13 personagens (+1) — "13 Reasons Why"

Frederico Mattos
12 min readApr 12, 2017

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Autópsia psicológica dos personagens

Por Frederico Mattos, psicólogo clínico

Alguns avisos importantes, esse texto é baseado na série televisiva, certamente o livro contém mais aprofundamento e características próprias.

Se você busca percepções maniqueístas (mocinho-bandido) sobre a personalidade humana se sentirá frustrado.

E, bem, esse texto contém spoilers, mas não vou me deter em contextualizar o enredo, você provavelmente já viu toda a série.

Essa série contempla tantas questões sistêmicas, temas que afetam não só adolescentes, mas o tecido invisível de nossas crenças sobre a vida e a morte, o merecimento e a aceitação, que reduzir o assunto a “manual de suicídio” é reduzir o efeito de discussão global que a série suscitou. Se a cena do suicídio fosse uma descolada de um contexto eu concordaria com as críticas que tenho lido, mas não vi isso. Ao abrir a discussão sobre a personalidade dos personagens quero trazer outros temas importantes que podem ter ficado margeados pela ideia de que ao tratarmos de suicídio estamos incentivando-o.

1. Justin Foley

Bonito, charmoso, divertido e atormentado. Nunca conseguimos entrever os dramas de uma pessoa carismática. Toda pessoa que atrai o olhar para si de alguma forma espelha uma carência brutal não atendida.

Justin encarnou bem a contradição de vítimas que se tornam perpetradores. De uma mãe passiva, negligente e comparsa de uma relação tóxica criou-se o contexto para esse órfão de pais vivos lentamente se aliciar no comportamento soberbo e abusivo do "amigo" Bryce.

Quando Hannah afirma que ele a magoou profundamente era a reverberação de uma ferida que ele próprio não conseguia estancar. Sua perspectiva machista e que objetifica as pessoas teve o seu ponto alto no consentimento do estupro da própria namorada assim como na permissividade da exposição da intimidade da personagem principal. Episódio que deflagrou o drama.

2. Jessica Davis

Acostumada a obter aplausos e ser o centro da ação, Jessica se apoiou na carência social de Hannah até que pudesse alçar sua popularidade na escola.

Ela age num looping de culpa e afastamento, quando percebe que suas ações machucam Hannah. Muitas pessoas vivem esses dilemas com a sua autoimagem, querem ao mesmo tempo sustentar a ideia de que são generosas ao mesmo tempo que cultivam comportamentos egoístas. Ao querer se afastar sente culpa, mas para se justificar acusa Hannah de atacá-la e assim criar uma rivalidade imaginária para poder sair da relação com boas explicações para si mesma.

A rigidez do pai militar abre espaço para uma personalidade lábil, que precisa manter a aparência de uma personalidade agradável para a família e outra permissiva e auto-destrutiva entre os amigos.

Como ela não se sentia confortável com suas próprias convicções, e avaliações da vida diante de um estupro sofrido considerou seriamente que seu instinto estivesse errado. Depois de anos de auto-crítica destrutiva não deu ouvidos para a sua voz interna alertando que algo estava muito errado. O alcoolismo surgiu como um apaziguador de angústia (como fracassadamente se propõe a ser) até que ela se defrontasse com o pior das verdades dolorosas.

3. Alex Standall

Se olhado superficialmente o pai policial parece ser atento com o filho, mas as falas são sempre reforçadoras de um estereótipo de filho machinho conquistador, coisa que Alex abominava.

Para ser aceito no grupo dos populares pagou um preço mais alto do que previu, de ser negligente com a amiga época de vacas magras, Hannah.

No entanto, ele nunca perdeu o cinismo sobre o script que tentavam implantar nele, do garoto bem sucedido. Num momento decisivo da série ele foi o único capaz de elencar todos os podres dos amigos, expôs as feridas de todos os acusados que tentavam tramar contra Hannah, e referiu-se a si mesmo como um "perdedor patético e fraco". Sua coerência brutal mal conduzida pelo desejo de pertencimento infelizmente deixou ele carregado de remorso e ações destrutivas. Nem todos notam, mas ele já estava apresentando comportamentos de risco em aparentes acidentes, ao "cair" na piscina, dirigir em alta velocidade, se meter numa briga, ou seja, ele dava sinais do derradeiro e fatal suicídio.

