OMBUDSMAN: “Precisamos de mais pessoas que tentem entender a caminhada dos povos”

Especial Abril Indígena da Beta Redação teve respostas positivas de leitores

Rodrigo Westphalen
Redação Beta
11 min readMay 4, 2022

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“Fiquei muito feliz por isso”, disse o cacique kaingang André Benites, de 40 anos, da aldeia Ka’aguy Porã em Maquiné, RS. “Parabéns pelo trabalho de vocês, pelo envolvimento como estudantes, como jornalistas e entrevistadores”. As palavras, enviadas via áudio do WhatsApp, são algumas — entre várias — que marcaram este ombudsman desde a publicação das nove matérias pela editoria Geral da Beta Redação na primeira quinzena de abril.

Iracema Gá Teh Nascimento, fonte de diversas matérias, reza junto à coletivo indígena da UFRGS no local cedido para a Casa do Estudante Indígena (foto: Alass Derivas/Deriva Jornalismo)

Parte de minha função é ouvir leitores. Imagine: há uma pressão grande sobre o ombudsman nessa troca. Ainda que eu seja autor apenas de um dos textos, é sob minha assinatura que os comentários — bons e ruins — serão transmitidos.

Quando acionei o cacique para que nos avaliasse a partir das matérias dos colegas repórteres, não sabia ainda como elas seriam, pois estavam em fase de pauta e produção. Não sabia ainda como seriam escritas, se abordariam as problemáticas levantadas com o respeito devido, permitindo às fontes serem fontes — sem querer saber mais do que elas ou falar por elas — , se usariam da linguagem sem reforçar estereótipos, preconceitos e distorções etnocêntricas já enraizadas no senso comum, erros muito cometidos pela imprensa. Por toda essa míriade de possíveis problemas (ainda menores que as violências da realidade abordada), cito Benites na abertura desta coluna de autocrítica da Beta Redação como forma de celebrar esse trabalho da equipe.

A pressão que senti ao acionar o cacique para ler criticamente as publicações não deveria ser só minha. Essa pressão precisa ser de cada repórter enquanto ouve as fontes, organiza os levantamentos e escreve a matéria. Porque cada texto publicado é uma flecha lançada, como diz o dito popular atribuído a outros povos — e ela não volta mais. Quem leu, leu. E essas são as responsabilidades de um jornalista: com a palavra, com a mensagem, com as relações construídas e as informações omitidas. Somos responsáveis, em parte, pelo outro — no particular, com aquele entrevistado — e de forma geral, com todos que serão associados à personagem da história. Felizmente, a Beta Geral foi bem em seu objetivo.

O único retorno crítico, em tom amigável de alerta, levantado por André, foi o uso — feito primeiro por mim, ainda no texto de abertura do Especial — do termo “ocupação”. Ele defende outra perspectiva sobre situações semelhantes: os indígenas são os povos originários, cujos ancestrais viviam e plantavam no território muito antes do branco chegar. Quem ocupou a terra indígena foi o branco. Indígena, quando monta acampamento, retoma.

Outros textos usam poucas vezes o termo “ocupação”. É possível que até o coletivo de estudantes indígenas tenha o utilizado, vez ou outra. E para muito além de certo ou errado, a correção de Benites revela que importa usar bem as palavras para ajudar as pessoas a pensarem suas relações sociais a partir de outra perspectiva. Inclusive, quero destacar que a repórter Mariana Necchi e o repórter Henrique Tedesco se apropriaram da expressão “retomada” antes mesmo deste aconselhamento — ponto para os repórteres.

“Dia do Índio”, o infame

Em abril, o dia 19 é marcado no Brasil, desde 1943, como “Dia do Índio”. O termo é repudiado por diversos indígenas, e a ideia de se celebrar em um dia do ano os povos indígenas — que, na prática, são caçados, excluídos e têm seus territórios retirados sistematicamente desde a chegada dos brancos — também não é visto com bons olhos. O próprio cacique questionou isso: “comemorar o quê?”

Ainda assim, é um período em que jornalistas conseguem abordar problemáticas das relações étnico-raciais e ambientais, não só como ocorrência, mas com maior profundidade e contextualização. Não é fácil pautar coisas complexas e históricas na rotina de produção de notícias. Para isso, as efemérides ajudam. Muito ajuda, também, a criação de acontecimentos pelos interessados — o que ocorre com destaque internacional no Acampamento Terra Livre, desde 2004.

