Yashin — Enrolado na própria teia

O goleiro de camisa negra e boina foi um dos maiores da história, mas viu sua vida escorregar pelas mãos e entrar no fundo do gol

Bruno Rodrigues
Futebol Café
4 min readJul 12, 2018

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Lev Yashin, por Igor Bertolino do projeto De Classe

Eduardo Galeano era suspeito para falar de Lev Yashin. O lendário goleiro soviético usava boina, era boêmio e, ainda por cima, filiado ao Partido Comunista. Como não gostar do camarada, não é mesmo Eduardo?

Yashin entrou para a história como o melhor goleiro de todos os tempos. Ou, no mínimo, como o primeiro goleiro moderno do futebol eterno. Já saía da área para cortar lançamentos muito antes de atacantes saberem que arqueiros tinham pés e podiam usá-los.

Começou no hóquei, onde a bola é chata e o jogo também, mas brilhou e virou ícone no futebol. Fez mais de 700 jogos com a camisa do Dínamo de Moscou, porém a camisa que tornou icônica, a da seleção soviética, vestiu pouco mais de 70 vezes.

Negra, com o CCCP no peito, um símbolo do futebol socialista que hoje pode ser comprado em real, dólar ou euro, além de cartões de débito e crédito. Josef Stalin se revira no túmulo.

Certa vez veio ao Rio de Janeiro jogar e, depois dos compromissos com a bola, se pôs a andar pela praia e admirar as belezas cariocas, as naturais e as que caminham. Disse que estar de férias na cidade maravilhosa e tomar banho de mar era melhor que ser goleiro.

Comemorou como um gol o fato de o homem ter viajado pelo espaço. E de esse homem ter sido soviético. “A alegria de ver Yuri Gagárin no espaço só é superada pela alegria de uma boa defesa de um pênalti”.

Ou seja, que entre as grandes alegrias de Yashin, a de ser camisa 1 e agarrar o couro estava reservada em lugar especial no coração.

A lenda diz que defendeu mais de 150 penalidades. Só que os números carecem de fontes confiáveis. Não por ele, tão confiável a ponto de ter sido goleiro titular de um mesmo clube por mais de 20 anos, mas pelas informações frequentemente manipuladas pelo governo soviético, o único que Yashin viveu, viu e sentiu.

Fora do campo, não resistia a um cigarro e um copo de vodca. No plural, para ser mais exato. Só não levava para dentro do gramado pois, bem, não podia. Ou não pensou nisso.

Tenho certeza que Galeano escreveu sobre Yashin porque não somente foi grande goleiro e futebolista, mas foi ser humano. E errou como tal, como quando sofreu gol olímpico na Copa do Mundo de 1962, contra a Colômbia. O único gol olímpico até hoje na história dos Mundiais.

Uma figura de desejos mundanos como os que temos eu e você. E assim foram Garrincha, Maradona (o “deus sujo”) e tantos outros homens comuns que o uruguaio retratou brilhantemente em seu livro. A diferença é que eles pegaram o salto e entraram para a eternidade.

Viveu os últimos anos de sua vida sem uma perna, a esquerda. A mesma que aparece no cartaz da Copa do Mundo sem a proteção da joelheira. Porque a esquerda, meus caros, vai à luta. E se sacrifica. No caso de Yashin, sacrificada por uma tromboflebite. Nome complicado, problema maior ainda.

Morreu aos 60 anos, vítima de câncer no estômago. Enrolou-se nas próprias teias, as mesmas que um dia envolveram os adversários e seus chutes infrutíferos contra a meta do goleiro de preto e de boina.

Seu revés mais doloroso na vida foi a falta de cuidado com a própria saúde. Essa, Lev Yashin viu passar por suas mãos e entrar no fundo do gol.

Este é o quinto texto da série inspirada nos perfis de craques mundiais que Eduardo Galeano escreveu em seu livro “Futebol ao Sol e à Sombra”. Craques que marcaram a história das Copas do Mundo e que irão marcar presença no Futebol Café durante o Mundial da Rússia. Textos publicados: Obdulio; Garrincha; Maradona; Cruyff; Müller

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