ocorrência.
“Tive que insistir e, após longos minutos, consegui fazer o registro dentro do estádio. Foi bem frustrante. A partir deste dia comecei a utilizar fones de ouvido quando ia ao estádio”, relata.
A pesquisadora Lídia nunca esqueceu as falas preconceituosas de seu chefe durante a cobertura da Copa do Mundo na França, em 1998.
“Disse que não me escalaria mais para a cobertura da Copa na França porque dividiriam apartamento com colegas de outras emissoras e não seria apropriado porque eu era mulher. ‘As esposas podem não gostar’ e ‘não pega bem’, foram algumas das explicações”, relata a jornalista.
Segundo a professora e pesquisadora Lídia, infelizmente essas experiências se repetem até hoje. “Da cantada, passando pelo convite para jantar, da ‘piada’ imprópria, dos xingamentos em palavrões gritados por torcedores, das insinuações de colegas sobre fontes, das fofocas sobre a vida pessoal, mas também das impossibilidades de viagens, pautas, coberturas…”. São inúmeras as formas de agressões sofridas pelas mulheres no contexto do jornalismo esportivo.
Com a finalidade de mapear como essas questões de gênero afetam o desempenho das mulheres no exercício da profissão jornalística, em 2017, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e a Gênero e Número realizaram pesquisa inédita no Brasil, intitulada “Mulheres no Jornalismo Brasileiro”.
Segundo a pesquisa, 83,6% das respondentes já sofreram algum tipo de violência psicológica, 65,7% já tiveram sua competência questionada e 64% já sofreram abuso de poder de chefes ou fontes. Além disso, 86% das mulheres entrevistadas já vivenciaram algum tipo de discriminação de gênero no trabalho a oportunidades de crescimento profissional, distribuição de tarefas ou definição de salários.
Durante os trabalhos no jornalismo esportivo, especificamente no futebol, Kaka reforça o que é apontado na pesquisa e destaca a necessidade de fazer sempre mais, além de ter que provar que sabe mais em comparação aos seus colegas homens. “Principalmente em relação a comentários sobre desempenho, tática e também contratação de jogadores. No blog, essa cobrança não é tanta. Mas quando se trabalha em um jornal impresso de um município do interior, você precisa provar a sua capacidade todos os dias. E isso não é apenas relacionado às matérias produzidas, como também à convivência com os colegas de trabalho”, explica.
O jornalismo e as mulheres
Mudar esse cenário, segundo Lídia, é responsabilidade de todas as esferas. “São espaços feitos por homens e para eles mesmos. Uma revolução precisa acontecer, e logo, desde a estrutura física desses espaços. Costumo contar sempre que tive cistites por repetição, porque precisava prender o xixi quando era repórter de campo. Não havia banheiro feminino para jornalistas. Continua assim em muitos estádios. E vai além, colegas de profissão, dirigentes, torcedores e atletas precisam ser enfrentados, questionados preventivamente, sempre que casos de assédio acontecerem”, relata.
A pesquisadora também aponta a necessidade de se falar de forma aberta e ampla sobre o assunto, se não “seguiremos fortalecendo a lógica ‘de que basta força de vontade’, ‘de que quem quer consegue’, ‘que é uma questão de talento e persistência’, que é, inclusive, reproduzida por algumas mulheres na profissão”, explana. “Sensibilizar, inclusive as poucas mulheres que lá estão, para que não seja uma questão individual é uma pauta de todas e de toda a sociedade. Só assim muda”, finaliza.
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