OPINIÃO

O BEIJO DE JUDAS

O pronunciamento de Bolsonaro a respeito da saída de Moro: tem mentira e outras coisas mais.*

Revista Torta
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Por Arthur Almeida

Editado por Giovana Silvestri e João Vitor Custódio

Foto retirada do Instagram da fotojornalista Gabriela Biló.

“São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”, assim está descrito no Artigo 2º da Constituição Federal brasileira de 1988.

No que deveria ser somente a coletiva de imprensa para comunicar publicamente as exonerações do ex-diretor-geral da Polícia Federal (PF), Maurício Valeixo, e do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, Jair Messias Bolsonaro mostra, mais uma vez, o seu total descaso à Democracia.

Em pronunciamento de pouco mais de 45 minutos, na última sexta-feira (24), o presidente, acompanhado de seus ministros, realizou um discurso tortuoso e martirizante, em que relembrou a sua história com Moro e tentou se defender das acusações feitas por ele em sua coletiva de despedida do cargo algumas horas antes.

Ameaça à Democracia

Dentre todos os absurdos ditos nesse pronunciamento, um se destaca. O presidente eleito defendeu o que chama de “hierarquia”, fala preocupante quando compreendida a experiência democrática. Bolsonaro se autointitulou “chefe supremo”.

Em um Estado Democrático de Direito, a Constituição Federal é a norma jurídica máxima, ela é a responsável por determinar toda a organização do país. É a partir dessa Carta Magna que os Três Poderes ganham funcionalidade: executar, legislar e judicializar.

Independentes e de mesma credibilidade hierárquica, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário são representados, em nível federal, respectivamente, pelo presidente, o Congresso (Câmara e Senado) e o Supremo Tribunal Federal (STF).

Assim, não existe, dentro da Democracia, a menor possibilidade de um Poder ou um representante de um dos Poderes exercer soberania sobre os outros. A utilização do título “chefe supremo” faz alusão a outros tipos de governo; em seu cerne, de natureza autoritária: um regime monárquico ou ditatorial.

Não é, porém, a primeira vez que Bolsonaro assume posturas que vão contra a prática democrática. O eleito presidente, por diversas vezes, já se colocou publicamente acima da própria Constituição e contrário aos Direitos Humanos.

Antes de sua eleição, quando estava em campanha ou mesmo quando ainda era deputado federal, Bolsonaro já era uma figura bastante polêmica. A partir de 2018, isso não mudou e a inconstitucionalidade do presidente continuou a ser apontada. No dossiê “Desordem e Regresso” da Revista Torta, em especial no artigo “Preconceito acima de tudo, repressão pra cima de todos”, isso já foi analisado.

Automartirização

Durante todo o pronunciamento, Bolsonaro tentou transmitir a ideia de vítima das circunstâncias, um mártir. Em suas falas, destacou, como já é de costume, o enfrentamento à corrupção, o “ataque” dos veículos comunicativos e ditos “problemas” advindos de governos anteriores.

Foto retirada do Twitter da fotojornalista Gabriela Biló.

Em exemplificação descabida, o presidente citou medidas — mínimas — de economia de verba pública que realizou: a não-utilização de recursos financeiros disponíveis sem a prestação de contas; o desligamento do aquecedor da piscina olímpica do Palácio da Alvorada (o que é, segundo dados da Agência Energia, uma informação falsa, já que a piscina utiliza energia solar); e a modificação de um cardápio — que ele tampouco dá mais informações a respeito.

Bolsonaro, ainda, relembrando a facada que recebeu durante sua campanha em 2018, apelou ao público lançando o questionamento “Quem mandou matar Jair Bolsonaro?”, associando a imagem da PM àqueles que teriam lhe salvado, na tentativa de justificar o interesse particular no órgão, uma das acusações de Moro a ele.

Ilusão amorosa

Em narrativa que mais lembra uma fanfic — narrativa ficcional criada por fãs, que baseados em uma história ou personagens de determinado trabalho já existente para criar sua própria história — , Bolsonaro fala do início de sua relação com o ex-ministro. Chega a ser cômico, poderia muito bem ser a descrição adolescente de um primeiro amor.

“Eu, pessoalmente, tive o primeiro contato com o senhor Sérgio Moro no dia 30 de março de 2017, no Aeroporto de Brasília, onde ele estava parado numa lanchonete e eu fui cumprimentá-lo. Ele praticamente me ignorou”, afirmou o presidente.

Bolsonaro ainda disse ter ficado “triste” com o destrato de Moro, que era “um ídolo” para ele: “não vou dizer que chorei porque estaria mentindo”. O conflito teria sido resolvido algum tempo depois, após uma ligação, “obviamente, a sua consciência tocou”.

A aliança política entre os dois, segundo o presidente, aconteceu após a sua eleição, em 2018, quando o, então, juiz foi convidado a assumir o Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Para Bolsonaro, o fim do relacionamento se deu pela falta de confiança. “Eu sempre abri o coração para ele. Eu já duvido se ele sempre abriu o coração para mim”, completa.

Problemas no Paraíso

Para justificar a saída de Valeixo, que antecipou a demissão de Moro, Bolsonaro afirmou que a escolha pelo ex-diretor-geral da PF nunca foi dele, mas, sim, do ex-ministro, apesar da ocupação do cargo ser prevista pela indicação do presidente (Lei n° 13.047/14). No discurso, disse “abri mão disso, porque confiava no senhor Sérgio Moro”.