É de celebrar que a universidade tenha proposto essa temática e envolvido a atividade acadêmica presencialmente na retomada dos estudantes indígenas da UFRGS. Tornar-se jornalista é, em princípio, ser capaz de olhar no olho, com os pés no mesmo chão, sentindo os mesmos cheiros, absorvido no relato de quem denuncia a própria história. Faltou experiência e desinibição, por parte de nossos colegas, no dia da visita a manifestação de retomada, o que teria tornado ainda melhor o aproveitamento deste encontro. Mas, ainda assim, o resultado foi bonito — e exaltado.

Flecha lançada

Os elogios, porém, não encerram a necessidade de olharmos criticamente para o que foi produzido. O outro papel que tenho como ombudsman é esse, o de ser o comentarista melhor informado e fundamentado. Afinal, estou nos bastidores da redação, sem dedo nos textos, e com leitores especializados e não-especializados me fornecendo insumos para a crítica. É a partir disso que preciso apontar cuidados necessários para as próximas publicações, pois eles existem, e não são poucos. E mais do que apontar para repórteres, é preciso apontar para leitores da Beta Redação. As flechas já foram lançadas, resta tratar os aliados feridos.

O que os repórteres conseguiram nessa edição produzir relatos de histórias tão boas que a forma como elas foram apresentadas acabou chamando pouca atenção. Na verdade, minha impressão é justamente que as histórias são muito melhores do que as matérias conseguiram revelar. Estão de parabéns pelo faro, mas talvez falte praticar a linguagem.

Horror Vacui

Em geral, a grafia e a gramática foram acertadas nos textos, mas chamou minha atenção a abundância de vírgulas e a falta de organização e refino da informação. As matérias trazem trechos confusos e redundantes, afirmações importantes lançadas ao leitor e depois não retomadas, inferências que somos incapazes de fazer, e por aí vai.

Fica clara a necessidade de uma revisão mais atenta e calma dos textos por parte da redação, seja por repórteres, editores ou professores. Um parágrafo de três frases consegue repetir a mesma palavra três vezes. Não ajuda na leitura e pode atrapalhá-la. Mas, o pior, para alguém curioso, são os vácuos deixados por referências implícitas em citações de fontes.

Na matéria de Torriê Aliê é mencionado que a taquara utilizada para os artesanatos indígenas está desaparecendo. Ficamos carentes das razões. Seria a produção de artesanatos a culpada? A pergunta é boba, mas a lacuna está aí. Muitas outras perguntas surgem e sobram: o que são essas histórias imbuídas nos artesanatos? Como se dá esse outro tempo indígena? Qual é o simbolismo das peças, afinal?

O texto de Henrique Tedesco também traz exemplos no quesito lacunas. O tema é muito interessante e traz uma chamada potente, mas o desenvolvimento da reportagem deixa várias questões. No primeiro parágrafo, há um “nós fazemos de graça” que não sabemos o quê. No segundo, diz “a técnica já foi utilizada”, como se alguma tivesse sido mencionada antes. Mais uma vez, no terceiro, os conhecimentos tradicionais indígenas relacionados à cura são tratados como “o método” — como se fossem uma coisa só ou como se o leitor já tivesse sido introduzido ao objeto das referências.

Além disso, duas legendas de imagem prejudicam a matéria: a das fotos do entrevistado Leocir é desconexa, enquanto a da caixa de remédios contradiz o parágrafo anterior. Ambas apontadas pela leitora Gabrielle Oliveira, de Novo Hamburgo, RS, que também se espantou com a ausência de clareza nas falas seguintes.

Em uma, as aspas mencionam que o grão do pinhão seria usado para tratar lesões como as que ocorrem no futebol, e, quando o repórter prevê que seria dado um exemplo, a citação menciona apenas “para esse tipo de machucado” (que tipo? E como?). Na outra, em que a fonte informa o uso das plantas guiné e urtiga para tratamento do câncer de útero, há mais um “nós fazemos”, seguido de “esfregamos no local”. A pergunta da leitora é se realmente se esfrega um preparado de urtiga no útero — fica o questionamento.

Vale mais que mil palavras

O texto de Mariana Necchi foi citado nominalmente por dois leitores. Ambos gostaram muito dos temas abordados mas demonstraram confusão semelhante: qual o assunto principal do texto, mesmo?

