Dez continhos catalanos #4 — Nós, cachorros da represa

Victor Calcagno
4 min readFeb 7, 2019

Se ainda resta alguma dúvida de que nós, cachorros da represa, temos tanta importância histórico-cultural para a cidade quanto as casinhas do Centro, a Festa do Rosário ou o caldinho do João Abrão, então é porque você não sabe nada de Catalão ou apenas não tem amor nos bichinhos. Não, não adianta fingir que não nos conhece. Você já nos viu, já cruzou por nós e talvez até tenha sentido dó da gente. Você pode ter feito um carinho mínimo na nossa cabeça e oferecido um resto de carne, ou então nos tacado brita no lombo e dado risada quando o rapaz do espetinho nos enxotou — gente bruta é o que não falta por aqui. Agora, dizer que não conhece os cachorros da represa, nem que não merecemos nosso tantinho de renome? Aí não é coisa de gente bruta, é coisa de gente metida a besta. A sorte desse povo é que somos cachorros, Canis familiaris, criaturas por natureza gentis. É só por essa razão que vou esquecer por dois minutos todo a indiferença que recebemos por gerações e explicar, sem latidos ou rosnados, de uma vez por todas, quem nós somos.

Sim, somos cachorros: vira-latas e importantíssimos. Sim, somos cachorros: de todo mundo e de ninguém. Sim, somos cachorros: vários e esfomeados. Sim, somos cachorros: cachorros da represa. Nossa história é antiga. Estamos aqui, nesse mesmo lugar, há décadas. Viemos muito antes das nossas colegas capivaras, do rapaz do espetinho ou do povo que fica dando voltas no lago pra emagrecer. Viemos, na verdade, antes mesmo dessa represa do Clube do Povo, da avenida do córrego ou da Velha Matriz. Somos mais antigos que a própria cidade, 185 anos pra nós é pouco, mas quem sabe mesmo dessas histórias antigas são os mais velhos. O que posso dizer é que temos passado, tradição, profissionalismo e muita manha. Só assim pra sobreviver sem comida certa e ainda arriscando levar pedrada.

Vivemos dos restos. Restos de espetinho, restos de vinagrete, restos de arroz, restos de mandioca, restos de ração, restos de sono, restos de grama, de água e de carinho. Estamos sempre perto do espetinho, por vários motivos. Primeiro porque o dono, quando vai fechar e não está com pressa, costuma nos dar uns restos. Depois, porque ficamos rodeando as mesas do pessoal, vai que algum coração amolece. Nesse ritual é preciso manter a etiqueta e se engana quem acha que, por sermos vira-latas, não temos um mínimo de instrução. A regra número um é nunca latir. Também é preciso escolher um único alvo, deitar com as patas cruzadas e olhar com cara de dó direto pros comensais. É proibido copular, lamber genitais (próprios e alheios) ou fazer necessidades na frente dos clientes, a não ser que queira dormir com fome. Vindo de fora, o cachorro demora uns três meses pra dominar a técnica, o que cai pela metade se o bicho é cria daqui. Dá orgulho ver os pequenos mantendo a tradição.

Não somos só da represa, mas também do entorno. A comida nunca dá e temos que ir pros lados do setor universitário, do ginásio, até daquela tristeza que é o rodo-shopping — depender de franquias como Giraffas e Subway é mendigar no deserto. Nessas andanças, sempre achamos mais companheiros, alguns antigos e mais magros, outros que viraram a casaca e cumprimentam a gente por trás de portão, como se nada tivesse acontecido. A maioria acaba na Lamartine percorrendo as pizzarias, os restaurantes e as sorveterias. O caboclo pode ficar lá por meses, esticar pro Centro, cair na Raulina e até ir parar na praça do Chuvisco, mas sempre acaba voltando pra represa. Aqui tem menos comida, é verdade, mas ao menos temos uns aos outros. Fora a vista.

Tem gente que não consegue nem passar perto de nós, acha que vamos morder, transmitir raiva, pulga, piolho, sarna, tristeza, o que for. É com esses que temos que tomar cuidado. Se passou a mão no chão, amigo, é melhor não arriscar, só sai de perto que é mais jogo. Pedrada dói, já levei e não foram poucas. Isso também não quer dizer que somos covardes, é tudo uma questão de tino. Se é molecada jogando pedra pra fazer graça, latimos mesmo, mostramos os dentes, corremos atrás, mordemos uns calcanhares, eles merecem. Se é só gente metida querendo passar, cara de nojo à “distância segura”, apenas reviramos os olhos. Quando somos jovens, até sentimos mais fundo, queremos brigar, ir atrás, dizer que somos mais donos da represa que eles. Mas depois largamos de mão dessa gentalha. Eu mesmo nem ligo mais.

Nós, cachorros da represa, somos conhecidos pela fome, mas também por deitarmos na sombra por horas. Nessas ocasiões, de barriga meio-cheia — porque nunca está completamente — temos orgulho do que comemos, de onde vamos, pro que latimos e de quem somos. Agora ficou claro? Se pudéssemos deixar um recado, depois de tanto tempo pertencendo à cidade e falando do nosso humilde lugarzinho, diríamos o seguinte: nos respeite. E deixe mais restos de comida pra gente.

*ilustração de Valter Costa

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