O presidente admitiu que a exoneração tinha como natureza principal a discrepância entre os seus interesses e as medidas que o Ministério estava tomando com as investigações da PF sob a orientação de Moro e Valeixo.

Bolsonaro citou como exemplo a execução da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, insistindo que o caso era priorizado sobre outros que ele achava mais importantes, como sua facada. Foi, nesse contexto, que utilizou o, já citado, termo “chefe supremo”:

“Será que é interferir na Polícia Federal quase que exigir e implorar a Sérgio Moro que apure quem mandou matar Jair Bolsonaro? A Polícia Federal de Sérgio Moro mais se preocupou com Marielle do que com seu chefe supremo. Cobrei muito dele isso aí. Não interferi. Eu acho que todas as pessoas de bem no Brasil querem saber”.

O presidente, ainda, atacou a investigação que o associou ao assassinato da vereadora, acusado, junto ao seu filho Carlos Bolsonaro (“02”), de obstrução dos dados da portaria do condomínio em que Élcio Queiroz, um dos suspeitos do crime, teria ido na noite da execução.

Moro, por outro lado, em sua coletiva, destacou que Bolsonaro dificultava operações da PF, intervindo politicamente no órgão e exigindo acesso a informações sigilosas das investigações. Segundo o ex-ministro, esse seria o verdadeiro fator a levar à substituição de Valeixo.

Como chegamos onde estamos?

Foto retirada do Twitter, edição feita por internautas fazendo alusão à edição de eliminação do BBB 20.

Foi a partir de 2014, com a reeleição de Dilma Rousseff, o não-reconhecimento do resultado das eleições pela direita brasileira e as investigações a Lula da Silva, que Bolsonaro começou a ganhar reconhecimento. Em 2016, com o processo de impeachment de Dilma e a ascensão de Michel Temer, esse processo intensificou-se ainda mais.

A Democracia brasileira esta(va) desgastada. E, segundo o artigo “La ultraderecha llega al poder: una evaluación del gobierno de Bolsonaro”, de Cláudio Gonçalves Couto, Bolsonaro trazia uma nova proposta que atraiu a população: um antipetista de discursos anticorrupção, extremistas e, ao mesmo tempo, populistas. Ele se tornou um “mito”.

“Bolsonaro parece ensaiar no Brasil pela direita o que fizeram pela esquerda, noutros países da América Latina, Hugo Cháves, Rafael Correa e Evo Morales, engajando-se num clima de campanha permanente e propondo uma ‘nova política’ que seria uma forma superior à ‘velha política’ praticada por seus antecessores.”

Couto aponta, para além da negação do status quo político, outro fator importante para a eleição de Bolsonaro, a aliança com Sérgio Moro. Para o autor, o ex-juiz passou a personificar a luta contra a corrupção, era tido como um “herói”. A união do “mito” com o “herói” abriu caminho para os dois, que compartilham semelhanças:

“Ambos, porém, de forma parecida, negam o jogo democrático, pois apontam as barganhas, acomodações e alianças da política como fontes de corrupção. Contra a política acomodatícia se usa a violência verbal, legal e — se preciso for — armada”.

Assim, a perda de Moro é uma grande derrota ao Governo Bolsonaro. Como ilustrado pelo discurso do presidente, a exoneração ganhou pessoalidade e valor de traição ao relacionamento que ambos compartilhavam, até então, mutuamente benéfico:

“Hoje vocês conhecerão aquela pessoa que tem um compromisso consigo próprio, com seu ego e não com o Brasil” é uma das primeiras frases do pronunciamento.

Retomando a imagem, durante a coletiva de Bolsonaro, dos ministros dispostos lado a lado, aglomerados e sem máscaras — com exceção de Paulo Guedes (Economia) — , há quase uma reprodução do quadro “A Última Ceia”, de Leonardo da Vinci. A alusão é ainda mais intensificada quando o contexto de traição de Moro, Judas, à confiança de Messias é considerado.

Frame retirado da cobertura ao vivo do pronunciamento pela TV Brasil 2.

O fato é que Bolsonaro encontra-se, hoje, em um momento muito delicado. As mesmas características que atraíram a população a ele também são responsáveis por seu enfraquecimento.

Sem partido e com a queda no apoio popular, os ataques — inconstitucionais — ao Legislativo e ao Judiciário, o desacordo com prefeitos e governadores no que diz respeito ao enfrentamento da crise do Coronavírus e a instabilidade de sua equipe de governo, as saídas de Luiz Henrique Mandetta (ex-ministro da Saúde) e Moro, Bolsonaro está, cada vez mais, sozinho. Não à toa, ele anda fazendo acordos com partidos do centrão de forma a consolidar uma base no Congresso, a “velha política” que tanto criticava.

Estamos em um momento de intensa atividade política. Os próximos dias servirão para vermos as consequências do “beijo de Judas”. Do jeito que vão as coisas, muito ainda está por vir.

*A linha-fina faz referência a um vídeo que viralizou na internet e se transformou em meme reconhecido entre os internautas.

NOTA: As opiniões dos autores, expressas em suas colunas, não refletem, necessariamente, o posicionamento da Revista Torta. Como veículo de comunicação independente, buscamos apresentar pluralidade de opiniões em nossas matérias.

Foto retirada do Twitter da fotojornalista Gabriela Biló.

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