Renato Westphalen, arquiteto aposentado de Novo Hamburgo, tenta explicar o porquê: “como todos os textos sobre o assunto, tenta estruturar em forma sistemática conhecimentos que fogem deste âmbito”, e analisa que “houve uma mistura de informações sobre a personagem principal, a araucária, o biólogo e a concepção cosmológica kaingang versus a sociedade atual, eurocêntrica. Mas os diversos assuntos podem, com algum esforço, serem amarrados pelo leitor”.

No entanto, creio que o esforço poderia ser poupado. Minha hipótese para a confusão é outra: mal uso da imagem de destaque. Apesar do título prever a generalidade da pauta, a foto de Iracema Gá Teh Nascimento no topo, junto com sua entrevista, dá a entender que ela é uma personagem principal de uma história mais específica. A citação do leitor já evidencia isso.

Já Thiago Tepasse, gestor ambiental de Xangri-Lá, RS, entendeu que a araucária era a personagem central da matéria. Pelo menos, essa foi a impressão que teve na metade do texto. Disse que sentiu falta de mais explicações sobre a afirmação de que a espécie foi determinante “para a sobrevivência dos povos kaingang e xokleng no período pré-colonial”.

Semira Martins, especialista em comunicação e marketing de Novo Hamburgo, RS, elogiou o modo como os dados foram utilizados para embasar o texto de Vitória Pimentel. Ela sugeriu que isso também fosse feito nas outras matérias.

O texto de Juliana Peruchini trouxe um gráfico que poderia cumprir esse papel, mas, em compensação, ele é muito difícil de ler no celular. Esse problema também foi apontado por Thiago sobre a ilustração do parque Imperatriz Leopoldina na matéria de Luana Ely Quintana e Amanda Wolff.

A navegação e legibilidade em diferentes dispositivos precisa ser levada em consideração pelos repórteres na escolha das imagens. No texto de Gabriel Reis, o formato vertical da foto em destaque faz com que a miniatura fique péssima na página inicial da Beta Redação, cortando o rosto do entrevistado. Além disso, o retrato removeu de Julio toda sua personalidade. A legenda é redundante com o primeiro parágrafo e não consegue (nem tenta) compensar a frieza da foto. Por outro lado, essa matéria se destaca pelas citações bem escolhidas para quebrar o corpo do texto.

A matéria de Vitória Pimentel é uma das mais bem escritas do especial, com pouca redundância e com fluída organização das informações. O único ponto negativo, pior por estar em destaque, é o subtítulo “No Rio Grande do Sul, existe um psicólogo especializado na saúde indígena a cada 11 mil habitantes” — uma informação que não diz nada se não tivermos com o que comparar. Outro ponto, neutro, é que a foto em destaque nos frustra ao notarmos que o indígena sem nome não tem relação direta com a história e apenas empresta o rosto para essa — e provavelmente, para outra centena de textos — , visto que é de uma galeria de imagens de uso livre. Uma pena — mas nada imoral ou ilegal nisso.

Quando a ordem dos fatores altera o produto

O texto de Juliana Peruchini merece atenção por outro motivo: o de estrutura da narrativa. Analisar mais a fundo essa reportagem pode nos ajudar a pensar a linguagem de uma forma macro, ou seja, não apenas olhar para os detalhes, mas pensar todo o arco da história.

“A história de Tatiana Doble, mãe e estudante indígena” traz um depoimento muito potente que acabou enfraquecido pela forma como foi executada a reportagem. Longe (e bem longe) de ser uma matéria ruim, a ordem das informações não aproveitou bem a riqueza da história de vida da personagem. No início, a condução da narrativa acabou por construir sentidos prejudiciais à estudante, e, num segundo momento, sentimos falta de mais detalhes sobre o passado, a personalidade e as motivações dela.

Sem aproveitar os detalhes subjetivos de Tatiana logo no início (informações que recuperam a história na metade), somos apresentados primeiro a um contexto de degradação, do espaço “escuro” e de “risco” em que ela se encontrava na retomada junto à filha. Um contexto tão ruim que até pessoas em situação de rua teriam sentido pena — cenário que pode fazer algum leitor levantar questionamentos sobre a índole dessa mãe.

