Os adolescentes estão mais perversos que antigamente? — “13 Reasons Why”

Frederico Mattos
9 min readApr 10, 2017

--

Como a pós-modernidade pode ter alterado os efeitos do (ciber)bullying

Por Frederico Mattos, psicólogo clínico

Karate Kid (1984)

Outro dia me fizeram uma pergunta que eu não soube responder na hora, mas que já tinha uma resposta internamente:

"Fred, você acha que o bullying é uma coisa nova, pois na minha época (falamos de década de 80–90) isso se chamava infância".

Essa pergunta quase naturalizou a agressividade infanto-juvenil, como se o ritual de passagem para a "vida adulta" de um adolescente passasse por agressão mútua. Algo como "se ele aguentar merece o nosso respeito" à moda das instituições militares.

Nunca escondi de ninguém que fui alvo de bullying por toda pré-adolescência e que no auge da adolescência meu jeito de lidar com isso foi me refugiando em pequenos grupos de garotos que ficavam no limiar do bullying, sem serem vítimas diretas disso.

Esquematizando o bullying podemos contar 7 elementos diretos e indiretos.

  1. O agressor: aquele que provoca, humilha e agride verbalmente, moralmente, sexualmente, fisicamente ou virtualmente.
  2. A vítima: aquele que recebe o agravo.
  3. O apoiador da agressão ativo: aquele(s) que costuma ser o braço direito do agressor, incentivando, colocando lenha na fogueira.
  4. O defensor da vítima ativo: aquele que intervém como elemento de defesa da vítima e impede ou atenua a agressão.
  5. O apoiador da agressão passivo: aquele que tira sarro ou ironiza mentalmente a vítima, num misto de alívio e projeção da raiva sobre a vítima.
  6. O defensor da vítima passivo: aquele que não concorda com a agressão, mas que não sente coragem ou tem habilidades pessoais para intervir.
  7. Agentes sociais: pais, escola, comunidade, sociedade mais ampla que circula apoiando, amenizando ou banalizando a dinâmica direta do bullying.

Outra pergunta fica implícita no questionamento do bullying na atualidade:

As crianças estão mais perversas que antigamente?

Eu me fiz essa pergunta quando ao atender uma garota de treze anos em 2009 que me confessou estar em pânico por uma ameaça do namoradinho

De modo geral as agressões entre crianças e adolescentes sempre existiram, mas não havia nenhum tipo de preocupação em olhar para isso ou atentar para o impacto psicossocial que existiria no desenvolvimento da personalidade de alguém. Mas pensei em 5aspectos que nos ajudarão a ter uma resposta melhor.

1. Adultização das crianças

O crescente interesse sobre a pedagogia e psicologia infantil levou os pais da década de 90 a desenvolvessem uma especial obsessão sobre o bem-estar dos seus filhos. Tudo o que pudesse preparar melhor as crianças a respeito do seu bem-estar físico, social e psicológico seria bem-vindo, mas isso criou uma confusão entre preparação precoce e uma introdução precoce das crianças no mundo dos adultos.

As crianças passaram a ter acesso irrestrito a todo tipo de conteúdo, conversa, interação adulta como se fossem o mesmo lugar democrático. Uma coisa é respeitar o direito das crianças e fazê-las integrar as questões familiares no contexto e linguajar adequado, outra é colocá-las diante de questões mais complexas sem a efetiva capacidade de assimilação por parte delas. As crianças passaram a ser pequenas imperadoras das casas, onde a criança se torna a mandante e centralizadora dos rumos familiares, muitas vezes compensando carências dos pais. [leia mais aqui]

Os agressores não são confrontados em seus desejos

2. Narcisismo

Esse cenário íntimo onde as crianças são supestimadas em sua inteligência e carisma quando transferidos para o ambiente escolar (local de maior incidência de bullying) ganha um agravamento se comparado com à visão anterior (ainda que arcaica) onde os limites eram mais claros (e às vezes abusivos). Ainda existe um comportamento que polarizava com a tirania dos pais das décadas anteriores, não conseguimos chegar num ponto adequado.

