Os seis maiores momentos do Tottenham na Champions League: Ajax, 2019

Quando Lucas implodiu Amsterdam

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
4 min readDec 11, 2019

--

No Church In The Wild

Ajax e Tottenham têm mais em comum do que a gente costuma lembrar. Além da torcida com notável base judia e os jogadores que foram pra lá e pra cá desde os anos 80 (Davids, van der Vaart, Vertonghen…), a brilhante filosofia de jogo dos dois clubes foi criada usando ideias semelhantes. Se os Godenzonen tiveram Rinus Michels e Johan Cruyff, os Spurs contaram com Vic Buckingham e Arthur Rowe.

O embate que sempre tem alguma coisa de fraternal não é de decepcionar, e a máquina de Erik Ten Hag era (ainda é) garantia de espetáculo. Mas se em outro momento da história os dois times brigariam à parte pela tutela do toco y me voy, no dia 8 de maio de 2019 a bola sequer precisou escolher um dono para passar seu tempo. Aos 5 minutos, de cabeça, Matthjis de Ligt encaminhou a classificação dos donos da casa.

O primeiro tempo foi infernal. A cada chegada do Ajax com a bola dominada, a vaga dos Spurs na final ficava mais inimaginável — e, vale dizer, os ataques não foram poucos e nem foram simples. O segundo gol da partida (e terceiro dos holandeses na semifinal), marcado por um endiabrado Hakim Ziyech, foi a representação da desistência. A dez minutos do intervalo, por mais que o time não viesse jogando mal, o caixão já parecia fechado.

Sem Harry Kane e sem respiro no placar geral, Pochettino trouxe Fernando Llorente a campo para aplicar muito indiscretamente o novo e refinado conceito de arcos transversais em parábola into the box com aerial threat (ou, caso você não seja um analista tático húngaro, chuveirinho) durante toda a segunda etapa. Se o chão era todo deles, que ao menos o ar fosse nosso.

A proposta histérica de tirar a bola do gramado foi o antídoto perfeito para conter uma equipe que construíra toda sua narrativa na base do tiki-taka. Os lançamentos pelo alto que pipocavam na cabeça da área para que o atacante espanhol escorasse seus destinos criaram alguma ordem no meio do caos.

Começando a sentir a textura das rédeas, o Tottenham socou o casco do caixão. Danny Rose rasgou de Ligt com uma caneta torturante, Dele Alli desenhou o contra-ataque e Lucas Moura lançou-se numa flechada para diminuir a desvantagem aos 55’. Quatro minutos depois, numa jogada que você já viu num campeonato interclasses de escola de bairro, o mesmo Lucas, de costas para o gol, optou por ignorar uma meia dúzia de princípios da física e da anatomia para se virar do avesso e acertar um petardo cruzado de pé esquerdo no canto de Onana.

Se pendurada ao lado da TV ao longo dos minutos que seguiram, a ‘Guernica’ de Picasso pareceria uma delicada aquarela em cartolina. Ainda é difícil canalizar as sensações que fizeram todo o fim da partida passar em nada mais que uns quinze segundos. Antes de explodir na trave, o chute rasteiro de Ziyech foi a coisa que mais chegou perto de me fazer acreditar em Deus. Quando Felix Brych apontou os cinco minutos de acréscimo, então, não havia divindade grande o suficiente para apoiar o desespero.

Entre centenas de milhares de formas de operar milagres no futebol, o Tottenham optou pela mais humilde e ingênua: o chutão pro alto, traduzido pela crença do homem virtuoso como ‘seja o que Deus quiser’. E Ele quis, e Ele virou o jogo no último segundo com a perna que não é a boa, e Ele próprio creditou seus feitos da noite a outro Deus, talvez sem saber que foi Deus por uma noite.

Lucas Moura subverteu Amsterdam em uma performance onipotente. Soube contar com todos os acasos porque foi quem os criou. Soube aproveitar as janelas de milésimos porque foi quem as abriu. E marcou três gols que valeram uma vida inteira, levando o Tottenham à terra prometida pela primeira vez em toda a história.

No fim, pra ilustrar a poder divino, transformou a água das lágrimas que viriam não em vinho, mas em Heineken.

Ficha técnica

Ajax 2–3 Tottenham (3–3 agg.)

Local: Johan Cruyff Arena, Amsterdam

Público: 52,641

Data: Quarta-feira, 8 de maio de 2019

Árbitro: Felix Brych (ALE)

Gols: Matthjis de Ligt (5'), Hakim Ziyech (35'); Lucas Moura (55’, 59’, 90’+5)

Cartões amarelos: Andre Onana, Hakim Ziyech, Kasper Dolberg (Ajax); Danny Rose, Moussa Sissoko (Tottenham)

Ajax

4–5–1: Onana; Mazraoui, de Ligt, Blind, Tagliafico; Schöne (Veltman, 60’), de Jong, van de Beek (Magallán, 90’), Ziyech, Tadic; Dolberg (Sinkgraven, 67’).

Técnico: Erik ten Hag

Tottenham

4–5–1: Lloris; Trippier (Lamela, 81’), Alderweireld, Vertonghen, Rose (Davies, 82’); Sissoko, Wanyama (Llorente, 45’), Alli, Eriksen, Son; Lucas.

Técnico: Mauricio Pochettino

--

--