Müller — O artilheiro robô

Muito antes de o gramado do Mineirão virar passeio, os alemães já tinham sua máquina de fazer gols

Bruno Rodrigues
Futebol Café
4 min readJul 17, 2018

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Gerd Müller, por Igor Bertolino do De Classe

Toni Kroos rouba a bola na intermediária e toca para Khedira. O alemão de sangue tunisiano devolve para o companheiro, que só chapa o esférico para o fundo da rede. Gol. Virou passeio! E as memórias daquele dia, tristes para muitos e boas para outros muitos, ainda ecoam pelos cantos do enorme Brasil.

O que se viu naquela tarde de julho, em 2014, foi apenas a versão contemporânea e otimizada de uma máquina, cujas engrenagens trabalhavam com a precisão de relógios suíços para produzir gols, gols e mais gols. A versão original e rudimentar surgiu nos anos 70, com a diferença de que os gols, gols e mais gols não se espalhavam por diferentes pés. Eram várias engrenagens trabalhando por um só produto final: os gols de Gerd Müller.

Der Bomber, como ficou conhecido, bombardeou defesas a rodo com as camisas da seleção e do Bayern de Munique. Chegou a marcar 80 vezes em um só ano, recorde entre os futebolistas-robôs, superado só por extraterrestres que recentemente se incorporaram ao mundo do futebol.

Quando começou a carreira em um modesto clube bávaro, dedicava-se também por doze horas diárias numa fábrica têxtil. Ao lado de máquinas, mas é claro. Ouviu de seu treinador à época que não chegaria longe e deveria se dedicar a outra coisa. Foi o que fez. Largou a fábrica, e triunfou no futebol.

Fez 13 gols na história das Copas do Mundo. O mesmo número de sua camisa na Mannschaft. Coincidência só para quem acredita nelas. Não para Müller, programado para marcar como um ciborgue exterminador da grande área.

Seu recorde em Mundiais foi superado primeiro por Ronaldo, depois por Miroslav Klose, polonês anexado para o lado de lá. Porque os alemães não poderiam perder esse território. Recuperaram o recorde e recuperaram com glória, levantando também a taça dourada dos campeões que o mesmo Bombardeiro havia levantado quatro décadas antes. Nas suas mãos, o troféu era apenas consequência. Sua grande procura eram mesmo os gols.

Há quem diga que Müller mostrava, no campo, seu lado mais humano. Deixava de lado a frieza alemã e deixava-se levar pelo sangue quente dos lobos que correm atrás da caça como ele corria atrás das bolas certas.

Eduardo Galeano foi um desses que enxergou o lado humano em todos. Conseguia perdoar os erros dos outros porque não eram crimes, eram simplesmente erros. Como fez quando escreveu sobre Maradona, por exemplo. Sufocado pelo sucesso de seus próprios feitos, refugiado na cocaína e na falsa alegria, findado na efedrina e preso em sua eterna tristeza.

Há traço mais humano que o erro, consequência inerente da nossa imperfeição? Foi capaz, inclusive, de ver humanidade nos gestos de Müller.

A máquina, uma máquina, o Matador se fosse argentino ou uruguaio. Bombardeiro só porque era alemão, e isso dispensa maior contexto.

Vou cometer o sacrilégio de discordar de você, Eduardo. Müller não é um ser humano como outros, com obsessões humanas. A dele, pensamos muitos de nós, era o gol. Mas quando eram muitos gols, e esses gols não paravam de acontecer, é porque havia deixado de ser normal. Humano.

No máximo, de forma mais romântica, pode-se dizer que o atarracado bávaro foi um apaixonado pela obsessão da artilharia. Tivesse nascido no Realengo e jogado no futebol carioca quando o Maracanã era o Maracanã, morreria ali mesmo, no pasto verde, vítima de overdose amorosa vendo suas bolas serem envolvidas pelo abraço carinhoso do barbante.

Irresistível, no fim das contas, era resistir a Gerd Müller.

Se nós, brasileiros, adotamos desde 2014 o mantra do sofrimento de que todo dia é um 7 a 1 diferente, imagine se desses sete gols, todos eles fossem de um homem só? É o que poderia ter acontecido caso as circunstâncias históricas tivessem aproximado Müller daquela Alemanha e daquele Brasil.

E então teríamos a certeza de algo que há tempos tememos ver acontecer: que elas, as máquinas, venceram. Sorte a nossa, portanto, o passar do tempo, separando por quatro décadas o que poderia ter sido o golpe definitivo.

É por essas e outras que ainda se acredita na humanidade. Mesmo achando que de humano, Müller só tinha uma coisa: as palavras de Eduardo Galeano.

Este é o sexto texto da série inspirada nos perfis de craques mundiais que Eduardo Galeano escreveu em seu livro “Futebol ao Sol e à Sombra”. Craques que marcaram a história das Copas do Mundo e que irão marcar presença no Futebol Café durante o Mundial da Rússia. Textos publicados: Obdulio; Garrincha; Maradona; Cruyff; Yashin

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