Procura-se uma líder!

Pasmas de maio está introspectiva, olhando para dentro e pensando sobre o mundo lá fora, numa antessala necessária da ação política

Revista Pasmas
Revista Pasmas
3 min readMay 20, 2020

--

Pasmas de maio está mais introspectiva. É natural, pois já tivemos tempo de pensar em tudo o que a quarentena implica para nossas vidas domésticas, pessoais, mentais. Mas isso não é abrir mão do político, que para as mulheres, queiramos ou não, está sempre ligado ao corpo e as rotinas da vida. Nesses tempos difíceis, convidamos vocês a mergulhar em si mesmas através da poesia de nossas colaboradoras e também lembrar que uma fina janela separa esse universo da ação política em busca de um mundo melhor.

Fotografia da artista visual Lara Ovidio, que escreveu em maio para a Pasmas.

A edição de maio da Pasmas abre com o Diário da Quarentena da artista visual Lara Ovídio, que diz: “Não sou capaz de produzir mais que pensamentos fragmentados.” Ela vai listando, atenta, nossas transformações físicas e mentais, como se fizesse um inventário da quarentena: “Abrir portas de maçaneta redonda com o antebraço.” O tempo se altera, exigindo horas para tarefas às quais nunca nos dedicamos. “Os dias estão mais mundanos, e assim vou me dando conta que viver a vida nunca foi pouca coisa.” É um baita diário, absolutamente pessoal e ao mesmo tempo coletivo, pois fruto de uma experiência compartilhada.

Do parapeito de sua janela Mariam Day reflete sobre as contradições da quarenta, sozinha mas buscando algum tipo de laço com os vizinhos, e de ação coletiva, do parapeito da janela, que até pouco era apenas um buraco rasgado na janela, e agora ganha tantos significados, inclusive políticos. A atmosfera da crônica é de incertezas: ela às vezes enlouquece, às vezes está sã: “Será que tem como fazer um respirador com o ventilador aqui de casa?” Numa semana em que tiros são disparados contra janelas de Santa Cecília, fica claro que os parapeitos já são parte da política (violenta) deste novo Brasil. Mariam é antropóloga, e se pode ver uma reflexão profunda nas linhas de uma crônica aparentemente simples. Mais Pasmas que isso, impossível!

Thais Lancman vai no sentido oposto, numa imersão em si mesma, numa reimersão já que ela já traballhava em casa. E nos faz questionar o quê afinal somos sem o olhar do outro. “Pelo correio chegam quatro rolos de filme ASA 200, coloco um deles na câmera, focalizo o parque do outro lado da rua, mas não disparo.” Se você quer se entender melhor nessa querentena, vá de Thais. O texto dela em geral tem um sabor kafkiano e numa época em que até seus amigos russos estão achando as coisas insólitas, olhares inesperados, por máquinas que não disparam, serão mais iluminadores que a melhor descrição científica.

A jornalista Daniella Zuppo traz uma video-resenha sobre o livro “O ano do macaco” da cantora Patti Smith. A obra de 2016 relata como Patti Smith celebrou seus 70 anos, em meio a um cenário melancólico de perda de amigos íntimos e da eleição de Donald Trump. Daniella lê um trecho de “O ano do macaco” e comenta a trajetória da artista. É pra ver e se deleitar, pela beleza do texto, pela presença de Daniella e pela sensação invocada de que vale a pena resgatar a comunicação e o belo, mesmo em tempos de pandemia e talvez ainda mais nesses tempos.

Finalmente, Fernando Birman, nosso homem do mês, mostra a coragem que queremos ver em nossos homens: a de refletir e compartilhar erros e acertos em público, sem poréns. Em “Procura-se um líder”, ele narra o seu voto em Jair Messias Bolsonaro – vamos falar seu nome, vamos encarar issoaê, sem apelidos, Bozo, Coiso, Bolsonazi, vamos tentar pronunciar esse nome para poder enfrentar tudo o que ele representa – e sua decepção, crescente. É um artigo que reflete os sentimentos de um grupo cada vez maior de homens de negócio, que ainda hesitam em revelar seus enganos e livrar a nação desse trago amargo. Diz Birman: “Antes fosse apenas uma questão de palhaçada. Contudo, falamos de genocídio. Enquanto ministros e as esferas estaduais e municipais trabalhavam, o chefe continuava com suas bravatas e factoides. Falsos e irresponsáveis debates contaminaram a nação: lockdown horizontal X vertical, cloroquina, economia X saúde etc. Imperdoável.”

Os jornais repararam no fato de que os países que melhor lidaram com o coronavírus eram liderados por mulheres. Talvez o Birman tenha querido dizer: procura-se uma líder.

--

--