Como as crianças são o centro da casa elas passam a tratar as outras crianças à partir da mesma visão egocêntrica que recebe em casa. O problema é que quando as majestades se juntam, aquela que recebeu mais instrumentos de dominação, agressividade e soberba tende a se destacar e se tornar uma potencial agressora.

O agressor, portanto, em muita medida foi legitimado pelos pais a agir de forma abusiva, seja por modelar ou pais (adultos abusivos) ou por ter pais passivos que se submetem à tudo que os filhos exigem.

3. Acesso a referências de poder e violência

O acesso cada vez mais precoce entre as crianças de figuras lúdicas agressivas (em desenhos, video-games, quadrinhos, Youtube) cria um imaginário infantil mais polarizado entre mocinhos e bandidos. Diferente do Tom e Jerry onde o Tom estava caçando o Jerry que dava muitas voltas por cima, hoje o limiar entre mocinhos e bandidos é mais confuso.

O bandido carismático, inteligente, bonito e ao mesmo tempo cruel. Os games que colocam a criança num universo de armas, mortes, sangue e brigas cria um amortecimento na capacidade empática de se colocar no lugar da vítima. As vítimas são descartáveis e geradores de pontos e vitórias virtuais.

Para os adultos a diferença entre o que agride alguém e não agride é mais clara (ou deveria ser), mas na construção psicológica de um jovem do novo milênio essa construção pode não ser tão óbvia. As realidades virtuais que simulavam violência eram menos parecidas com o mundo real, portanto, haviam menos referenciais realistas para se inspirar antigamente.

Pacman não parece muito com a realidade

4. Internet conferiu uma liberdade mal administrada

O poder de expressão que a internet criou também abriu um canal para desejos e ressentimentos reprimidos que toda criança e adolescente carrega. O exercício de expressividade das opiniões é muito maior e uma pessoa que pode ser mais acanhada na vida offline pode se tornar uma tirana virtualmente.

A linguagem violenta e mais ácida online passou a extrapolar para a vida offline e aumentar um grau de agressividade na ironia, nos apelidos, na hierarquização do que é bom ou ruim, aceitável ou não, bonito ou feio. As fofocas (e mentiras/exageros embutidos) se alastram com mais facilidade, pois todos os pares escolares são repórteres das fofocas por meio de fotos, áudios e vídeos.

A velocidade e intensidade (quem conta um conto aumenta um ponto) das informações aumentam os estragos e sequelas diferente do que acontecia em períodos pré-internet. As fofocas vão além dos grupinhos e vazam para uma escola ou comunidade inteira, ou seja, a perversidade não é só medida pela força da agressão, mas pelas ondas indiretas que ela cria.

Já havia soco na cara, mas eram situações mais raras e extremas, por isso virava o evento do ano

5. Globalização gerou empatia

Por outro lado, houve um interesse maior por qual era o lugar da vítima do bullying, pois os diferentes já não eram tão diferentes assim. Antigamente uma pessoa descendentes de japoneses era hostilizada como o "japa", "comedor de pastel", mas hoje a globalização permitiu que as mais diversas culturas mundiais se fundissem (ou tivessem maior visibilidade) num amálgama cultural mais difícil de diferenciar.

Os nipodescendentes já formam grupos virtuais se quiserem se apoiar, o mesmo com os negros, os nerds ou qualquer um que seja uma minoria hostilizada, o que não resolve o problema, mas pode diminuir o senso de segregação, mesmo que reforce um espírito de grupo distinto um do outro. Hoje já é possível perceber com mais clareza as semelhanças dentro das diferenças, pois existem várias tribos para além dos grupos segregários habituais e por esse motivo o interesse no assunto bullying ganhou mais força nos meios acadêmicos e no universo pedagógico. Entender a alteridade diminui o senso de que o outro é alienígena.

Se antes havia um ponto cego e uma naturalização da ofensa, agora ela já não é vista como natural. Então no passado havia bullying também, mas ninguém tinha ferramentas ou percepção social para perceber que as minorias precisavam de apoio e de algum tipo de intervenção. Elas cresciam excluídas e com uma auto-percepção prejudicada e ponto final.

"O mundo está mais fresco hoje, Fred?". Não, é que a agressão fica mais evidente quando ganhamos mais consciência de alteridade, empatia e generosidade e a agressividade fica menos camuflada ou naturalizada.

