Pense Pequeno: Escalando Dificuldade

ou o Flow do seu jogo

Thais Weiller
Game Start
8 min readJul 11, 2017

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Falamos rapidinho no último texto sobre a teoria do flow, do Mihaly Csikszentmihalyi, mas não realmente entramos em o que o ele significa.

Para Mihaly, o flow é um estado de espírito no qual o indivíduo, a fazer uma tarefa, se encontra completamente absorvido pela atividade e sente compreendê-la 100%. Sabe quando você está tão absorvido naquela luta com o chefão que a sua casa pode estar pegando fogo que você nem percebe? É isso.

Segundo Mihaly, algumas coisas são necessárias para atingir o flow. São elas:

  1. Objetivos claros — A pessoa sabe exatamente o que tem que fazer e quais as formas de obter sucesso.
  2. Concentração e foco — A concentração se foca completamente na tarefa a frente.
  3. Perda do sentimento de auto-consciência — Não se pára para questionar o futuro, o passado e como a pessoa se sente em relação a eles. Toda sua atenção está na tarefa e assim não há espaço na consciência para nenhum outro pensamento, nem de dúvida.
  4. Sensação de tempo distorcida — A imersão total na tarefa faz a passagem do tempo subjetiva ser muito diferente do tempo real.
  5. Feedback direto e imediato — Todos os pequenos sinais passados pela atividade são percebidos pela pessoa que se adapta conforme o necessário.
  6. Equilíbrio entre o nível de habilidade e de desafio — a atividade nunca é muito fácil ou muito difícil o nível de dificuldade percebido pela pessoa parece sempre dentro do nível de habilidade que ela possui e dentro do espectro de desafiante.
  7. A sensação de controle pessoal sobre a situação ou a atividade — Com todos eles elementos, a pessoa se sente confiante dentro da atividade, sente-se como "no topo" dela.
  8. A atividade é em si recompensadora, não exigindo esforço algum — Os feedbacks e a sensação de controle passam se ser a recompensa para a própria atividade, nenhuma outra recompensa externa é necessária para deixar a pessoa com a sensação de satisfação.
  9. A pessoa praticamente “se torna parte da atividade” que está praticando — Toda a capacidade de consciência da pessoa se torna a atividade, o mundo de fora cessa de existir durante esse momento e a pessoa se torna tão envolvida com a atividade que se sente parte dela.
Trabalhos manuais muitas vezes resultam em flow.

Lendo esses requisitos, fica bem claro que o flow é um estado extremamente subjetivo. Depende de pessoa a pessoa e ocorre apenas no indivíduo. Ou seja, não podemos fazer um jogo que seja 100% garantido de causar flow no jogador. O que podemos fazer é entender como o flow funciona e tentar, ao máximo, deixar nosso jogo propício a causá-lo.

Segunda a teoria do Mihaly, dos nove elementos necessários para o flow apenas três podem estar fora do indivíduo, ou seja, na atividade em si. Um deles é o feedback, que falamos no artigo anterior e o segundo é objetivos claros que meio que entra na idéia de leitmotif e core loop. O terceiro é equilíbrio entre nível de habilidade e desafio, é sobre o que vamos falar hoje.

Primeiro de tudo, então, precisamos entender nosso jogador. Cada pessoa é diferente, tem habilidades e gostos diferentes, logo é impossível fazer um jogo que apele a todos os jogadores. Desta forma, uma das suas tarefas mais importantes (e difíceis) é entender qual grupo desses jogadores você vai focar em e tentar fazer o jogo tendo em vista uma média entre esse grupo menor que você selecionou.

O grupo de jogadores que você está focando se chama público-alvo e eu sei que soa como mais uma porcaria de marketing mas é sim muito importante para o desenvolvimento do seu jogo. Às vezes, você nem tá pensando em público-alvo mas acaba sim definindo ele.

Em Oniken, nós focamos (sem querer querendo) em um público que havia jogado os jogos de referência (Ninja Gaiden, Kabuki Quantum Fighter, etc), logo tentamos fazer uma dificuldade e escalamento de dificuldade próxima desses jogos.

Entretanto, esse público não passou os últimos 30 anos em uma caverna só com um NES e um gerador de eletricidade. Eles jogaram jogos recentes, eles se frustram com desafios injustos (quem, embora nossa nostalgia nos impeça de lembrar, estavam presentes aos montes nos jogos da era 8bits). Então, essa é outra coisa que tivemos que levar em consideração.

A partir do momento que você sabe, mesmo que mais ou menos, quem é seu público, você começa a entender como ele pensa e qual o fluxo de aprendizado/habilidade ele tem. E com isso em mente, podemos começar a pensar na distribuição da dificuldade.