4. Tyler Down (foto)

Os inadequados sempre buscam uma posição social de utilidade para poderem se encaixar, não raro os vemos conduzindo a churrasqueira, servindo canapés ou usando ferramentas que os desobriguem de interagir de verdade em eventos sociais. Tyler encontrou na fotografia um modo de estar em todos os lugares garantindo sua invisibilidade.

O stalker é sempre um exibicionista que se projeta no objeto de adoração para sorver passivamente o status do ídolo.

Com sua inabilidade social imaginou que invandindo a privacidade de seu amor platônico, Hannah, poderia ter alguma chance com ela. É a mesma relação bajuladora de idolatria em que o fã se vê dono do ídolo por estar há muito tempo amando-o à distância. Quando o objeto de exaltação desaponta o escravo, ele se sente traído e legitimado a puxar o tapete vermelho que antigamente abria para o seu senhor. O ressentimento de Tyler foi criado pela própria incapacidade em se aproximar de quem gostava.

5. Courtney Crimsen

Ser correto, diplomático e admirável tem um preço alto para Courtney que encarnou tanto a imagem da perfeição que não poderia assumir sua homossexualidade em público.

Mesmo filha de pais homossexuais seu preconceito fica camuflado em "medo de criar teorias da conspiração sobre os pais adotivos gays influenciarem sua sexualidade".

Ela leva sua necessidade de proteger a reputação intocável ao extremo, corta radicalmente Hannah de sua convivência e tenta descredibiliza-la para não ser associada a si.

6. Marcus Cooley

Ele encarna bem o comportamento usual do menino que é rejeitado após uma abordagem invasiva e arrogante e culpa quem o rejeitou.

Para não se sentir inferiorizado, Marcus deprecia Hannah, até que ele não se sinta tolo por tê-la desejado "achei que você era fácil".

Como tem uma imagem interna de garoto perfeito não consegue harmonizar suas ações e sua reputação então prefere seguir tramando contra Hannah até que ele prove para si que não fez nenhum mal à ela.

7. Zach Dempsey

Se uma pessoa é bondosa no seu círculo familiar isso não a impede que possa ser, como Alex descreveu "um idiota privilegiado que faz coisas cruéis e estúpidas mesmo que tenha um coração decente".

Não raramente as pessoas boas costumam fazer coisas detestáveis por se sentirem blindadas moralmente e previamente justificadas em nome de seus bons modos. Zack entra no tipo dos que destruíram a alegria de Hannah, porque não teve timming, sensibilidade, paciência e tato para notar que ela não era uma garota inacessível. Por ter uma auto-imagem de bom menino sensível travestido de bad boy, ele foi afobado, e não notou que ela estava machucada. Diante da mínima contrariedade ele foi reativo e seguiu apoiando negligentemente situações abusivas contra ela. Vale notar as vezes que fingiu não ver Justin pedindo ajuda enquanto se dedicava à familia.

Parece que a mãe de Zach, de tom altivo e rígido moldou bem o seu garoto para ignorar as necessidades dos outros se elas afetassem os interesses próprios.

8. Ryan Shaver (Poema)

Apesar de Ryan despertar menos interesse na trama, Hannah o qualifica como um dos que roubaram sua alegria. Isso não é uma coisa pequena quando se vive num mar de presunção e competitividade.

Hannah não conseguiu ver através da aparente bondade e incentivo poético a arrogância estética de Ryan. Ele também foi abusivo quando negligenciou o pedido dela de que seguisse anônima enquanto experimentava seus primeiros mergulhos literários.

Seja por inveja ou senso de inferioridade (por se sentir alvo de preconceito sexual) ele desferiu um ataque que chegou em má hora. Deixar de respeitar a privacidade intelectual dela também é uma forma de abuso.

9. Sheri Holland

Existem os que pecam por fazer de mais e outros por fazer de menos. Sheri, mesmo que justificada pelo medo deixou o circo pegar fogo e contribuiu para a dose de desilusão de Hannah sobre a bondade humana.

