Garrincha — Picardia nos subúrbios da bola
Se sentimos saudade do que não vivemos, é porque Garrincha fez tanta gente feliz que queríamos ser felizes com ele também
Você já sentiu saudade de algo que não viveu? Pois eu sinto saudades dos grandes pontas do futebol brasileiro. Quando comecei a acompanhar futebol, a fixação já era o camisa 10, o centroavante, os volantes brucutus — mais de um, se fosse possível. Quando os pontas ressurgiram, ao menos aqui com a camisa dos nossos clubes, voltaram numa versão piorada, bem mais pobre.
São as extremidades do dígito 3 na prancheta que marca, com canetas coloridas e setas, o tal 4–2–3–1. Na carteira de trabalho desses jogadores, registra-se a divisão de funções a serem exercidas: atacante e secretário do lateral. Se antigamente os pontas é quem mandavam nas linhas laterais do campo, hoje são apenas subordinados do jogo e da própria linha de cal.
Garrincha foi o que foi porque subordinava o adversário. Fazia ele andar pra trás, às vezes pro lado, quando parecia que ia tropeçar e quem quase tropeçava eram os defensores, sem que a bola saísse do lugar. “Você vai ser enganado agora”, e pimba! Criava-se a graça de um falso-drible que muitos chamariam de inútil, mas que era e ainda é lindo.
E mesmo protagonista, não tomava as rédeas do espetáculo porque queria aparecer. Era espetacular porque divertia, e se divertia.
O ponta é o único jogador que faz o torcedor levantar sem que haja, necessariamente, uma chance de gol. Até mesmo os pontas ruins. Quando pegam a bola rente à linha e começam a partir para cima do lateral, o cara ao lado se levanta, o outro ao lado dele se levanta também e cria-se um ambiente encorajador para o todo, que de pé assiste ao desfecho do lance.
Fico imaginando como eram as gerais do Maracanã, em que o povo conseguia até sentir o cheiro da grama de tão próximo. O Pacaembu dos grandes tempos, dos grandes ponteiros. Era o dito cujo do ponta ali, do seu lado, perto de você, uma sensação de que podia ser tocado. E o maldito ponta adversário, de quem você queria — e quase conseguia — puxar a camisa pra impedir um bom ataque.
Para Garrincha, o cidadão do lado de lá era só mais um João. Vários Joões formavam um Madureira, não importa se falavam sueco ou tinham sotaque gaúcho. O futebol para ele era uma grande festa, para a qual todos eram convidados, sem restrições. Eram tempos em que o ingresso não precisava ser anunciado como popular, porque popular era o futebol.
Garrincha tratava tão bem a bola porque a bola era “ela”. Ídolo daquele Botafogo de estrelas nada solitárias. Solitário mesmo, só ele, apesar das tantas mulheres, de seu incontrolável ardor pelas fêmeas. Não resistia a uma pelada, às vezes de futebol.
Mas fez muita gente feliz, e acho que levou essa satisfação consigo para o outro plano. Merecia levar, pelo menos.
Do saudosismo que tanto critico, compartilho secretamente apenas um ou outro. Entre eles, a saudade de Garrincha e do ponta que alegrava o espetáculo. Queria ter sido feliz com ele como tantos foram antes de mim.
Este é o segundo texto da série inspirada nos perfis de craques mundiais que Eduardo Galeano escreveu em seu livro “Futebol ao Sol e à Sombra”. Craques que marcaram a história das Copas do Mundo e que irão marcar presença no Futebol Café durante o Mundial da Rússia. Textos publicados: Obdulio; Maradona; Cruyff; Yashin; Müller