O que significa tornar públicas nossas leituras privadas?

[Experiências de leitura #11]

Carla Soares
Mulheres que Escrevem

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Ainda falta uma boa quantidade de dias para o fim do de 2017, mas antes de começar a colorir o novo ano com planos, promessas e compromissos, é bom parar pra olhar aquilo que se passou. Rememorar e avaliar é um exercício de autopercepção importante pra entender do que gostamos, o que não serve mais e tentar experimentar outras coisas, com vontade renovada, como convém às coisas que se iniciam.

Este foi o segundo ano que escrevo publicamente sobre aquilo que leio, e como essas experiências de leitura se relacionam com o momento — meu, das pessoas ao meu redor, e do mundo. É uma tarefa que assumo como compromisso acima de tudo por prazer, por estar interessada em fazer parte da conversa coletiva, e por vontade de trocar com outras pessoas.

Quando fiz um balanço sobre o primeiro ano escrevendo sobre livros, percebi o quanto esse registro me permitia um exercício de alteridade. A pergunta que esteve sempre presente na minha cabeça naquele ano foi como falar dos livros que lemos? O que leva alguém a se interessar por um livro ou por ler? Como sair do formato de resenha, que sempre me pareceu tão frio e protocolar e inserir algo pessoal, mas que possa ser válido pro outro?

Já neste ano, a grande questão que carreguei comigo foi sobre autenticidade. Ler é uma atividade cotidiana pra mim, faz parte da minha rotina. Mas em que medida saber que vou escrever sobre um livro ou sobre um tema modifica os livros que escolho ler, a velocidade de leitura ou o modo como leio?

Durante o tempo em que me peguei pegando no assunto, cheguei a escrever para a Letícia Arcoverde, da Femrecs, confidenciando essa angústia. Ela tinha escrito uma newsletter com o sugestivo título de Você gosta de ler ou de ter lido um livro?, em que olhava pra essa nossa mania de transformar tudo o que estamos fazendo em produtividade. Contava como sempre teve uma afinidade com os aplicativos, as redes sociais, os bullet journals e afins pra poder registrar aquilo que ela leu e experimentou, mas também percebia neles uma armadilha. Eles também incentivavam que ela resumisse a diversão das leituras em um check na palavra terminado. Pensando nessa questão, e no compromisso de escrever mensalmente esta série de ensaios, eu contei a ela:

É inevitável: o fato de que vou escrever sobre livros em algum momento do mês condiciona minha leitura, mesmo que eu faça um esforço para que isso não aconteça. Percebo que acelero o ritmo e procuro terminar, ou tento ler um livro seguido de outro por achar que podem render uma discussão interessante juntos, mas naturalmente eu talvez deixasse pra outro momento. Se estou inclinada a falar de um livro, logo percebo como começo a fazer mais anotações nas margens. Fica difícil também me permitir navegar por um monte de livros sem me comprometer de terminar nada. Fui sincera e até cheguei a falar disso num dos textos, mas se me proponho a escrever sobre livros não posso continuamente falar sobre não ler rs. (…) Escrevo porque continuo querendo praticar, fazer parte da conversa coletiva e encontrar pessoas com interesses parecidos — ou ao menos é assim que eu me justifico — mas sabendo que essa prática condiciona o modo como ajo, será que estou sendo sincera comigo mesma sobre porque estou lendo? Consigo ainda atender o meu próprio desejo?

Algumas vezes me senti sim insatisfeita. Senti o peso da obrigação, de botar o outro na frente de uma escolha minha e por isso me forçar a ler algo interessante pra compartilhar; a deixar alguns livros pra parte debaixo da pilha de leituras não por falta de interesse naquele momento, mas porque julguei de antemão que talvez não fossem as melhores escolhas pra escrever sobre. E com isso cortei em alguns momentos o fluxo de alegria que a leitura costuma ser pra mim. Ter de tornar públicas as minhas leituras paradoxalmente me fez ler menos.

Há uma questão muito sutil quando fazemos algo que é tido como culturalmente privado se tornar um ato público. Quando algo é apenas "só pra gente", você não precisa assumir um compromisso com mais ninguém além de você mesmo. A coisa muda de figura quando se quer tornar algo público, porque neste caso você precisa se preocupar com o outro. Um texto escrito pra si, por exemplo, não precisa ter ideias organizadas, encadeadas, revisão, ou uma formatação que aumente a legibilidade e a atenção; cabem rabiscos, palavras riscadas, repetidas, ideias truncadas — porque afinal, esse pode ser um registro do seu processo, e o seu processo pode ser do seu interesse. É claro, você pode fazer diferente disso, mas seu único parâmetro será você mesma, e o que você deseja. Esta é marca da produção privada.

