Garrincha — Picardia nos subúrbios da bola

Se sentimos saudade do que não vivemos, é porque Garrincha fez tanta gente feliz que queríamos ser felizes com ele também

Bruno Rodrigues
Futebol Café
4 min readJun 18, 2018

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Garrincha, por Igor Bertolino do projeto De Classe

Você já sentiu saudade de algo que não viveu? Pois eu sinto saudades dos grandes pontas do futebol brasileiro. Quando comecei a acompanhar futebol, a fixação já era o camisa 10, o centroavante, os volantes brucutus — mais de um, se fosse possível. Quando os pontas ressurgiram, ao menos aqui com a camisa dos nossos clubes, voltaram numa versão piorada, bem mais pobre.

São as extremidades do dígito 3 na prancheta que marca, com canetas coloridas e setas, o tal 4–2–3–1. Na carteira de trabalho desses jogadores, registra-se a divisão de funções a serem exercidas: atacante e secretário do lateral. Se antigamente os pontas é quem mandavam nas linhas laterais do campo, hoje são apenas subordinados do jogo e da própria linha de cal.

Garrincha foi o que foi porque subordinava o adversário. Fazia ele andar pra trás, às vezes pro lado, quando parecia que ia tropeçar e quem quase tropeçava eram os defensores, sem que a bola saísse do lugar. “Você vai ser enganado agora”, e pimba! Criava-se a graça de um falso-drible que muitos chamariam de inútil, mas que era e ainda é lindo.

E mesmo protagonista, não tomava as rédeas do espetáculo porque queria aparecer. Era espetacular porque divertia, e se divertia.

O ponta é o único jogador que faz o torcedor levantar sem que haja, necessariamente, uma chance de gol. Até mesmo os pontas ruins. Quando pegam a bola rente à linha e começam a partir para cima do lateral, o cara ao lado se levanta, o outro ao lado dele se levanta também e cria-se um ambiente encorajador para o todo, que de pé assiste ao desfecho do lance.

Fico imaginando como eram as gerais do Maracanã, em que o povo conseguia até sentir o cheiro da grama de tão próximo. O Pacaembu dos grandes tempos, dos grandes ponteiros. Era o dito cujo do ponta ali, do seu lado, perto de você, uma sensação de que podia ser tocado. E o maldito ponta adversário, de quem você queria — e quase conseguia — puxar a camisa pra impedir um bom ataque.

Para Garrincha, o cidadão do lado de lá era só mais um João. Vários Joões formavam um Madureira, não importa se falavam sueco ou tinham sotaque gaúcho. O futebol para ele era uma grande festa, para a qual todos eram convidados, sem restrições. Eram tempos em que o ingresso não precisava ser anunciado como popular, porque popular era o futebol.

Garrincha tratava tão bem a bola porque a bola era “ela”. Ídolo daquele Botafogo de estrelas nada solitárias. Solitário mesmo, só ele, apesar das tantas mulheres, de seu incontrolável ardor pelas fêmeas. Não resistia a uma pelada, às vezes de futebol.

Mas fez muita gente feliz, e acho que levou essa satisfação consigo para o outro plano. Merecia levar, pelo menos.

Do saudosismo que tanto critico, compartilho secretamente apenas um ou outro. Entre eles, a saudade de Garrincha e do ponta que alegrava o espetáculo. Queria ter sido feliz com ele como tantos foram antes de mim.

Este é o segundo texto da série inspirada nos perfis de craques mundiais que Eduardo Galeano escreveu em seu livro “Futebol ao Sol e à Sombra”. Craques que marcaram a história das Copas do Mundo e que irão marcar presença no Futebol Café durante o Mundial da Rússia. Textos publicados: Obdulio; Maradona; Cruyff; Yashin; Müller

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