Essa construção, a meu ver, presta um desserviço à narrativa. Se invertida a ordem, a matéria poderia mostrar como uma mãe, que busca realizar um sonho na universidade, precisou se lançar naquela condição precária como reação a uma violência estrutural — e como isso funcionou.

Porém, essa virada positiva também não foi tão bem aproveitada. Logo antes do intertítulo “O amor pela enfermagem e os próximos passos”, o parágrafo que fala da conquista do espaço para a CEU Indígena está inserido de forma brusca. Ele rompe o cenário que até então se vinha construindo, de um depoimento coletado no calor da retomada, dá um salto temporal para dias depois e, então, volta no tempo.

Também se tratando da construção de sentidos prejudiciais, um enquadramento desagradável foi dado por Gabriel Ferri na terceira foto da matéria, que destacou os sacos de lixo e as garrafas PET. Ao tematizarmos grupos minorizados, pessoas que já são comumente tratadas com preconceito e desconfiança, o ideal é não destacar detalhes negativos se não forem extremamente necessários para a matéria. Não é uma questão necessariamente de omitir, mas pensar: é o momento para mostrar isso? Já há contexto suficiente?

Quem defende esse cuidado é o Guia para Jornalistas sobre Gênero, Raça e Etnia da ONU (Link para download). Nele, é indicado: “para temas polêmicos, tais como a disputa de terras indígenas […] evite veicular imagens, foto ou ilustrações que depreciem as mulheres indígenas e quilombolas no contexto de suas lutas”. A justificativa é que, na mídia, não se debate as circunstâncias históricas dessa condição, o que acaba por reforçar crenças em uma suposta incapacidade desses grupos para a superação dos problemas que enfrentam. O portal G1, por exemplo, teve esse cuidado ao fotografar o mesmo local.

Como último destaque, de volta à escala micro, entendo que foi utilizada uma má escolha de palavras para descrever a cedência da universidade em readequar um espaço para servir de CEU Indígena. Lá diz que “a conquista da sonhada moradia foi contemplada”, que evoca a ideia de uma solução ideal, talvez a melhor possível para o caso. Afinal, se alguém disser que conseguiu a “casa dos sonhos”, jamais pensaríamos um lugar inadequado para se morar — que era o caso do espaço cedido.

A concessão de um lugar significou, para o grupo, apenas poder contar com um teto e alguma segurança jurídica. Inúmeras adequações seriam necessárias ainda para transformar a antiga creche em uma moradia estudantil. Não cheguei a perguntar, mas acredito que o atendimento da demanda, de forma parcial, ainda não pode ser considerado representativo da moradia “sonhada” pelo coletivo. O problema é que, se o leitor não clicar no link, terminará o texto achando que as estudantes receberam uma hospedagem de no mínimo 3 estrelas. Infelizmente, não é o caso.

Conheça o conselho de Leitores 2022/1

André Benites, 40 anos, casado, 7 filhos. Mbya Guarani natural de Maquiné, RS. É cacique da Aldeia Ka’aguy Porã Mata Sagrada.

Gabrielle Oliveira, 33 anos, em relacionamento estável, não possui filhos. Nasceu em Portão, RS, mas reside em Novo Hamburgo. É formada em Administração pela Universidade Feevale. Atua na administração de matrizaria.

Renato de Azevedo Westphalen, 63 anos, casado, 3 filhos. Nasceu em Cruz Alta, RS. Formado em Arquitetura e Especialista em Geoprocessamento pela Unisinos. Aposentado no município de Novo Hamburgo, onde atuou por 30 anos. Sócio da Eira Arquitetura onde atua em projetos e assessoria.

Semira Martins, 35 anos, casada, com um filho. Nasceu em Porto Alegre e reside em Novo Hamburgo, RS. Ensino superior em Jornalismo na Unisinos, especialista em comunicação e marketing pela ESPM-RS, com MBA de Marketing, Branding e Growth na PUC-RS. Atua como diretora de planejamento e marketing na empresa SMT Gestão Criativa.

Thiago Tepasse de Brum, 34 anos, casado, com um filho. Nasceu em Novo Hamburgo, RS, e reside em Xangri-Lá, RS. Formado em Gestão Ambiental na Unisinos e Doutorando em Tecnologia dos Materiais e Processos Industriais na Universidade Feevale. Atua como Coordenador de compras na Secretaria de Saúde do município de Xangri-Lá.

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