É importante pensar como o medo por si mesmo conduziu a maior parte dos personagens. Nós também nos ocultamos em preocupação e receio para invadir demais ou nos envolvermos de menos nas questões dos outros.

Na série, a covardia de Sheri custou uma vida e um idoso sequelado, ao qual ela tentou compensar, mas sem efetivamente assumir que foi a desencadeadora de eventos trágicos. Num efeito em cadeia é sempre o pequeno detalhe que ignoramos que tira na nossa vida do trilho interior.

10. Clay Jensen

Clay é o típico bom menino, ingênuo, até alheio aos outros e preso numa timidez patológica associado com um quadro de Síndrome do Pânico (motivo pelo qual ele não ouviu todos os áudios numa tacada só). Esse despreparo social, vindo de uma uma mãe superprotetora o leva a ter vários comportamentos negligentes e até descuidados com Hannah, por pura inabilidade de percepção social.

Mas apesar de sua comunicação ruim e seus rompantes de tímido-orgulhoso ele vai se revelando em cada episódio a pessoa combativa e corajosa que se arrepende de não ter agido antes.

É curioso notar como a sensibilidade social é valiosa nos relacionamentos. Os garotos abusivos não sabem interpretar o não das garotas como um NÃO. Já Clay, mesmo no contexto de consentimento sexual entre eles, não sabe perceber que o não de Hannah é um "não seja reativo, tome fôlego comigo que meu surto sobre você vai passar". Uma garota tem todo o direito de interromper um momento sexual se está se sentindo bloqueada, e o excesso de zelo foi precioso em respeitá-la e não cruzar uma linha delicada. Mas ele poderia ser menos afobado, permanecer por perto, respirar fundo. Infelizmente esse episódio disparou em ambos um distanciamento fatal.

É importante notar que o comportamento bondoso de Clay não é aleatório, diferente de outros pais na série, os pais dele são zelosos e atentos à ele, abrem espaço para conversas, tentam não ser invasivos, mesmo quando são, até nos momentos mais tensos e indecifráveis do jovem.

No mais, ele soube crescer nos desafios e transformar sua rigidez moral em resiliência para enfrentar os abusos do grupo que molestou sua querida Hannah.

11. Bryce Walker

A combinação de permissividade parental, prosperidade deseducada (afinal nem toda riqueza é abusiva), cultura de winner-loser, machismo e uma personalidade predatória transformam Bryce no tipo de pessoa irresistível (pelo prestígio e proteção) e temerária de se ter por perto.

Sua frieza e indiferença pelos outros precisa ser camuflada em simpatia para obter serviçais-amigos-interesseiros, por isso ele faz bem o jogo do bate e assopra com todos os amigos.

O comportamento típico do macho alpha de punir e brincar com os colegas (para submetê-los aos seus desmandos) vai corroendo a autoconfiança de todos que o cercam. O pacto de protegê-lo vem dessa mentalidade de famiglia italiana de gângster, morrer até o fim pelo líder, mesmo que ele seja o primeiro a sacrificar os outros em benefício próprio.

Como ele próprio abdica de subjetividade e questionamentos morais, toma tudo como sua propriedade pessoal e desenvolve o pensamento mágico próprio dos abusadores, o de projetar os seus desejos nos outros para depois alegar que houve consentimento de suas vítimas. Ele misturado agressividade com um jogo erótico que só existe na cabeça dele. Em sua mente desfigurada não há estupro, mas uma percepção megalomaníaco de que ele é o centro de desejo do mundo.

12. Kevin Porter (Conselheiro)

Porter soa como um burocrata da ajuda, parece ajudar, mas até o limite de seus interesses profissionais, quer salvaguardar seu emprego e a instituição que trabalha.

Está pouco afeito às ambiguidades juvenis e espera sempre respostas prontas ao invés de investigar cuidadosamente os segredos que rondam os jovens da escola. Como ele pôde ser ingênuo ao achar que diante de questões tão delicadas os jovens sairiam abrindo o jogo para um estranho? Se uma questão não está clara nem para eles como podem se abrir?

Para alguém nessa posição é preciso menos formalidade, distanciamento e ensimesmamento, e mais proximidade, interesse genuíno e desprendimento protocolar-institucional. Porter falhou em todos os quesitos, representanto bem a posição supostamente isenta das instituições escolares.