Já quando se faz algo com intenção de tornar público, tem que se ter ao menos um pouco de atenção nas habilidades, interesses e até no tempo que o outro vai dispor pra ler. Por isso, soa quase desrespeitoso um texto com ideias bagunçadas, sem saber pra onde ir, mal revisado, ou com informações equivocadas.Nos esforçamos pra sermos entendidas, pra sermos útil, pra honrarmos o tempo do outro e corresponder ao menos um pouco do que o outro pode estar procurando. Ter um pouco de empatia com quem poderá vir a ler muda a forma como escrevemos; muda a forma como agimos. Esta é a marca da produção pública.

A experiência feminina é muito marcada por essa oposição entre o público e o privado. A nossa socialização ainda nos empurra a pensar sempre no outro e nunca apenas em nós mesmas, e por isso, não me estranha que isso tenha aparecido ao longo do ano como uma questão pra mim. A solução não é não ligar e pensar só em si, no seu desejo, naquilo que você gosta, pois a empatia também tem seu valor — embora ela ainda seja pouco reconhecida. A verdade é que equilibrar os pratos da balança entre o eu e o Outro não é tão simples. Nunca foi.

Uma discussão sobre público x privado também pode ser feita do ponto de vista da recepção, da pessoa que lê. A jornalista Juliana Domingos de Lima publicou no jornal Nexo uma matéria bem interessante sobre a passagem da leitura como um ato público, em voz alta, para se tornar um ato privado, como acontece nos dias de hoje. Não parece, mas essa mudança é ainda muito recente: se deu a partir do século 17 e, com mais intensidade, no século 18, nos países da Europa.

São várias as razões apontadas pra isso: o desenvolvimento da prensa de tipos móveis de Gutemberg no século 16, que possibilitou uma maior tiragem e consequentemente difusão de obras; o crescimento do número de pessoas alfabetizadas que podiam ter acesso a leitura por si mesmas; e até o aburguesamento da sociedade ocidental, que valorizou o gosto pelo individualismo.

A oralidade foi determinante pra se decidir no passado sobre o tamanho, o formato, os gêneros textuais mais populares, e até mesmo a sonoridade das frases que eram escritas. Os leitores, nesse contexto, não eram tomados como leitores de fato, mas como uma plateia. Textos ficcionais ou não-ficcionais eram pensados para serem lidos em voz alta, e eram especialmente conhecidos aqueles textos de teor histórico ou religioso, como os sermões e as peças de teatro.

[As pessoas] copiavam e compartilhavam seus poemas favoritos, liam diálogos de romances populares, fragmentos emocionantes ou cômicos de peças, emprestavam umas para as outras volumes de sermões e os discutiam depois. (…) Investiam em sofás em suas bibliotecas ou colocavam estantes ao redor da lareira para permitir o prazer sociável dos livros”, conta Abigail Williams no livro The Social Life of Books, fonte consultada na matéria do jornal Nexo (os grifos são meus).

Há, no entanto, uma crescente demanda por um hábito um pouco mais público de leitura nos nossos dias — não se trata de uma retomada da leitura em voz alta, mas parece que estamos procurando possibilidades de compartilhar aquilo que foi lido. Estamos assistindo a re-popularização dos clubes de leitura, o compartilhamento de fotografias nas mídias sociais com trechos de livros, os booktubers se tornaram populares, há podcasts e grupos de facebook dedicados a conversar sobre obras. Também entram nessa lógica o fortalecimento de mídias sociais dedicadas ao tema da leitura como o goodreads ou o skoob, newsletters, blogs literários, entre outros fenômenos. O que é comum a todos eles é a possibilidade de compartilhar impressões, correlações com outras leituras e vivências, e abrir para outras pessoas nossas experiências privadas daquilo que lemos.

Foto de uma das reuniões do LeiaMulheres, em que compartilhamos nossas experiências privadas, bem ao gosto dessa demanda por uma leitura mais pública

Este novo hábito aponta pra um anseio contemporâneo por outros valores que não apenas o do individualismo. Continua havendo uma demanda por ver e ser visto enquanto indivíduo, mas também há uma vontade de compartilhar e fazer parte da conversa coletiva.