Podemos aumentar a dificuldade em um jogo principalmente de três formas:

  1. Adicionando uma nova mecânica ou diferenciação de gameplay. Cada novo inimigo com um diferente ataque, AI ou atributos é um uso dessa forma.
  2. Aumentando a intensidade ou cobrança de mecânicas já existentes. Quando você entra em uma sala cheia de inimigos que você já conhece ou em situações novas.
  3. Uma mistura de 1 e 2. Esse método é mais difícil de balancear e costuma resultar em uma dificuldade maior que os outros dois por si só, tornando-se em geral um desafio. É por isso que geralmente utiliza-se ambos os métodos para chefões para rituais de passagem, um desafio que irá ao mesmo tempo testar o aprendizado do jogador até esse momento e desafiá-lo a mostrar seu melhor desempenho.

Geralmente, a ordem usada para escalar a dificuldade em jogos começa com um 1, passando por 2, passando por uma série de 1s e 2s até chegar no 3.

Por exemplo, se eu estivesse fazendo o level de um FPS eu começaria primeiro colocando o jogador em um lugar "seguro" para primeiro entender como se mover e usar a camera para logo em seguida apresentar o primeiro tipo de inimigo em uma sala (método 1). Em seguida, ele seria obrigado a entrar em um corredor com o mesmo inimigo (método 2, mesmo inimigo mas em um espaço fechado) e então em uma sala com dois ou três desse mesmo inimigo (método 2, aumentando o número de inimigos em um espaço "tranquilo"). Depois disso, eu poderia continuar brincando com variações de espaço e quantidades do primeiro inimigo ou introduzir o próximo inimigo ou mecânica (pense que em Doom você teve que aprender que os barils explodiam e podiam ser usados a seu favor).

Não existe certo ou errado aqui, só leve em consideração que o único motivo pelo qual qualquer pessoa irá jogar seu jogo é porque ela quer continuar entretida, seja por diversão ou qualquer outra emoção. Existe um número limitado de combinações possíveis entre um dado inimigo, espaços e obstáculos, ou seja, com o tempo, não importa o quão criativo você seja você precisa planejar a introdução de coisas novas no seu jogo durante toda a duração dele. Novas mecanicas, novos inimigos, novas coisas a se fazer. Mudar a corzinha e locação do cenário não é suficiente, nunca será suficiente, e você corre o risco de perder seu jogador pelo tédio. Se possível, faça um planejamento de quando cada coisa será introduzida e tente não deixar nenhum espaço muito grande.

Exemplo de planejamento de introdução de novos elementos.

Esse planejamento não deve ser escrito em pedra, esteja sempre pronto para calibrá-lo tendo em vista que fluxo de aprendizado do seu público-alvo é sempre diferente do seu. Mesmo porque, como desenvolvedor você está sempre testando seu próprio jogo e sempre adquirindo uma habilidade irreal para alguém que irá jogar seu jogo casualmente. Embora você sempre tente simular essas capacidade é legal sempre aferir suas predições.

O teste local

Fazemos isso assistindo pessoas que são do público jogando o jogo sem interferirmos, de qualquer forma que seja. Não importa o quanto você esteja se coçando para dar uma dica, se você interferir você já não vai ter um resultado objetivo desse teste. O jogo tem que estar claro e não ser muito frustrante, seja por estar muito difícil ou muito fácil. Lembre que como cada pessoa é diferente, mesmo dentro seu público haverá pessoas achando algo fácil e outras difícil, então tente mirar sempre para o meio termo aqui.

Outra coisa, lembre-se que você só consegue a experiência de primeiro contato uma vez com cada pessoa. Então, não teste o jogo com todos seus contatos que fazem parte do público alvo de uma vez. Teste com alguns e vá guardando uns "virgens" para build mais avançadas do projeto. É sempre útil ter pelo menos um par de olhos fresco a cada grande teste.

O teste online

Nem sempre conhecemos ao vivo várias pessoas que fazem parte do nosso público, então por isso as vezes acabamos colocando uma build online e esperando o melhor. Embora com uma build online você consiga atingir muitas mais pessoas, você dificilmente poderá captar a expressão do rosto ou onde a pessoa ficou mais frustrada ou mais impressionada. No melhor dos casos, você vai receber um email detalhado do que a pessoa gostou e do que não; no pior, vai receber uma rating negativa.

No teste online não há muito parâmetro geral para nada. Você pode mandar para alguns amigos e dar instruções gerais de coisas que você quer saber, você pode colocar a build em uma plataforma aberta e pública como o itch.io ou até o twitter e esperar que estranhos anônimos dividam a experiências deles com você ou outro método a sua escolha. O importante é tentar entender por meio de todos esses pedacinhos de feedback se o jogo está causando o flow para uma parte razoável dos jogadores e, se não está, o porquê disso.

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