Dez continhos catalanos #5 — Hilux é pouco

Victor Calcagno
4 min readFeb 9, 2019

Desde que se lembrava, João Vítor tinha um sonho: ter uma Hilux. Uma Hilux branca, lógico. O moleque não teve nem tempo de pensar o contrário, talvez começar com uma Saveiro, ir pra Ranger usada e finalmente chegar no modelo mais cobiçados nas ruelas de Catalão (e “Região” também, claro, porque esses dois sempre vêm juntos, nas notícias, nos anúncios da prefeitura, nos panfletos de restaurante, motel, pit-dog, etc). Aos 18 anos, ganhou uma novinha do pai, que mexia com plantação. “Cê presta atenção, jão vito, porque esse trem foi caro pro bosta”, avisou o velho, que em sua própria Hilux branca tinha um daqueles adesivos de “rústico e sistemático”, o que dispensa qualquer descrição. O tom de advertência não impediu que o rapaz ficasse com cara de bobo alegre quando viu a caminhonete tinindo na garagem, dia do seu aniversário. Passou a mão na chave correndo, ligou a bichona, deu umas três ou quatro aceleradas, o pai do lado, e deixou cair uma lágrima. O velho abraçou o filho, sentindo que o momento era especial: “Larga de sê bobo, cê merece, uai!”

A primeira providência do João Vítor, realizado o sonho, foi se matricular na autoescola. Não que isso o impedisse de rodar sem documentos, o que já fazia no Corola da mãe, mas era preciso dar uma garantia mínima pro pai de que ia “prestar atenção”. Foi pilotando pra todas as aulas de legislação, inclusive pra prova escrita. Passou de terceira no circuito do Ginásio e alegou que era acostumado com carro grande, mesmo depois de ter feito mais de 20 aulas práticas no uninho da CFC na José Marcelino.

A segunda providência, mais óbvia, foi tunar a caminhonete. Som automotivo era palavra que achava chique e fazia questão de usar, ainda que a família, os amigos e a “muiézada” se referissem aos equipamentos, suavizando o estrago, apenas como “som”. Pro João Vítor não era só “som”, mas “som automotivo”, coisa fina, brincadeira séria. Ao contrário dos outros caminhoneteiros da cidade, preferia não sair por aí ouvindo sertanejo, mas alguma dessas músicas eletrônicas com mulher cantando. Argumentava que nesse tipo de música “dá pra ver a potência toda do som automotivo”. Assim como os outros donos de caminhonete tunada, não ligava quando o grave das batidas acionava o alarme de outros veículos. Pelo contrário, gostava. Era como se tivessem abrindo alas pra ele passar, trombetinhas enfileiradas dos dois lados da via.

Habilitado e tunado, o rapaz estava pronto pra fazer as primeiras burradas. Começou com o tradicional erro da rotatória em frente ao Reis da Farid Miguel Safatle, ao esquecer o conceito de dar a preferência. O Gol freou a 30cm da carroceria da Hilux, mas o João Vítor só soltou um “nossasinhora!” e continuou acelerando. Depois foi na rotatória da represa. Não pegou o bicicleteiro por pouco e, se pegasse, diria que lugar de bicicleta é na calçada. No mesmo mês que ganhou a caminhonete, também agrediu as rotatórias da Avenida Margon, da avenida da represa (lá em cima) e do Mara Turismo. Em todos esses casos, o rapaz jurava que a preferência era dele.

João Vítor nunca fez uma grande elucubração sobre o tema, mas sabia bem, lá no fundo, que nessa altura do cerrado as pessoas não raramente são medidas pelo tamanho de suas caminhonetes. A origem e o real significado dessa vinculação era coisa que nunca o incomodou de fato, só parecia mais um desígnio da natureza em Catalão (e Região): não importa de onde você venha, como enriquecera, se tem fazenda ou só ande cinco minutos da casa pro trabalho, quem tem condições apenas irá comprar uma Hilux. E assim segue a vida.

A vida do João Vítor foi seguindo muito bem depois que começou a pilotar a sua própria, até hoje, aliás. Já vai fazer três anos de Hilux branca e o saldo só foi positivo — várias muiezáda, alguns tunnings a mais, um carnaval em Aruanã e várias esticadas pra Goiânia, onde tem parente. Nem mesmo aquela Shineray tarde da noite na avenida do córrego foi motivo pra tristeza. Se o rapaz tava sem carteira, é ele que tá errado, não? Ainda que, é verdade, o caboclo tenha sido arremessado a oito metros de distância, quebrado a espinha, tido sequelas pra vida inteira. E ainda que, mais uma vez, o João Vítor dissesse que a preferência era sua. Diria, se tivesse ficado pra socorrer. Vazou fora pra capital na mesma hora, frente quebrada e tudo, chegou lá disse que veio levar o carro na oficina. A parentada achou estanho, mas não falou nada. Ou melhor: falou, sim. Um dos primos, aproveitando que o tema da conversa era carro e que a Hilux branca já tava ficando com o modelo ultrapassado, perguntou se o sonho do João Vítor agora era ter uma nova todo ano.

Ele respondeu que Hilux agora é pouco, que depois dela o certo é ir direto pra Dodge Ram.

*ilustração de Valter Costa

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