Dá pra perceber, no entanto, que a atividade de tornar pública a leitura na contemporaneidade tem um componente muito diferente do caráter coletivo das leituras públicas. Há um vetor que sai do indivíduo — da experiência e da interpretação particular — em direção ao coletivo; mas dificilmente ocorre o oposto, como parecia ser o caso das leituras em voz alta, coletivas.

Falar do ponto de vista do indivíduo cria uma expectativa de que é necessário falar da nossa melhor faceta: aquele já falado esforço de ser compreendido, útil e ser pro outro o que achamos que ele espera de nós. É nesse ponto que vale a pena prestar atenção, pois é aí que aparece o conflito entre aquilo que queremos e aquilo que achamos que o outro quer.

Não é nenhuma novidade a crítica de que ninguém é tão feliz como nas imagens do Instagram e nos posts do Facebook. Julgamos que o outro esteja mais interessado em ver os momentos felizes ou que nos tornamos socialmente indesejados se expressamos nossos desagrados, angústias, dissabores e fracassos (a não ser, é claro, que os fracassos levem a posteriores vitórias. Aí sim, o mundo diz que vale a pena compartilhar. Mas neste caso é pra demonstrar nosso esforço e não exatamente pra falar mesmo do nosso fracasso). Por isso, acaba sendo mais raro tornar público uma leitura desagradável, um livro desistido, os períodos em que não queremos ler absolutamente nada, as temporadas em que pulamos de livro em livro sem nos comprometermos em terminar coisa alguma. Não só falamos menos sobre essas experiências, como tendemos também a transformar a leitura em uma possibilidade produtiva — ou em algo pra alimentar esse (suposto) espelho do eu que são as redes.

Pra quem está vendo essas postagens — e todos nós que usamos a rede, em algum momento, estamos — , pode parecer que uma escolha de leitura ruim, os fracassos e a falta de interesse só acontecem com a própria pessoa, quando na verdade nos esquecemos que a faceta pública não necessariamente corresponde à privada. O que é revelado é apenas uma parte, pois ainda damos à esfera privada um sabor especial, acreditamos que é uma coisa que precisa ser mantida, por continuarmos a ter essa afinidade cultural imensa com o privado.

Alguns trechos de livros que me tocaram e que por isso compartilhei ao longo do ano nas minhas mídias

Insistir numa conversa coletiva, porém, faz uma diferença muito grande, e até agora minha experiência tem sido muito positiva. O desânimo da obrigação de ter o que dizer, que tomou conta de mim em alguns momentos, não é o que carrego das Experiências de leitura de 2017. Continuo percebendo um prazer em poder escrever sobre o assunto, em fazer parte de um clube de leitura #LeiaMulheres e poder conversar todos os meses sobre algo que li, ou em compartilhar alguns trechos de livros no meu twitter. A partir daí encontro novas ideias que me interessam, consigo prestar atenção em questões que me passaram em branco, e realmente me torno uma leitora mais atenta se preciso escrever sobre. Poder exercitar minha faceta pública como leitora me não me torna apenas uma leitora atenta, mas uma pessoa mais atenta. Porém, percebo que preciso ponderar constantemente aquilo que é importante pra mim, pra não me perder de vista. Preciso lembrar que esse filtro do que o outro supostamente deseja é uma projeção e me manter fiel a mim mesma pra poder ficar satisfeita com a proposta.

Ser honesta comigo mesma sobre minha disposição, interesse e gosto não é apenas uma questão de autenticidade, mas de prazer e possibilidade de encontros e de trocas públicas. O patriarcado sempre se esforçou pra nos manter escondidas, no privado, e deixar nosso lado público vir à tona apenas no nosso esforço de agradar e pensar nos outros. Talvez para que nós mulheres possamos cultivar outra coisa que não o individualismo seja imprescindível não perder de vista nós mesmas, por mais estranho que pareça. Não é egoísmo; é que sempre estivemos um pouco esquecidas nessa equação.

Para ouvir o podcast que gravamos com Carla Soares, clique aqui!

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Carla Soares
Mulheres que Escrevem

Escrevo sobre comida e PANCs no http://outracozinha.com.br, e outras coisinhas no Mulheres que Escrevem