de barco #5

Café das sete
Revista Passaporte
Published in
8 min readJun 29, 2019
Marissol

Oi! Esse é um diário de viagem, temos parte 1, 2, 3 e 4

10/01/2019
Itacoatiara

Acordei com som de ambulantes gritando: queijo, pupunha quietinhaaaa, café com leiteeee, paoooo. Levantei, estávamos no porto de Itacoatiara. Primeira parada. Meu olhar de viajante é sempre observador, seja quando estou disposta a escrever ou não. Mas essa viagem parece ter nascido para ser observada. Não só minha cara branca denúncia que sou forasteira, mas todas aquelas pessoas e paisagens dançam num ritmo perfeito que embala a vida cotidiana dos portos e que está muito distante da minha realidade de vida. Existe um lado marginal também. Algo que envolve dinheiro e quanto você está disposto a pagar. Olhares de dúvida e desconfiança. Placas de proibido e comunicações com os olhos que eu não posso entender muito bem. Não só não entendo como não participei desse outro lado do barco. Talvez numa outra oportunidade que eu seja uma jornalista mais investigativa. Por enquanto, meus olhos de foca estão lendo coisas mais táteis. Coisas mais simples, porém de entendimentos complexos.

Comprei um café com leite, enquanto tomava observava os vendedores, os clientes, as mercadorias e os costumes daquela região metropolitana de Manaus. Também tirava fotos e filmava aquelas cenas. Eu estava encantada e pensava na dura vida daquele povo, eles também pareciam não ter de pensar ali ou melhor era uma selva, onde salva-se quem vende mais e todos estavam bem empenhados na função. De repente vi um garoto tentando comprar frutas e duas refeições. Enquanto ele pagava os vinte reais das refeições o vendedor questionava: carne ou frango? E ele consentia com a cabeça, o vendedor continuava perguntando. Decidi interferir e disse: chicken or meat? Ele respondeu: chicken! Disse pro vendedor que entregou a marmita para ele.

Depois disso ele me perguntou de onde eu era e ficou surpreso por eu responder Minas Gerais, Brasil. Fez um gesto sobre o rosto, querendo dizer que eu não tinha cara de brasileira. Confirmei que eu era brasileira sim e ele se foi. Continuei ali observando as pessoas. Também comprei um bolo de macaxeira, como eles dizem, que pra mim é bolo de mandioca. O barco partiu do porto e quando já estávamos um pouco distante uma movimentação do lado, falavam que alguém tinha ficado dentro do barco, alguém que tinha que descer. Antes que eu pudesse imaginar o que aquela pessoa faria uma lancha saiu do Porto em direção ao barco. Ficaram lado a lado, uma pessoa subiu e outra desceu. O barco desacelerou, mas não parou e os atrasados puderam entrar. Alguém gritou: mais alguém? Sem um pio e ele partiu de vez.

Decidi ir para minha cabine comer meu bolo, não gostei muito do sabor, mas não era ruim. Comi um pouco e guardei o resto. Dei mais umas voltas pelo barco e depois de algumas poucas horas chegaríamos em Parintins. Nessa parada os vendedores tinham desenvolvido uma ferramenta para as vendas. Como o barco só parava rapidamente e não podíamos descer e nem os vendedores entrarem, para alcançar as pessoas usavam um pedaço de pau comprido com um garrafa pet na ponta e alguns ganchinhos. Uma engenhoca parecida com as que já usei algumas vezes na roça para pegar frutas do alto das árvores. O sistema consistia em colocar o dinheiro no pet e eles penduravam as compras nos ganchinhos. Decidi comprar uma comida. Me lembrei que o rango dos portos é um pouco mais temperado e barato. 10 reais. Lembrei do gringo que tentou comprar frutas mais cedo sem sucesso. Comprei um “cacho” de maçãs. 5 reais. Pensei em dividir com ele.

Fui pra minha cabine guardar a câmera para poder ir comer, comi enquanto observava o rio passando. Esse foi um hábito recorrente da viagem, comer observando as águas e as florestas que as cercam. Não só pra mim, durante todas as minhas andanças pelo barco, em todas sacadas, tinham pessoas observando as águas; as água e as outras pessoas. Essa de fato é uma viagem onde o maior lazer é observar outras pessoas e o rio, ambos vivendo, cada um à sua forma.

Consegui uma disputada cadeira no bar. Coloquei ela virada para rio e comecei a comer minha comida, jogando farinha d’água ora sim, ora não. Quando terminei de comer fui até cabine e guardei uma das maçãs na minha mochila de comilanças, peguei o iPad para escrever e subi pro bar para entregar o restante das maçãs aos gringos. Eles passavam muito tempo da viagem sentados nos seus computadores, mais cedo eu tinha me sentado do lado de um deles para perguntar seus nomes, de onde eram e o que faziam. David, programador estava fazendo um site e Yuri, designer gráfico, eles eram da Bélgica. Subi lá e entreguei a maçã. David ficou surpreso, eu disse: fruta? Lembrando a forma que ele perguntava para o vendedor. Ele agradeceu, eu segui para as escadas e me sentei para escrever.

