Dez continhos catalanos #10 — O marrucão ou O desígnio das coisas

Victor Calcagno
4 min readFeb 16, 2019

O marrucão ideal tem 50 e poucos anos, 1,78m, cabelo ralo (nunca é careca), pele queimada de sol, pescoço com a textura dos galináceos, olhos pequenos, nariz alongado, braços cabeludos, dedos grossos e espremidos pelo anel de casamento, dentes fortes, riso fino, óculos de grau, camisa de manga curta, jeans meio sujo, sapato social tosco ou (botinas), testa grande, orelhas vermelhas e rosto largo. É o tipo mais antigo de catalano que se tem notícia. Está aí antes mesmo das senhoras que tomam a fresca no Parque das Mangueiras e dos senhores cujo maior passatempo e ir de chapéu à feira livre de terça pra comer pastel, comprar verdura e prosear um tico.

Claramente, os marrucões descendem dos antigos coronéis e uma parte considerável deles ainda é fazendeira ou mexe com agronegócio de algum jeito, seja com sementes, aluguel de máquinas, agrotóxico, etc. Com os anos, o fim do coronelismo clássico e o crescimento da cidade, a classe dos marrucões se distribuiu entre outros segmentos do profissionalismo. Hoje eles são encontrados em todos os ramos, desde que exerçam cargo de quem manda. Não são exatamente profissionais em algum ofício (apesar de serem), mas, antes disso, donos de imobiliária, de loja de material de construção, de aluguel de caçamba, de clínica, escritório de advocacia, de restaurante, de depósito de gás, de oficina, de distribuidora e outros empreendimentos que garantam a caminhonete e o adjetivo-certeiro de “endinheirado”.

Apesar de endinheirados, os marrucões, cara a cara, são pessoas simples nos modos, nos gestos e na resolução de problemas, para os quais sempre há um caminho lógico, sem contradições — homem é homem, mulher é mulher, Deus sabe o que faz, o trabalho dignifica o homem, os incomodados que se mudem, se conseguiu é porque mereceu, etc e etc. Quem os vê de longe assim, sentados numa mesa acabada do Picanha Dourada, camisas abertas, cervejas nos copos e jantinhas nos pratos, diria que só são “caipiras” jogando conversa fora, rindo fino de qualquer coisa. Erram feio. Tal como os coronéis que estraçalharam o poeta, os marrucões podem dizer — sem nunca terem feito, porque não é preciso ser tão literal — que mandam na cidade, e que bater de frente com eles é bater de frente com o próprio desígnio das coisas. Por que se dar ao trabalho, se assim é a vida há tanto tempo nesse cerrado? É a conclusão a que chegou a cidade desde que os marrucões apareceram nessas paragens, ou desde sempre.

É difícil listar como alguém, de pobre e sem influência, se torna um marrucão. Se vários já nasceram com terras garantidas, dando continuidade à produção da família, outros “deram sorte” ao abrir um negócio há 20 anos — é a explicação costumeira. Há ainda os que se valeram de algum pequeno golpe lá atrás, quando enrolaram o sócio, passaram a perna no fulano da cooperativa ou “tiraram ciclano da jogada”, o que não é segredo pra ninguém da cidade. Quando um dos marrucões relembra essas histórias na mesma mesa do Picanha Dourada pra irritar um dos amigos, acusado de ser trapaceiro, tratante ou caloteiro, a resposta é que não se trata de nada disso, mas de “esperteza”. O mundo para os marrucões, aliás, é dividido entre dois tipos de pessoas: os espertos e os bobos. Espertos são aqueles que conseguem “dar a volta”, gente engenhosa que nunca confia só nos meios clássicos para “resolver seus problemas”, “crescer na vida”, “pôr comida na mesa” e tantas outras justificativas nobres. Bobos são os que não são espertos. E pra ser esperto (ou não ser bobo), valem todos os esforços.

Também é difícil dar exemplo das práticas do marrucão pra se manterem no alto de suas caminhonetes. Mais fácil dizer que estão sempre cheios de coisas pra resolver na prefeitura e que se protegem uns aos outros. Um bom exemplo talvez seja o do Zé Reis, que mexe com agrotóxico, e que conseguiu autorização, da noite pro dia, pra começar a vender um tipo de produto “mais agressivo” na loja. Também teve o Alvim, que dá a sorte de nunca ver fiscais ambientais perto da sua propriedade, mesmo tendo acabado com tudo, nascente, mata ciliar, vegetação típica e todos esses nomes que ele nunca conseguiu entender. “A terra não é minha, uai?”, responde. Ou mesmo o Junin Anhanguera, que resolveu o problema dos buracos no asfalto em frente à distribuidora com algumas ligações e boas lembranças da época de campanha. Tudo coisa de gente esperta.

O marrucão não fica bravo à toa. Tem aquele brio dos patriarcas, de quem sabe a hora certa de levantar a voz. Quando isso acontece, entra a definição muito clara de certo e errado, desprovida de contradições. Que mal há em “tirar da jogada” algum desafeto, se ele é bobo, e eu esperto?

Não é esse o desígnio natural das coisas nesse cerrado?

*ilustração de Valter Costa

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