13. Tony Panilla

Tony é um oásis de sabedoria e sensibilidade no meio de tanta incapacidade em perceber as pessoas de verdade. Curiosamente a sua educação latina e até austera criam uma personalidade forte e paradoxamente sensível tanto quanto leal.

Ele é aquele irmão mais velho que todo mundo gostaria de ter em dias de crise. Sua sabedoria contra-intuitiva (unhelpful Yoda) resolve as coisas com silêncio, caminhadas, comida, abraços, elogios, exploração na natureza, falas cortantes e tudo isso sem perder o timming de confrontações dolorosas e olhar amistoso.

É possível especular que sua própria homossexualidade o tenha exposto à questões de vergonha e medo desde cedo e isso o tenha sensibilizado para assuntos mais sérios do que os jovens costumam lidar. Essa maturidade precoce que não é impecável (e nem precisaria ser) nos aponta para o tipo de cuidado primoroso que a série escancara como contraponto de todo o egoísmo dos demais personagens.

(+1). Hannah Baker

Como não se sentir devastado emocional e socialmente depois de múltiplas rejeições, julgamentos, agressões físicas (Jessica), verbais (Zack e outros), sociais (Tyler e Ryan) e sexuais (Justin e Bryce)?

Hannah suportou até demais, mérito de uma personalidade tecida por uma grande inteligência, sensibilidade, delicadeza e prestatividade. Os pais, apesar de estarem circunstancialmente passando por momentos difíceis, eram amorosos, participativos e apoiadores dos sonhos da filha. Essa ilha de eventos que solaparam os sonhos de uma jovem interiorana e nostálgica engoliu seu histórico familiar relativamente ajustado e acolhedor. Os pais equilibravam bem a dança de conduzir e soltar a filha para descobrir o próprio percurso.

Eles ficaram cegos com os problemas financeiros e tiveram o azar de não notar como a filha ia ficando devastada. Ela embarcou nessa narrativa de que também era um ônus financeiro e considerar que a sua morte poderia até ser um alívio para os pais.

O ciclo em que Hannah entrou é próprio de um viés de autoconfirmação destrutiva, quanto mais era agredida, mais se achava não merecedora de boas coisas e pessoas. Sem perceber constatava crenças sobre si mesmas não verdadeiras até cruzar a fronteira de suas convicções e redefinir-se como suja e irrecuperável.

Com isso se tornou uma presa ainda mais fácil nas mãos do predador Bryce, motivo pelo qual, ao invés de fugir ou lutar (se é que realmente seria possível) ficou paralisada, congelada emocionalmente diante da sensação surreal de que o absurdo de um estupro estava acontecendo de verdade.

Na adolescência é muito difícil resistir sozinho numa percepção positiva de si mesmo quando todos dizem o contrário.

Falar de culpa (por ser vítima), covardia (pelo suicídio) e melodrama (nas reações) no caso da Hannah é o tipo de julgamento equivocado que fazemos o tempo inteiro sobre pessoas que passam por condições crônicas de sofrimento psíquico e social. É sempre fácil se projetar no lugar de pessoas que passam por situações-limite e dizer "eu faria diferente", sendo que nossa capacidade de prever nossas próprias reações carece de um ajuste enorme.

Somos menos humanitários quanto gostamos de acreditar. A série "13 Reasons Why" nos fisga, pois inconscientemente sabemos que a nossa negligência, apatia cotidiana e egocentrismo social está bem representada em cada um dos personagens. Paradoxalmente, somos a Hannah e ao mesmo tempo os motivos que a levaram à desistir.

E o que todos tinham em comum para não enxergar a morte iminente de Hannah?

Todos estavam presos em suas próprias histórias, justificados pelo senso de autoimportância excessiva e onde se cultivava pouco o cuidado com as pessoas que os cercavam. "Ninguém se importou o suficiente". Nós também não.

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Frederico Mattos

Sonhador nato, psicólogo acolhedor, autor do livro "Maturidade Emocional". Ama ouvir histórias e descomplicar a vida. Escreve no Instagram @fredmattos