Mais cedo eu tinha conhecido uma garota muito curiosa, a Marissol. Ela me perguntava de onde eu era, o que eu fazia, me perguntava da câmera. Várias vezes que nos víamos no barco ela me seguiu enquanto eu fotografava. Deixei ela tirar algumas fotos. Ela perguntou se eu falava inglês, porque eu conversava com os gringos. Disse que um pouquinho. Ela me respondeu que nem sabia o português direito. Falei que era só estudar, mas que eu também achava muito difícil aprender inglês. Pensei na minha frase - “só estudar” - era uma frase muito pouco prática naquele contexto. O “só” de Marissol estava muito distante do meu, porém eu não queria deixar que ela pensasse nas impossibilidades da vida. A própria rotina e realidade de cada um já traz isso muito bem sem que precisemos de alguém novo pra nós dizer. Fiquei pensativa.

Quando sentei nas escadas para escrever, outra coisa que se repetirá na viagem, escrever nas escadas. De lá eu tinha uma vista do rio e das pessoas. Bem melhor que escrever dentro da minha cabine: fria, escura e solitária. Ficava um pouco na passagem, mas tudo bem. Uma das vezes que me sentei. Marissol apareceu com seu irmão João e mais dois amiguinhos, também irmãos: Pérola e Pedro. Primeiro os meninos me perguntaram se tinham jogos no meu iPad, eu menti que não. A essas alturas já tinha aprendido que dizer que sim poderia ser um caminho sem volta. Disse que era só para escrever. Ainda sim, Pedro apertava o teclado acrescentando letras no meu texto. Fiquei preocupada que ele apagasse algo e disse: não aperte; mas não adiantava muito.

Marissol me perguntou se eu escrevia histórias. Disse que sim e que estava escrevendo sobre a viagem. Perguntei se ela gostava de ler, ela disse que mais ou menos, com uma cara de não. Eu disse que a leitura era capaz de fazer a gente viajar sem sair do lugar e ela me olhou com uma cara pensativa. Disse que colocaria eles na minha história e mostrei para eles enquanto perguntava seus nomes e escrevia um a um na parte de notas na ordem que me diziam: Marissol, Pérola, João Paulo e Pedro. Decidi parar um pouco e ir no último andar. Deixei o iPad na cabine e peguei minha câmera.

Enquanto fotografava as pessoas, Yuri veio até a mim, o outro belga. Começamos a conversar e descobri que ele falava várias coisas em português. Ele me contou que ele e David estavam viajando a vários meses e iam continuar, já que trabalhavam online. Perguntei se ele gostava da viagem de barco. Ele disse que nem tanto, porque as condições do barco eram muito ruins. Os banheiros e a comida; que ele estava fazendo uma espécie de vídeo denuncia. Eu tentei argumentar com meu fraco inglês que era uma outra realidade, que aquele tipo de viagens era muito simples, que as pessoas eram muito simples e ele me disse que meu inglês era bom, eu disse que o português dele também era, ele ficou mais feliz que eu.

O belga continuou me dizendo que as paisagens no Brasil eram as melhores, porém as cidades da Europa tinham uma estrutura muito melhor e eram muito mais bonitas. Fiquei pensando que com certeza na Bélgica não estudam história do Brasil. Que aquilo tudo era muito óbvio para mim, quando eu pensava nos processos exploratórios que vivemos. Agora escrevendo (15/01), me lembrei de uma curiosidade que um local contava ao grupo enquanto nós caminhávamos pela floresta amazônica. De que alguns cientistas comprovaram que existe um trecho da terra da Amazônia, a chamada terra preta, que é um solo muito fértil. Segundo ele, estimam que a idade dessa terra é de mais de 1000 anos. E eu me lembrava de quando ouvia na escola que o Brasil tinha 500 anos. Afinal, talvez, nem eu mesma conheça muito a nossa história. Precisamos aprender muito ainda sobre nossa origem, principalmente se queremos criticá-la. Senti um pequeno ranço do moço, ele disse que ia ao banheiro, eu continuei observando o rio.

Aqui, em Manaus, no Pará, nos rios, nas florestas, chove com muita frequência, chuvas fracas ou fortes. Ainda mais que estou na época da cheia. Durante a viagem de barco chovia algumas vezes, era só começar a pingar todos corriam do último andar, o que era aberto. Imediatamente puxavam as lonas das sacadas e fechavam as janelas; de água já bastava o gigantesco Rio Amazonas que nos rodeava. Eu que sempre gostei de pegar chuva descia as escadas devagar deixando as gotas de chuva pingarem em mim. Tive uma ideia!

Começou a chover mais forte e ninguém mais estava no andar aberto. Coloquei uma blusa corta vento que tinha pegado emprestada com minha irmã e subi lá. Coloquei o capuz, uma música no celular, os fones no ouvido, tirei os chinelos e comecei a dançar. Dançava na chuva, corria e escorregava, patinava sem patins, enquanto chovia sem parar; por um momento naquele barco com mais de 300 pessoas eu estava sozinha. Eu e a chuva cercadas pela floresta e o pelo rio agitado que dançava comigo e minha música. Eu ria alto, abria os braços e pensava: não sei mais como essa viagem pode melhorar.

… continua em “outros idiomas” — de barco #6

--

--

Café das sete
Revista Passaporte

Por Helena Merlo. MUITOS erros de digitação pq eu escrevo na fritação do sentimento! CATARSE. "A arte é uma confissão de que a vida não basta" F.Pessoa