Surgiu um Sr. Miyagi para intervir e instrumentalizar a vítima

Mas e aí, é ou não é mais perversa?

Não e sim.

Não, no sentido de que a violência era a mesma, mas imperceptível aos olhos vendados para os próprios preconceitos contra crianças-adolescentes acima/abaixo do peso, míopes, baixas/altas ou não-caucasianas.

Sim, a geração atual é mais hostil do que a anterior, da mesma maneira que a sexualidade se mostra com mais intensidade e precocemente (os referenciais de pornografia estão acessíveis para todos) a agressividade também está mais instrumentalizada. Crianças precoces (comparativamente), superestimuladas, idolatradas e instrumentalizadas agridem com mais força, frequência, sofisticação e cada vez mais cedo.

O combate a isso seria então retardar os estímulos, negligenciar as crianças e tirar a tecnologia delas? Talvez esse fosse o caminho mais cômodo e preguiçoso, pois colocaríamos a culpa nos meios que estamos introduzidos e a tecnologia seria o grande malfeitor.

O que seria mais inteligente a fazer caminha em várias frentes. Uma delas é rever como as famílias se reconfiguram de tal forma que exista um equilíbrio de prioridades entre os adultos e as crianças para que elas não se tornem o centro da dinâmica familiar.

Revisitar as prioridades do convívio familiar versus ambiente virtual, com mais conexão emocional de qualidade, olho no olho e da inserção mais adequada do jovem nas tomadas de decisão familiar sem extremos de infantilização ou de adultização.

Os debates precisam se manter abertos para que os próprios adultos repensem sua postura hostil no mundo off e online. Os pais precisam se aproximar do processo de educação que não seja apenas entregar seus filhos para as escolas e imaginar que a instrumentalização intelectual é o suficiente.

13 Reasons Why, a série do Netflix

Uma série aparentemente voltada para adolescentes revela muito de nossa sociedade. O modo como criamos nossos filhos (em especial os meninos) revela seus efeitos mais tóxicos em cada um dos 13 episódios. Quando fazemos vistas grossas para o menino desapontado com a amiguinha e batendo nela por “frustração amorosa”, quando eles são incentivados a agir como pequenos selvagens livres e elas domesticadas para se comportarem (e calarem envergonhadas), a cada condescendência do tipo “isso é coisa de menino”, cria-se um homem emocionalmente permissivo com sua própria impulsividade e futura destrutividade.

Lá adiante ele pode não se converter num criminoso típico, mas num agente de dominação social problemática. Para seguir sendo o príncipe simbólico da mamãe ele tentará ser o rei de todos os lugares, exibido, interrompendo a fala dos outros, tratando todos como loucos (se contrariado) e só ele o certo, surdo para o que o desiluda. A compaixão para com as suas fragilidades de menino (sem impedir de lidar com emoções mais sensíveis), desconstruindo o arquétipo do dono do pedaço, ensinando empatia, generosidade e capacidade de gerenciar frustrações muitas histórias (como as da série) podem ser evitadas. Os homens adultos também podem colaborar inibindo troca de nudes nos grupos dos amigos, são nossas pessoas queridas ali também, quando diminuímos ou julgamos uma mulher estamos abrindo um campo no imaginário coletivo onde tudo é possível contra qualquer uma delas. Muitas coisas não desaguam no suicidio de uma jovem como em #13reasonswhy mas num tipo de falência sutil e coletiva onde morre um pouco da nossa humanidade. Cada um de nós é um agente para estancar essa hemorragia.

Esse é o primeiro texto de uma trilogia

1.Bullying Os adolescentes estão mais perversos que antigamente?

2.Está tudo bem!

3.Os 13 personagens (uma autópsia psicológica)

Gostou do texto? Então clique no botão Recommend ( ), logo abaixo.
Fazendo isso, você ajuda esta história a ser encontrada por mais pessoas.

Para se conectar comigo clique nos links abaixo

Sobre a Vida | Facebook | Instagram | Youtube | Twitter

--

--

Frederico Mattos

Sonhador nato, psicólogo acolhedor, autor do livro "Maturidade Emocional". Ama ouvir histórias e descomplicar a vida. Escreve no Instagram @fredmattos