POLARIZAÇÃO PARA DUMMIES, parte 1

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
Published in
8 min readJul 3, 2020

Confuso com o bate-boca eterno nas redes sociais? Não sabe qual lado está certo ou errado no debate sobre os grandes problemas de nossa sociedade? Não entende por que é tão difícil achar um meio-termo entre opiniões aparentemente extremas?

Seus problemas acabaram! Preparamos uma útil cartilha (com figurinhas!) para explicar como nasce a polarização ideológica e suas consequências. Acompanhe:

Capítulo I: da identificação dos polos.

Este é o progressista.

O progressista acredita que a vida em sociedade deve incluir um contínuo processo de revisão de conceitos, de modo a refletir as mudanças sociais, econômicas e ambientais que acompanham a passagem do tempo.

Conheça agora o conservador.

O conservador defende uma visão de mundo oposta à do progressista.

Vamos conhecer então o reacionário.

À primeira vista, o reacionário e o conservador podem parecer praticamente iguais.

Apesar de compartilhar muitas convicções com o conservador, o reacionário se difere desse primeiro por sua abordagem antes de mais nada reativa em relação às propostas do progressista.

Em resumo:

  • o progressista defende a mudança do status quo, em prol do indivíduo.
  • o conservador defende a manutenção do status quo (e, eventualmente, a restauração de aspectos de um status quo anterior); o indivíduo que mude para se adaptar a ele.
  • o reacionário não defende coisa alguma, ele apenas se opõe às ideias do progressista. Essa postura muitas vezes (quase sempre, na verdade) serve aos propósitos do conservador e faz com que a confusão entre os dois polos seja inevitável e, quando interessa a um ou a outro, intencional.

A polarização nasce dos embates de ideias entre os três polos.

Veremos alguns exemplos de polarização no capítulo II.

Capítulo II: a gangorra da opinião pública.

Num certo dia do passado, provavelmente lá pelo fim do período neolítico, surgiu o conceito de vida em sociedade. No mesmo dia, surgiram também os problemas da vida em sociedade.

Mesmo no neolítico, já estava ruim pra todo mundo. Quem limpava essa poeirada toda?

Os três polos apresentados no capítulo anterior diferenciam-se, acima de tudo, pelo modo como lidam com os problemas sociais.

Para o progressista, lidar com os problemas sociais inclui necessariamente a empatia com as necessidades e particularidades dos terceiros; a articulação entre diversos agentes sociais, políticos e econômicos; e a responsabilidade compartilhada na busca de soluções entre toda a sociedade.

O conservador não acredita na parte “social” do termo “problema social”. Ele enxerga o problema, mas acredita que a solução deve sempre partir do indivíduo, sem responsabilidade compartilhada ou a obrigação da construção coletiva de um mudança estrutural. Para o conservador, o mundo é o que é e é o que sempre foi; quem se sentir prejudicado, que busque resolver seu problema por conta própria.

Já o reacionário pega o bonde do conservador, pula a roleta e senta na janela de pernas abertas. Sua filosofia em relação aos problemas sociais pode ser resumida em uma frase dita há pouco pelo presidente da República: “E daí?”. A crença conservadora no individualismo acima da coletividade se traduz, para o reacionário, na reprodução social da lei da selva.

As soluções para muitos dos problemas sociais contemporâneos provavelmente se encontram na interseção entre o pensamento conservador e o ideário progressista. A iniciativa individual é fundamental, mas sozinha ela não dá conta de questões seculares e complexas. E enquanto diversas dessas questões demandam recursos humanos e financeiros acima das capacidades de 99% dos cidadãos, também requerem a convicção individual da necessidade da mudança.

Se a opinião pública fosse uma gangorra, o equilíbrio entre as ideias do progressista e as do conservador seria algo parecido com as duas figuras a seguir…

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…No entanto, um debate construtivo sobre um possível caminho do meio é quase sempre desequilibrado pela intervenção do reacionário, que invariavelmente se alinha ao conservador (mas fazendo um barulho muito maior que este). E a opinião pública tende sempre a refletir os valores do status quo vigente, cujas forças (econômicas, políticas, sociais, culturais) são, necessariamente, conservadoras.

Isso acontece porque, em um ambiente polarizado, as vozes radicais sempre ecoam mais longe, mesmo que representem uma minoria. A regra se aplica tanto aos progressistas quanto aos conservadores e aos reacionários.

Vejamos como funciona na prática. Na próxima imagem, temos um contingente progressista com sua diversidade de ideias grosseiramente representada.

Quando postas na gangorra da opinião pública, as ideias progressistas muitas vezes são retratadas com ênfase em seu radicalismo — as propostas da minoria estridente suplantam o discurso mais moderado.

Esse movimento, sempre conveniente ao status quo, não raro é artificial e se presta a distorções como a falsa equivalência…

…além de gerar pautas infinitas para as fake news. Resultado: mais polarização.

Notem bem que o processo também acontece com os radicais no extremo oposto.

Mas devido ao alinhamento automático entre o reacionário e o conservador (que é, lembrem, quem detém o controle do status quo), o barulho causado pela minoria reacionária é geralmente relativizado pela opinião pública.

Eventualmente, a posição radical do reacionário pode até ser vista como algo positivo pelo status quo.

Vejamos agora como esse ciclo de polarização interfere na discussão pública acerca de um tema concreto. Digamos, a ~cuestão~ da diversidade.

Capítulo III: a ~cuestão~ da diversidade.

Um dado fundamental do pensamento progressista é o reconhecimento e a aceitação da diversidade (de gênero, de etnia, de classes sociais, de regionalismos, de religiões, de orientações sexuais, de ideologias etc. etc. etc. & etc.).

Para o progressista, a organização e a caracterização desses grupos é uma evolução natural da sociedade.

Essas convicções fundamentaram a ascensão de movimentos sociais que organizaram mulheres (feminismo), trabalhadores (sindicalismo, reforma agrária), descendentes de escravos (movimento negro), pessoas com orientações sexuais não convencionais (LGTBQs) e outros tantos em busca de direitos básicos e melhores condições de vida.

O conservador pensa diferente. Ele até reconhece a diversidade da sociedade, mas não acredita que a mesma deve ser reformada para acomodar as demandas de pessoas que não enquadram nos padrões aceitos pelo status quo.

Já o reacionário, como vimos no capítulo anterior, usa as ideias do conservador em um discurso mais radical e que não apresenta propostas para resolver as necessidades advindas da diversidade. Na verdade, o reacionário sequer reconhece a existência da diversidade.

Esse tipo específico de polarização se dá porque o conservador e o reacionário acreditam que existe um tipo de membro ideal para a sociedade, o cidadão-de-bem.

O conservador crê que a sociedade deve funcionar em prol do cidadão-de-bem e que as reivindicações de grupos que não se encaixam no padrão do cidadão-de-bem são menos relevantes.

O reacionário vai além. Para ele, o mero debate sobre diversidade é nocivo e faz parte de um complô progressista para destruir a sociedade.

O reacionário crê que só deve haver espaço para os cidadãos-de-bem na sociedade (e o resto que se dane), e acredita que toda proposta progressista também busca isso — mas com o sinal trocado. Então, quando o progressista afirma isso…

…tendo isso aqui em mente…

…o reacionário ouve e instintivamente pensa nisso aqui…

…porque para ele, a tolerância ao outro é inconcebível. E porque o reacionário sempre espera o pior das pessoas.

Então, quando esses pontos de vista são postos na gangorra da opinião pública…

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Confira agora a segunda parte da série POLARIZAÇÃO PARA DUMMIES: O ISENTÃO.

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)